sábado, 24 de agosto de 2013

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória


Journey notes stolen from a log that I haven’t kept,
in parts,
As many as my memory can promise
.
  
I
Sair daqui, do sítio dos meus dias, para os ver do lado de lá do que lhes é habitual, baço, seguro. Dar-lhes  outros lados; dar-lhes outros dias.

Ilusão de liberdade, na verdade: condensamos a descoberta da estrada no espartilho do tempo e sobra cansaço, quase raiva pelo que se não viu apesar de tão  perto, ou não fosse a escolha a mais difícil das artes.  Mas, ainda assim, tudo o resto é novidade, mesmo que por vezes repetida, e todo o tempo é prazer, descoberta, sobrecarga para os sentidos.

O mapa: o mundo, ou uma sua pequena parte, em 1 : 1.000.000. 1 cm =  10 km, diz a legenda.
Portugal e Espanha, dobrados em perfeitos vincos por Monsieur Michelin, e olhamos para a metade de cima, para onde o mar serve de praia à montanha. É para aí que a vontade nos  leva: para o verde das Astúrias e do País Basco.

Escolhemos local de parada: Valladolid; Oviedo; Bilbao; Saint Jean de Luz; Arnedo.

15 minutos de procura e, com a ponta dos dedos, entramos pelo balcão da receção e marcamos dormida;  só falta arrumar mala para 3º feira, às 6h30.


To leave, to exit the place of my days, so as to view them from the opposite side of their usual, drab, safe self. To endow them with other sides… other days…

An illusion of freedom, really: we condense the discoveries of our travels into the corset of time and fall to exhaustion, to near anger for what we did not see in spite of being so close thereto, or would not choosing be the most difficult of all arts. But in spite of all that, everything else is news, even if sometimes revisited, and all time is pleasure, discovery, an overload of the senses.

The map: the world, or a small portion thereof, in 1:1,000,000. 1 cm = 10km says the caption. Portugal and Spain neatly folded by Monsieur Michelin, and we look at the upper half, to where the sea plays beach for the mountains. That’s where we are willing to go: to the green of the Astúrias and of the Basque Country.

We select our stopovers: Valladolid; Oviedo; Bilbao; Saint Jean de Luz; Arnedo.

A 15 minute search and with our finger tips we brave the reception desk and reserve where to sleep; all that’s left is to pack, for Tuesday, 6.30 A.M.


II
3º feira – 6 de Agosto

Nunca é uma noite bem dormida a que antecede a partida. Por regra, há sempre algo que não está feito, algo que teme ter esquecido, algo que amplifica a quase ansiedade que afasta o sono. Até que se fecham os olhos e se respira fundo… e que (logo depois, parece) o despertador toca.

Noite ainda, fresca, de um dia que se promete quente, carrego o carro com as malas e mochilas em que transportaremos o conforto do nosso pequeno mundo suburbano nos dias que se seguirão: roupa, alguma comida, água, equipamento fotográfico, guias, mapas e o sempiterno bloco de notas para o diário que se não escreve.

O sol nasce, e olha-nos de frente. Olhamo-lo de frente também: dou à chave e progressivamente primo o pedal do acelerador…

Como sabe bem! A estrada... no sentido oposto ao do apertado corpete que entrega às filas da portagem o trânsito pendular que corre para Lisboa, para leste… com o sol nos olhos, mirando-o de frente!

Tuesday, 6 August

It’s never a well slept night, the one that precedes departure. Usually there is always something that is not done yet, something  we fear might have forgotten, something that amplifies the near anxiety that keeps sleep at bay. Until, that is,  the eyes close, we breathe deep…and (right after, it seems) the alarm clock goes off.

It’s still night of a day that promises to become rather hot when I load the car with the bags carrying the comfort of our little suburban world for the upcoming days: clothes, some food, water, photo gear, guides, maps and the everlasting notebook for the log that will remain unwritten.

The sun is rising and looks us into the eyes. We return the gaze, into its eyes, too: I turn the key and progressively step on the gas pedal…

It feels really good! The road… in the opposite direction to that of the tight corset that delivers the commuting traffic running towards Lisbon to the toll queues; to the east… with the sun in our eyes, gazing directly at it!

III

Cáceres.

Espanha tem orgulho nas pedras que lhe fazem a história, rica, como a nossa, de honras e atropelos.
 
E mantem-nas.

Spain is proud of the stones that tell its history, as rich as ours of honnors and mischiefs.

and they preserve them.

O conjunto monumental de Cáceres é Património da Humanidade e vale bem uma visita cuidada pelas calmas ruas quase desertas apesar de Agosto, partindo da larga praça que, como todas as outras em Espanha se afirma Maior.

The monuments of the old town of Cáceres are classified as an World Heritage site and they are well worth a carefull visit amidsts the calm streets that are empty in spite of being August, starting on the large square that like all the others in Spain proudly proclamis to be the "Maior".


Subimos à torre da Concatedral  de Santa Maria. O castanho da Estremadura assenta nas pedras, medievas, renascentistas e – cliché dos clichés - não deixo de pensar que grande parte da história da península  se fez de sangue, rubro, verdadeiro,  não daquele que  ali em baixo, no altar, se oferece aos domingos em cálice dourado, roubado a corpos que o acaso ditou cristãos ou muçulmanos ou judeus.

We go up the tower of the Concatedral de Santa Maria. The sandy brown of Estremadura clings to the medieval, renaissance stones and – stereotype of stereotypes – I can’t help but think that much of our peninsula’s history was written in blood, real, red – and not the one that is offered down there, each Sunday, at the altar, in a golden goblet - stolen from bodies that chance ordered to be Christian, or Muslim, or Jew….

Caminhos estreitos flanqueados por paredes centenárias, levam ao mais largo caminho de todos que termina lá no norte, em Santiago. Eu, agnóstico convicto, sempre disse que o faria, não por motivação de crença, mas pelo sentido da peregrinação ao que na verdade somos… ainda não cumpri a palavra….

Narrow alleys bordered by centenary walls lead to that broadest of all paths that ends up North, in Santiago. Although agnostic, I have always said I would walk it, not moved by belief but by the quest for the sense of a pilgrimage to what we really are. I still have to live up to my word….

O calor aperta, o tempo também…

The hot day presses on and so does time....



IV
Valladolid
Meio de tarde, quente, abafada. Ruas desertas convidam ao passeio guiados pela planta da cidade oferecida no hotel.
A warm, stuffy, midafternoon. Empty streets invite our strolling through them, guided by the city’s map collected at the hotel.



O rio (Pisuerga de nome,  diz a wikipedia) corre de um pardo escuro e baço ao longo da avenida, flanqueada por excelentes ciclovias, que acolhe muito pouco trânsito para um dia de semana.

The river (Pisuerga is its name, so says wikipedia) runs drab and dark along the avenue, flanked by excellent cycleways, showing very little traffic for a weekday.

Até às cinco da tarde, hora de abertura do comércio, temos a cidade quase só para nós, e metodicamente, corremos uma a uma as pequenas bolas numeradas na planta que nos dizem serem pontos de interesse.

We have the city almost only for ourselves until shops open at 5 pm and, one after the other, we methodically check the little numbered circles of the map indicating points of interest.

Numa das bolas, a que aponta para o edifício da Universidade, uma agradável surpresa: uma excelente exposição de arte africana com esculturas em terracota, de diversas proveniências, muitas delas verdadeiramente ancestrais, (a.C.)  complementada por uma outra, dedicada ao Reino Oku, nos Camarões, exibindo uma admirável coleção de trajes rituais exclusivos desta, para mim desconhecida, sociedade.

In one of the circles, that pointing to the building of the University, a pleasant surprise: an outstanding exhibition of African art with terracotta sculptures, from several origins, many of them truly ancestral (B.C), complemented by another dedicated to the kingdom of Oku, in the Cameroons, displaying a remarkable collection of ritual vests exclusive to this society, hitherto unknown to me.


Cansados os corpos e os pés, misturamo-nos na corrente viva de pessoas que enche agora as ruas - tão diferente de quando chegámos – e deixamos os passos guiarem-nos até ao conforto de um copo de bom e fresco vinho branco numa das esplanadas da praça maior.

With weary bodies and feet we mingle with the living torrent of people that now fills the streets – so different from a while ago, when we arrived – and let our steps guide us to the comfort of a glass of good and cold white wine in one of the terrazas of the Plaza Mayor.

Um último passeio e uma última surpresa: bandeirolas e cartazes prometiam uma exposição da obra de Augusto Ferrer-Dalmau, nome que me era totalmente desconhecido, dedicada a temática militar - Soldados de España en la historia.
One last stroll and one last surprise: posters advertised an exhibition of the works of Augusto Ferrer-Dalmau, a name totally unknown to me, dedicated to military art.


Magníficos quadros (mais de 30) exaltando momentos significativos da história militar de Espanha, num realismo pictórico quase fotográfico. Obra de  um verdadeiro mestre do tema.

Outstanding paintings, each and every one of the 30+ on show, celebrating significant moments of the Spanish military history, drawn to an almost photographic pictorial realism. The woks of a true master of the theme.






Deixamos a cidade e seguimos para o conforto do hotel. Há que tomar a estrada cedo.

We leave the city and head to the Comfort of the hotel. We have to take to the road early in the morning.

 

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