segunda-feira, 26 de março de 2018


Eu sei que vais comprar um livro.
É uma boa decisão. Os livros guardam o tempo
das letras que, bem sabemos, é o sal dos homens.

Depois vais ler.
Melhor decisão ainda. Os olhos guardam o sal dos livros,
que, como te disse, é o sal dos homens.
É por essa simples razão que as lágrimas são salgadas.

Depois vais guardar o livro na estante.
Não sendo boa nem má, é, no entanto, sábia decisão:
as palavras gostam de companhia
(por isso é raro vê-las sozinhas)
e, por maioria de razão, os livros,
- porque são tantas as palavras que neles habitam -
gostam do aconchego; de roçar as capas uns nos outros,
ao ponto de aceitar a (o)pressão das paredes de uma estante
sem outro lamento que o de se afirmarem sempre disponíveis.

Um dia, alguém pegará no livro outra vez
(mesmo que já o tenham, os livros sempre procuram dono).

Poderás ficar a sabê-lo ou não,
mas mesmo que te soe a desfaçatez
E  te possa desconfortar o sono
Será sempre uma boa decisão:
um livro é mesmo feito p’ra ler
não pr’a deixar ao abandono
numa estante que lhe é prisão.

quarta-feira, 21 de março de 2018



Dia Internacional da Árvore
Dia Mundial da Poesia
(histórias de um dia que é só um,
embalado em óbvia redundância)


Folha a folha constrói-se o pássaro
que sobra, fugaz, da ponta de um ramo.
No intenso escuro, que não vejo
a coberto do verde, adivinha-se o ninho.


Há histórias por contar na velha árvore.
Sabe-o o gato, ou não estaria aqui
a olhar para o céu, mesmo sabendo-se ateu.


Passa o camião do lixo;
As crianças correm para a escola;
os pais para o trabalho;
a nuvem para o chão (confirmando a acutilância do boletim meteorológico).


O gato, mesmo assim, não sai do sítio;
tampouco o pássaro, embora nem ele, nem eu, o consigamos ver,
no intenso escuro, a coberto do verde.
É só isto

A Primavera.

PS. Não fora a UNESCO e já há muito que este seria o dia da poesia. Parabéns Joan Sebastian Bach! 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


Das Palavras

Parece cega a vidraça que me separa do dia sombrio, invernoso, deitado sobre os telhados e ruas lá fora. Cega porque lhe é indiferente, na absurda transparência do vidro, apenas maculada por pequenas nódoas de tempo exibidas na contraluz difusa, quase etérea, que vem dourar o tampo da mesa onde escrevo.
Sem tema.
É assim que começo tantas vezes, tantas vezes para não acabar. Só pelo exercício, que é de prazer também. E no entanto algo fica, sempre, como marca, como rasto, lento, pesaroso, por vezes, como se a escrita fosse caracol ou vagarosa infiltração e, noutras mais felizes, mas mais raras, ocasiões, em tropel de teclas que se confundem em palavras ortograficamente imperfeitas, mas grávidas de impecável semântica (ou pelo menos eu assim acho, que, como seu autor, é-me de direito a glória).
Volto à vidraça - agora menos incandescente que, lá fora, sempre lá fora, as nuvens se adensam escondendo um sol cobarde e tíbio – como varejeira enganada pela luz. De repente, a  metáfora não me parece ocasional. A história do homem confirma-o ou não tivesse a humanidade  sempre ondulado laboriosa e sonoramente, numa densa coreografia errática mas impecavelmente marcada, em busca da claridade visivelmente oculta pelas mais cristalinas  paredes.
Homens, varejeiras, estorninhos, formigas, abelhas, medusas, tudo eternos migrantes. Em ciclos que, por definição e constatação, se repetem, para deleite dos que amam o previsível.
Era uma vez.
Todas as estórias do mundo dormem nesta pequena frase. Afirmá-lo apenas reitera o que se acredita matéria de unânime consenso, só porque com ela invocamos o passado e as estórias não podem ser de futuro, mesmo que se afirmem de ficção vindoura. As teias que lhes dão corpo vivem apenas o ínfimo tempo da tinta que as fixa, ainda que esta seja imposta sobre putativo papel pela magia da eletrónica e da modernidade. E, numa feliz inversão, é, regra geral, na cor que a ausência dela produz, na luz que a gritante falta dela faz brilhar, que se tatuam as letras sobre a tela de uma folha  agora inexistente, alva como alva é a cor que todas as outras cores contém. Pretas sobre o branco migram as letras, as palavras, também elas como varejeiras ou estorninhos, ou, tão óbvia e simplesmente Homens.
Para se escreverem, as palavras provocam o mais aceso vómito. Não raras vezes deixam mal-estar, um sabor acre e metálico que só encontra par no aço frio e cortante da imaginação. Não raras vezes, são o precipitado de uma aturada filtragem que começa na exigência de um sentido e termina na libertação de uma finalidade. As palavras são erva, verde, húmida, fresca, que incessantemente ruminamos para lhes extrair a seiva que nos alimenta.  Usadas e exangues da essência, cuspimo-las sem pudor para a borda do passeio, não sem que antes nos asseguremos de que ninguém nos está a ver. E lá ficam até que a chuva ou um cão de perna alçada as lave de encontro ao bueiro, ou que alguma alma curiosa as recolha, as conforte e as ordene, para seu deleite pela escrita, para deleite dos outros, pela leitura, ambos os atos evocando a transitividade de um processo, também ele forjado de eterno contínuo, como contínuas são as migrações, dos Homens, das varejeiras, dos estorninhos,
das Palavras.