Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
5 de agosto
É cedo, mas há no ar
calor que recomenda janela aberta com o vento a soprar carro adentro.
Cuenca fica para trás, mesmo o “Cerro Socorro” de onde adivinho que a vista
seria magnífica, em especial de manhã, com o sol a iluminar a longa tira de
casas do centro histórico que se estende encosta acima. Mesmo a pedir clique do
obturador guardado lá atrás, na mochila.
Seguimos caminho por uma estrada de vistas largas, classificada
no mapa como panorâmica. E há boas razões para isso: por cada curva da serra há
paisagens de calma imensa fendidas pelo planar alto dos grifos recortados
contra o céu que se derrama lá mais acima por sobre a serra de Albarracín,
berço do Tejo.
De novo o apelo dos sinais castanhos das tabuletas castanhas
na estrada: Lagunas de Canada del Hoyo.
Água… não há como resistir. Faço sinal e viro no cruzamento
que me leva pelo sorriso dos girassóis até à entrada da pequena povoação que dá
nome às lagoas, respeitosamente anichada no sopé do morro em que se ergue um
castelo, claramente alvo de recente recuperação. Para ver na volta!
Avançamos pela estrada até a um pequeno parque de estacionamento em terra batida, onde a
presença de dois autocarros de sonoros excursionistas nos indica claramente que
chegámos ao destino.
Cañada del Hoyo |
Em três paços chegamos à beira de uma das lagoas que, leio,
resultam da erosão química de solo calcário até ao nível dos mantos freáticos.
Dolinas será o termos mais correto para as designar, leio agora, algures na
wikipedia.
Visitamos outras duas, sempre na companhia imensamente
sonora dos ocupantes das duas camionetas, que se organizam em grupos para as
obrigatórias fotografias. Para eles está na hora e avançam de novo para os
autocarros, transportando a sua bem-disposta nuvem sonora.
Lagunillo del Tejo |
Restamos nós na beira da lagoa. Nós e a calma quente do dia,
cortada pelas asas de pequenas borboletas que não consigo fotografar, de tão
irrequietas que o calor e o sol as torna.
Laguna del Tejo |
Temos de ir também. Sabia bem um café. talvez na vila se consiga.
Ah, o quanto eu gosto da surpresa do que não vem nos livros.
Esta é mesmo uma das razões maiores para viajarmos sem outros roteiros ou
planos que um ou dois destinos de pernoita. O que interessa mesmo é o caminho,
e o que ele esconde: por vezes o tédio, também, das longas campinas castanhas do
estio ou do verde azulado e mortiço dos eucaliptais, mas haverá sempre algures,
a seguir a uma curva da estrada, uma tabuleta castanha que aponta para a
descoberta, para o documentário que nos imaginamos fazer e não ver, no conforto
do sofá da sala.
Castillo del buen suceso |
Subimos ainda a estrada íngreme que leva ao castelo. Lemos que foi recentemente recuperado pela atual e aristocrata dona, que seguramente gastou uma fatia apreciável da herança de família para lhe dar o aspeto limpinho e acabado que agora ostenta.
Descemos. Não há
nenhum café aberto em Cañada del Hoyo. Procuro uma fonte para encher a garrafa
de água, encontro uma, está ao sol e a água sai quente. Do jardim da pequena
praça, dois simpáticos velhotes gritam-me que ao fundo, do outro lado da rua,
está uma fonte de água corrente. Agradeço e encho as garrafas com a frescura
que desce das montanhas.
Retomamos a estrada e a largura das vistas que nos acompanham
e já só paramos em Teruel, saídos de
Castela-la Mancha e entrados na região autónoma de Aragão.
Carro estacionado num parque subterrâneo, que o sol continua
forte e é a hora pior para com ele conviver.
Plaza mayor |
Armados da planta recolhida no posto de turismo,
calcorreamos ao abrigo das escassas sombras dos prémios a cidade velha,
procurando de quando em vez o conforto do ar condicionado de uma loja, para uma
vista de olhos aos saldos (que há sempre prendas para levar).
Torre de S. Martín |
Torre del Salvador |
As torres mudéjares e a catedral, classificadas como património
mundial, são visita obrigatória, deslumbrantes no meticuloso tricot de tijolo e
cerâmica que lhes adoça as frontarias, resplandecentes de luz e brilho ao sol vertical do meio do dia.
Catedral de Santa Maria de Mediavilla |
Lemos no guia sobre os amantes, versão aragonesa de
Romeu&Julieta, imortalizados em nome de ruas, lojas e mausoléu, onde descansam enfim juntos - como
sempre acontece nas melhores histórias de amor – no resguardo mercantil da
bilheteira.
La escalinata |
Temos de partir que Lérida, o nosso destino do dia, ainda
está longe. Descemos até à praça maior para uma rápida, muito merecida e
desejada caña, e voltamos ao parque de estacionamento, não sem que me encha de coragem
e desça a longa escalinada neo-mudéjar, para a óbvia fotografia.
Plaza mayor |
Chegamos a Lérida (ou Lleida, como se escreve em Catalão, que aqui é já Catalunha), quando o dia já vai
longo. Temos alguma dificuldade em encontrar o hotel, mas após três ou quatro
voltas de rotunda e inversões de marcha, lá descobrimos o letreiro que o
anuncia.
Chegámos.
Instalamo-nos e partimos para a cidade em demanda de jantar.
São quase nove horas. Corremos tudo, na esperança de encontrar um restaurante
que tenha um aspeto mais acolhedor que a pizaria da esquina, o Burguer King de
outra esquina ou o snack bar da praça onde as crianças brincam enquanto os pais
cavaqueiam entre uma cerveja ou um café.
Meia hora depois, até já o snack bar está a fechar as portas
e de restaurantes nem sombras. Procuramos as ruas da cidade velha. Estamos em
Espanha. Em Espanha janta-se tarde. Tem de haver alguma coisa aberta.
Nada. Só pobreza. Daquela que escondem hoje as grandes
cidades em quasi-guetos, nos seus bairros mais velhos. É assim em Lérida, é assim
em Lisboa.
Voltamos ao hotel desanimados e pedimos jantar. Amanhã, à
luz do dia, talvez as coisas pareçam diferentes.