Rota Vicentina
2ª parte
Odeceixe - Aljezur - 5 de outubro 2024
(Por esquecimento, não desliguei a gravação do percurso no seu final, em Aljezur, pelo que a imagem mostra também o regresso a Odeceixe, que foi feito de automóvel. Deverá pois apenas considerar-se o trajeto até ao km 24, que corresponde, no mapa, ao local assinalado com um castelo.)
Qualquer atividade física mais prolongada e continuada no tempo exige, como compensação, descanso do corpo e, curiosamente, da mente também. De facto, mesmo que passemos uma noite na cama, esticados sobre o colchão, na maior inatividade, se não dormirmos efetivamente, no dia seguinte sentir-nos-emos cansados mental e fisicamente, o que aumenta exponencialmente a inércia que é preciso vencer para envolver de novo o corpo em qualquer atividade que reclame esforço.
Não fazia ideia, ao chegar a Odeceixe, que o fazia num fim de semana de festa local. O que sei é que passava da meia-noite e o barulho era tanto na rua, provocado por um DJ que insistia em passar aquilo que alguns classificam como música, mas que eu remeto para a pasta dos instrumentos de tortura, baseado numa sucessão continua e sustentada de marcações de baixa frequência e alta intensidade, como se uma manada inteira e infinita de cavalos, ou melhor elefantes, no mais acelerado tropel nos passasse à porta do quarto.
Catpum-Catapum-catapum-catapum e nem com tampões nos ouvidos me conseguia livrar da tremidura, que me mantinha irremediavelmente acordado.
Pensando tratar-se de festa privada, ainda tentei, por várias vezes, o contacto telefónico com a GNR local, mas ou os guardas estavam na festa também, ou pura e simplesmente preferem não atender estranhos depois das horas de expediente porque ninguém me atendeu do número que, na internet, está publicado como sendo do posto de Odeceixe, com a indicação disponível 24 horas....
Finalmente, já perto das 2h30 da manhã, o martelo pneumático que me arrasava o descanso foi desligado e pude finalmente deixar-me entregue aos cuidados de Morfeu, até à hora que tinha previsto levantar-me, ou seja, 6 da manhã.
Tinha, por fim a hipótese de iniciar o dia de caminhada cedo, como gosto, uma vez que o problema de esperar pela hora de check in à chegada ao destino já não se colocaria, pois passaria a próxima noite na mesma unidade de alojamento onde estava agora. Mas sentia-me cansado e, claro está, muitíssimo mal dormido, pelo que não me foi fácil manter os planos de partida antecipada.
Era o último dia de caminhada, mas também a etapa mais longa de todo o trilho. Se queria acabar por volta da hora do almoço, tinha mesmo que sair agora, por isso, com algum esforço, lá abandonei a cama e fui tomar o pequeno almoço.
A carga, desta vez, seria bem mais leve, já que podia levar só uma mochila mais pequena com o saco dos primeiros socorros, água e duas peças de fruta, ou seja cerca de 3 quilos, o que se traduzia numa poupança de uns 4 ou 5 quilos face à minha habitual carga.
O peso é uma grandeza que importa controlar por motivos óbvios quando se fazem caminhadas longas, e há um limite a partir do qual não é possível diminuir mais, mas o peso da mochila ao início da tirada nunca é igual ao da chegada, quanto mais não seja porque se consome a água que se transporta e a água é uma das fontes apreciáveis de peso.... um litro é mesmo igual ao quilo!
Reconfortado por um café da máquina de cápsulas a que, felizmente, tinha acesso, lá sai para a noite, apenas amenizada pelos candeeiros de rua que prontamente deixei para trás ao embrenhar-me nos campos agrícolas que ladeiam a ribeira de Seixe, como indica o trajeto oficial do trilho.
Tinha já mais de um quilómetro andado quando de repente me lembrei que não tinha tomado a minha medicação matinal... Não iria conseguir conviver bem com esta certeza instalada. Estou certo que nada de mais me aconteceria, mas é sempre melhor jogar pelo seguro, pelo que decidi retornar à base para tomar os comprimidos com que convivo há já bastante anos.
Nova partida, a vantagem da saída antecipada estava a esbater-se, mas ainda assim, estava muito longe ainda do nascer do sol quando voltei a passar pelo sítio onde tinha decidido regressado à casa de partida.
Caminhava em direção à praia de Odeceixe, seguindo as marcações oficiais, mas quase a lá chegar, decidi fazer um pequeno atalho e subir logo para o parque de estacionamento no topo da colina, porque já tinha passado várias vezes pelo caminho da praia e, para mais, o nevoeiro, novamente, não me iria deixar ver nada de jeito.
Dali segui então novamente para a costa, para os caminhos da arriba que é como quem diz, para a areia solta. Encarava-a agora com mais bonomia, sabia-a a chegar ao fim....
A habitual sucessão de vistas de recortes de costa aqui e ali mais visitáveis com o olhar, consoante o nevoeiro o permitia, ocupou a primeira parte do percurso que, cerca de 10 km andados, inflete para o interior e corre ao longo de terras de cultivo, sem qualquer interesse do ponto de vista paisagístico, mas com a vantagem de um piso de terra batida ou mesmo estrada, o que torna a progressão fácil, malgrado o perfil da etapa ser praticamente todo no sentido ascendente, embora com uma pendente bastante suave, o que faz que quase se não dê por ela.
A povoação de Rogil marca sensivelmente dois terços de caminho andado e ali parei para descansar um pouco, tomar um café, comer um bolo e comprar água: 3,5€, ou seja menos euro e meio do que me tinha sido pedido na véspera em Azenha do Mar; mais ressabiado fiquei de não ter refilado na altura, mas enfim....
Recomposto, tomei de novo o caminho, na direção do entranho monumento aos percebes e ao largo estradão sobre o planalto que atravessa um pinhal e terras agrícolas até que este inflete de novo para poente, na direção da Vila de Aljezur, onde se chega por uma descida abrupta entre um eucaliptal, que me fez ficar contente por não ter feito a etapa na direção inversa, já que a subida é longa e mesmo muito pronunciada.
Os últimos dois quilómetros foram já palmilhados na malha urbana da vila, passando por locais que já me eram familiares, porque por eles tinha passado quando fizera a tirada Aljezur-Arrifana, na primeira parte do Trilho.
Por fim a ponte de Aljezur e o Placard que marca o final da etapa, que, para mim, era o final do Trilho e onde me encontrei de novo com a minha mulher, para seguirmos de volta, de carro, para Odeceixe, para o conforto de um banho e do almoço.
125 km, 6 dias. Pena que esta última tirada fosse relativamente desinteressante, porque a última lembrança é das que mais perduram, mas nunca iria apagar da memória os absolutamente incríveis locais por onde passara. Sentia-me orgulhoso, também. Afinal, sempre é um esforço considerável, agora que já não sou propriamente jovem e que o vigor físico se ressente disso mesmo.
Ainda assim não poucas vezes me perguntei que força fazia mover algumas pessoas que encontrei pelo caminho. Onde iriam eles e elas buscar a estamina, a vontade....? A senhora que vi com uma mochila bem maior que a minha, e alguns anos seguramente também por cima dos meus, que na areia solta parecia ir cair a cada passada, mas que lá seguia, devagar mas sem parar, atrás do marido um pouco mais fresco, mas também ele com uma mochila descomunal... ou aqueloutra senhora indiana que vi, com ar de estar muito perto dos 80 anos, com um companheiro bem mais jovem, também ela carregada com uma mochila pesada, também ela a parecer que iria cair a cada passada, mas que lá seguia em frente,... ou aquele senhor, seguramente nos 80 anos, acompanhado por uma jovem, uma sua neta eventualmente, que, vestido com umas calças de ganga, uma camisa e um casaco polar , roupa muito pouco recomendável para andar no meio do nevoeiro carregado de água que se fazia sentir, cruzava a difícil areia das arribas, a seguir à Lapa das Pombas... "Que força é esta, que força é esta?", perguntava o Sérgio Godinho e pergunto eu também, na esperança que daqui a uns anos a encontre, igualmente, para que mais caminhos se me abram à passada, porque este... está feito!
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A penumbra do dia começava a iluminar o caminho que, no entanto...
... teimava em não se mostrar totalmente descoberto.
Mesmo com o nevoeiro, ou até por causa dele, as imagens refletem uma calma que é preciso experimentar, para deveras a sentir. Estou certo que o vulto branco sobre a crista da falésia me dará razão....
Se há dias era quadriculado, por aqui é pautado....
D. Cegonha começa as inspeções pré-nupciais....
Com vistas destas é fácil perceber porquê tantos procuram este Trilho para delas disfrutarem...
... aqui até em maior conforto, não fosse o banco estar encharcado.....
A areia solta, a minha eterna Némesis.
Mais um bonito riscado....
É chavão, é verdade, mas...Palavras para quê?
Gosto mesmo do jardineiro que trabalha por estes sítios...
Nunca tal vi.... que casaco mais curioso tinha esta cabra!
Ok.
Não se consegue já ler, mas é a Praia da Esteveira, a última por onde se passa, antes de chegar a Aljezur.
Cruzei-me com vários destes milípedes pela estrada que conduzia ao Rogil,
onde me cruzei também com o estranho monumento/fonte dos Percebes....
... não longe da igreja local, por onde passa o caminho.
A minha passagem por ali suscitava curiosidade, não tenho dúvida...
Tanta, que até um velho veado veio dar uma espreitadela...
O Infante, que cumprimentei à chegada ao meu destino:
a ponte de Aljezur.
Aqui terminava a viagem!