sábado, 19 de outubro de 2024

 Rota Vicentina

2ª parte


Odeceixe - Aljezur - 5 de outubro 2024

(Por esquecimento, não desliguei a gravação do percurso no seu final, em Aljezur, pelo que a imagem mostra também o regresso a Odeceixe, que foi feito de automóvel. Deverá pois apenas considerar-se o trajeto até ao km 24, que corresponde, no mapa, ao local assinalado com um castelo.)

Qualquer atividade física mais prolongada e continuada no tempo exige, como compensação, descanso do corpo e, curiosamente, da mente também. De facto, mesmo que passemos uma noite na cama, esticados sobre o colchão, na maior inatividade, se não dormirmos efetivamente, no dia seguinte sentir-nos-emos cansados mental e fisicamente, o que aumenta exponencialmente a inércia que é preciso vencer para envolver de novo o corpo em qualquer atividade que reclame esforço.

Não fazia ideia, ao chegar a Odeceixe, que o fazia num fim de semana de festa local. O que sei é que passava da meia-noite e o barulho era tanto na rua, provocado por um DJ que insistia em passar aquilo que alguns classificam como música, mas que eu remeto para a pasta dos instrumentos de tortura, baseado numa sucessão continua e sustentada de marcações de baixa frequência e alta intensidade, como se uma manada inteira e infinita de cavalos, ou melhor elefantes, no mais acelerado tropel nos passasse à porta do quarto.

Catpum-Catapum-catapum-catapum e nem com tampões nos ouvidos me conseguia livrar da tremidura, que me mantinha irremediavelmente acordado.

Pensando tratar-se de festa privada, ainda tentei, por várias vezes, o contacto telefónico com a GNR local, mas ou os guardas estavam na festa também, ou pura e simplesmente preferem não atender  estranhos depois das horas de expediente porque ninguém me atendeu do número que, na internet, está publicado como sendo do posto de Odeceixe, com a indicação disponível 24 horas....

Finalmente, já perto das 2h30 da manhã, o martelo pneumático que me arrasava o descanso foi desligado e pude finalmente deixar-me entregue aos cuidados de Morfeu, até à hora que tinha previsto levantar-me, ou seja, 6 da manhã.

Tinha, por fim a hipótese de iniciar o dia de caminhada cedo, como gosto, uma vez que o problema de esperar pela hora de check in à chegada ao destino já não se colocaria, pois passaria a próxima noite na mesma unidade de alojamento onde estava agora. Mas sentia-me cansado e, claro está, muitíssimo mal dormido, pelo que não me foi fácil manter os planos de partida antecipada.

Era o último dia de caminhada, mas também a etapa mais longa de todo o trilho. Se queria acabar por volta da hora do almoço, tinha mesmo que sair agora, por isso, com algum esforço, lá abandonei a cama e fui tomar o pequeno almoço. 

A carga, desta vez, seria bem mais leve, já que podia levar só uma mochila mais pequena com o saco dos primeiros socorros, água e duas peças de fruta, ou seja cerca de 3 quilos, o que se traduzia numa poupança de uns 4 ou 5 quilos face à minha habitual carga.

O peso é uma grandeza que importa controlar por motivos óbvios quando se fazem caminhadas longas, e há um limite a partir do qual não é possível diminuir mais,  mas o peso da mochila ao início da tirada nunca é igual ao da chegada, quanto mais não seja porque se consome a água que se transporta e a água é uma das fontes apreciáveis de peso.... um litro é mesmo igual ao quilo!

Reconfortado por um café da máquina de cápsulas a que, felizmente, tinha acesso, lá sai para a noite, apenas amenizada pelos candeeiros de rua que prontamente deixei para trás ao embrenhar-me nos campos agrícolas  que ladeiam a ribeira de Seixe, como indica o trajeto oficial do trilho.

Tinha já mais de um quilómetro andado quando de repente me lembrei que não tinha tomado a minha medicação matinal... Não iria conseguir conviver bem com esta certeza instalada. Estou certo que nada de mais me aconteceria, mas é sempre melhor jogar pelo seguro, pelo que decidi retornar à base para tomar os  comprimidos com que convivo há já bastante anos.

Nova partida, a vantagem da saída antecipada estava a esbater-se, mas ainda assim, estava muito longe ainda do nascer do sol quando voltei a passar pelo sítio onde tinha decidido regressado à casa de partida.

Caminhava em direção à praia de Odeceixe, seguindo as marcações oficiais, mas quase a lá chegar, decidi fazer um pequeno atalho e subir logo para o parque de estacionamento no topo da colina, porque já tinha passado várias vezes pelo caminho da praia e, para mais, o nevoeiro, novamente, não me iria deixar ver nada de jeito.

Dali segui então novamente para a costa, para os caminhos da arriba que é como quem diz, para a areia solta. Encarava-a agora com mais bonomia, sabia-a a chegar ao fim....

A habitual sucessão de vistas de recortes de costa  aqui e ali mais visitáveis com o olhar, consoante o nevoeiro o permitia, ocupou a primeira parte do percurso que, cerca de 10 km andados, inflete para o interior e corre ao longo de terras de cultivo, sem qualquer interesse do ponto de vista paisagístico, mas com a vantagem de um piso de terra batida ou mesmo estrada, o que torna a progressão fácil, malgrado o perfil da etapa ser praticamente todo no sentido ascendente, embora com uma pendente  bastante suave, o que faz que quase se não dê por ela.

A povoação de Rogil marca sensivelmente dois terços de caminho andado e ali parei para descansar um pouco, tomar um café, comer um bolo e comprar água: 3,5€, ou seja menos euro e meio do que me tinha sido pedido na véspera em Azenha do Mar; mais ressabiado fiquei de não ter refilado na altura, mas enfim....

Recomposto, tomei de novo o caminho, na direção do entranho monumento aos percebes e ao largo estradão sobre o planalto que atravessa um pinhal e terras agrícolas até que este inflete de novo para poente, na direção da Vila de Aljezur, onde se chega por uma descida abrupta entre um eucaliptal, que me fez ficar contente por não ter feito a etapa na direção inversa, já que a subida é longa e mesmo muito pronunciada.

Os últimos dois quilómetros foram já palmilhados na malha urbana da vila, passando por locais que já me eram familiares, porque por eles tinha passado quando fizera a tirada Aljezur-Arrifana, na primeira parte do Trilho.

Por fim a ponte de Aljezur e o Placard que marca o final da etapa, que, para mim, era o final do Trilho e onde me encontrei de novo com a minha mulher, para seguirmos de volta, de carro, para Odeceixe, para o conforto de um banho e do almoço.

125 km, 6 dias. Pena que esta última tirada fosse relativamente desinteressante, porque a última lembrança é das que mais perduram, mas nunca iria apagar da memória os absolutamente incríveis locais por onde passara. Sentia-me orgulhoso, também. Afinal, sempre é um esforço considerável, agora que já não sou propriamente jovem e que o vigor físico se ressente disso mesmo.

Ainda assim não poucas vezes me perguntei que força fazia mover algumas pessoas que encontrei pelo caminho. Onde iriam eles e elas buscar a estamina, a vontade....? A senhora que vi com uma mochila bem maior que a minha, e alguns anos seguramente também por cima dos meus, que na areia solta parecia ir cair a cada passada, mas que lá seguia, devagar mas sem parar, atrás do marido um pouco mais fresco, mas também ele com uma mochila descomunal... ou aqueloutra senhora indiana que vi, com ar de estar muito perto dos 80 anos, com um companheiro bem mais jovem, também ela carregada com uma mochila pesada, também ela a parecer que iria cair a cada passada, mas que lá seguia em frente,... ou aquele senhor, seguramente nos 80 anos, acompanhado por uma jovem, uma sua neta eventualmente,  que, vestido com umas calças de ganga, uma camisa e um casaco polar , roupa muito pouco recomendável para  andar no meio do nevoeiro carregado de água que se fazia sentir, cruzava a difícil areia das arribas, a seguir à Lapa das Pombas... "Que força é esta, que força é esta?", perguntava o Sérgio Godinho e pergunto eu também, na esperança que daqui a uns anos a encontre, igualmente, para que mais caminhos se me abram à passada, porque este... está feito!




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A penumbra do dia começava a iluminar o caminho que, no entanto...

... teimava em não se mostrar totalmente descoberto.


Mesmo com o nevoeiro, ou até por causa dele, as imagens refletem uma calma que é preciso experimentar, para deveras a sentir. Estou certo que o vulto branco sobre a crista da falésia me dará razão....

Se há dias era quadriculado, por aqui é pautado....

D. Cegonha começa as inspeções pré-nupciais....

Com vistas destas é fácil perceber porquê tantos procuram este Trilho para delas disfrutarem...

... aqui até em maior conforto, não fosse o banco estar encharcado.....

A areia solta, a minha eterna Némesis.

Mais um bonito riscado....


É chavão, é verdade, mas...Palavras para quê?


Gosto mesmo do jardineiro que trabalha por estes sítios...

Nunca tal vi.... que casaco mais curioso tinha esta cabra!

Ok.



Não se consegue já ler, mas é a Praia da Esteveira, a última por onde se passa, antes de chegar a Aljezur.

Cruzei-me com vários destes milípedes pela estrada que conduzia ao Rogil, 

onde me cruzei também com o estranho monumento/fonte dos Percebes....

... não longe da igreja local, por onde passa o caminho.

A minha passagem por ali suscitava curiosidade, não tenho dúvida...

Tanta, que até um velho veado veio dar uma espreitadela...

O Infante, que cumprimentei à chegada ao meu destino:

a ponte de Aljezur.


Aqui terminava a viagem!






sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Rota Vicentina          

2ª parte


Zambujeira do Mar - Odeceixe - 4 de outubro 2024



Na verdade, não chovia, mas era como se estivesse a chover, tamanha a quantidade de água no ar: uma verdadeira parede branca que, mais uma vez, tudo escondia, ou pelo menos esbatia e reduzia a apenas duas dimensões.

Ainda pensei vestir o impermeável, mal saí do hostel, mas só me iria fazer calor e não me protegeria de nada, por isso continuei rua acima, guiado pelo amarelo de luzes que sobressaíam na cortina branca. 

Pouco depois estava a beberricar o meu café e (estava mesmo a tornar-se um hábito) um magnífico pastel de nata, ainda estaladiço e morno.

Compartia o espaço do café com trabalhadores asiáticos, uma funcionária brasileira e alguns outros caminhantes que tomavam o pequeno almoço.... uma vez mais, creio que era o único Português, coisa que, de resto, não me incomodava nada, mas que assinalo apenas como a constatação de que o mundo hoje em dia é de verdade um cadinho multi-cultural, onde se cruzam histórias, anseios, saberes, crenças, parecenças, diferenças. No poderia haver melhor definição , de resto, para um objeto que, basicamente, é esférico, o que favorece as interceções, já que ao contrário do que afirmam alguns (des)iluminados, não corremos nunca o risco de chegar à borda do planeta e cair no vazio. Parece mesmo que é mais fácil ser o vazio, que cair nele....

Estrada abaixo, na direção da praia, para depois galgar a primeira subida do dia e ganhar o caminho pelo topo da falésia.

Várias são as praias que se passam  e cujas formas dificilmente se vislumbravam atrás do nevoeiro. Todas elas, no entanto, serão tão bonitas como difíceis de atingir, já que os carreiros que a elas conduzem serão, por certo, íngremes.

As acácias saltam ao caminho. E acho que uma palavra de grande apreço devo deixar aqui à entidade que zela pela manutenção dos trilhos e aos voluntários que a isso ajudam. O Trilho dos Pescadores está impecavelmente sinalizado em todo o seu trajeto e nota-se que os locais onde a densidade da vegetação poderia criar alguma dificuldade de passagem são regularmente mantidos, por forma a garantir uma fruição segura do caminho. 

Um grande terreno agrícola, vedado, ombreia com um corredor paralelo à parede de acácias que o confronta. Um vulto deitado no chão mais à frente... uma enorme avestruz. Estou nos domínios da Herdade do Carvalhal, creio, que naqueles terrenos tem um verdadeiro jardim zoológico com bisontes, zebras, lamas, avestruzes, cabras montesas e eu sei lá que mais.

A avestruz está imóvel no chão e olha-me fixamente. depois, deixa cair o longo pescoço sobre a areia e assim se mantém, imóvel, com ar de doente, agonizante mesmo. Não acredito que esteja doente, porque os animais pelo menos devem ali ser bem tratados, apesar de tudo,  mas o quadro é desconcertante, no mínimo. Será que está a chocar? nunca vi uma avestruz no ninho, mas sigo em frente, procurando assim racionalizar o ar triste e dolente com que D. avestruz me olhou.

Gosto muito de animais; de tanto deles gostar, nunca quis ter nenhum. Não creio que os animais devam ter donos. Generalizo, é verdade. Sei da importância que alguns animais podem ter como auxiliares terapêuticos, companhia, adjuvantes do homem para uma quantidade de fins específicos e necessários. Mas esta mania, de século XIX, de colecionar animais exóticos fora do seu habitat, faz-me uma confusão danada. Compreendo a importância dos zoológicos em termos de proteção de espécies fortemente ameaçadas, mas ter um bisonte no meio do Alentejo, ou uma zebra, ou um hipopótamo ou seja lá o que for, por mais bem tratados que sejam, parece-me totalmente desajustado, cruel mesmo...

Mais à frente o caminho vira para o interior, e prossegue ladeando estufas e plantações de frescos, das muitas que enxameiam a zona. 

Reparo dias depois que passei à porta da "Herdade da Amália" , hoje um espaço alojamento turístico. Concluo também que o Caminho sofreu aqui alterações. Admito que nunca tenha passado diretamente por dentro da herdade , para evitar um espaço privado com utilização turística específica, mas originalmente terá descido à "Praia da Amália" que lhe é contígua, pelo menos as marcações de caminho originais que ainda são possíveis de vislumbrar, pintadas por cima, no acesso à referida praia, assim me levam a acreditar.

Talvez que a razão da alteração fosse poupar os caminhantes à forte e muito pouco resguarda subida que marca a arriba no lado sul da praia... a segurança, acima de tudo.

De novo regressado à arriba, após atravessar um longo espaço agrícola, domínio da Vitacress, prossigo por sobre os alcantilados que continuam a presentear o caminhante com recortes, praias, formações rochosas de singular beleza, apesar da capa de nevoeiro que aqui e ali teima em as cobrir.

Uma povoação, por fim: Azenha do Mar, e um café para me resguardar um pouco do chuvisco que entretanto caía, descansar um pouco e comer alguma coisa.

Peço um café, um bolo e uma garrafa de água de litro e meio. No momento de pagar são-me pedidos 5 euros. Pago, sem questionar. Arrependo-me de o ter feito. Deveria ter dito que sim, era turista, mas português e não parvo.

Deixo-me por ali estar até que o chuvisco para e o sol rompe, com calor de forno. Retomo depois o caminho, que me leva sempre por cima da arriba e pela areia até à orla norte da praia de Odeceixe, para onde desço por uma larga estrada de terra batida.  O fim da etapa está à vista, lá ao fundo, do outro lado da ponte que se adivinha sobre a ribeira de Seixe, dali a uns quatro quilómetros. Telefono à minha mulher. Está a chegar também. Vou ter com ela à entrada da vila, que é como quem diz, ao Algarve, já que depois de passar o meio da ponte se passa também de província, deixando de vez o Alentejo para se entrar na nossa província mais meridional. Um muito bonito mural que está ainda a ser finalizado pelo autor, o artista urbano OzeArv, dá-me as boas-vindas

Recolhemos de pronto ao alojamento para um banho e muda de roupa e saímos de carro para ir dar uma volta e almoçar, o que fazemos num restaurante de beira de estrada numa localidade de que não retive o nome, mas onde comemos uns rojões excelentes.... 

Como é diferente andar de carro.... como os quilómetros são tão mais curtos....

Depois de almoço regressamos ao alojamento, para poder descansar, antes de nova saída para jantar.

Falta um dia, uma etapa, mas é a mais longa do trilho, convém estar descansado!



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Uma manhã muito clara, portanto...

... cinzento clara!

Tal como com os humanos, há quem também faça o caminho no sentido inverso....

Os bosques de acácias sucede-me, nesta etapa, mas é notório o trabalho que é feito para deixar os caminhos desimpedidos.

As galhas nos ramos das acácias que resultam da "infeção" pelo Trichilogaster acaciaelongifoliae e que permitem evitar a floração e frutificação e consequente geração de sementes.

Se não soubesse, diria que aqui houve mão de jardineiro.....

Praia do carvalhal.

Mãe Avestruz



e seu comparsa...

Praia dos Machados


Uma passagem um pouco mais complicada, mas com uns curiosos relevos antes de entrar...

... numa galeria de acácias...

...que ladeia campos de estufas e frescos...

... ao pé da "Herdade da Amália".





Porto de Azenha do Mar



Para onde quer que se olhe a vista é sempre de tirar o folego....


Podia ser uma curiosa árvore de natal, com os seus enfeites rendados....

Um pouco mais de verde...

... sobre uma imensa paleta de ocres, rosa, cinza.


A praia de Odeceixe quase se não via, do cimo da arriba que a protege pelo lado Norte.

Mas se tivermos paciência....

... o sol, acaba sempre por romper.

lá ao fundo, a meta,

onde se chega pela ponte que liga o Alentejo ao Algarve

aqui, em Odeceixe. 


Não sei se a primeira parte do mural também é do OzeArv, mas é igualmente muito bonita

O artista a trabalhar. Gostava de ter tirado uma fotografia melhor, mas a pilha da máquina acabou com esta fotografia, precisamente.