segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

5 de agosto

É cedo, mas há no ar  calor que recomenda janela aberta com o vento a soprar carro adentro. Cuenca fica para trás, mesmo o “Cerro Socorro” de onde adivinho que a vista seria magnífica, em especial de manhã, com o sol a iluminar a longa tira de casas do centro histórico que se estende encosta acima. Mesmo a pedir clique do obturador guardado lá atrás, na mochila.


Seguimos caminho por uma estrada de vistas largas, classificada no mapa como panorâmica. E há boas razões para isso: por cada curva da serra há paisagens de calma imensa fendidas pelo planar alto dos grifos recortados contra o céu que se derrama lá mais acima por sobre a serra de Albarracín, berço do Tejo.


De novo o apelo dos sinais castanhos das tabuletas castanhas na estrada: Lagunas de Canada del Hoyo.


Água… não há como resistir. Faço sinal e viro no cruzamento que me leva pelo sorriso dos girassóis até à entrada da pequena povoação que dá nome às lagoas, respeitosamente anichada no sopé do morro em que se ergue um castelo, claramente alvo de recente recuperação. Para ver na volta!
Avançamos pela estrada até a um pequeno parque  de estacionamento em terra batida, onde a presença de dois autocarros de sonoros excursionistas nos indica claramente que chegámos ao destino.


Cañada del Hoyo

Em três paços chegamos à beira de uma das lagoas que, leio, resultam da erosão química de solo calcário até ao nível dos mantos freáticos. Dolinas será o termos mais correto para as designar, leio agora, algures na wikipedia.


Visitamos outras duas, sempre na companhia imensamente sonora dos ocupantes das duas camionetas, que se organizam em grupos para as obrigatórias fotografias. Para eles está na hora e avançam de novo para os autocarros, transportando a sua bem-disposta nuvem sonora.
Lagunillo del Tejo



Restamos nós na beira da lagoa. Nós e a calma quente do dia, cortada pelas asas de pequenas borboletas que não consigo fotografar, de tão irrequietas que o calor e o sol as torna.


Laguna del Tejo

Temos de ir também. Sabia bem um café. talvez na vila se consiga.


Ah, o quanto eu gosto da surpresa do que não vem nos livros. Esta é mesmo uma das razões maiores para viajarmos sem outros roteiros ou planos que um ou dois destinos de pernoita. O que interessa mesmo é o caminho, e o que ele esconde: por vezes o tédio, também, das longas campinas castanhas do estio ou do verde azulado e mortiço dos eucaliptais, mas haverá sempre algures, a seguir a uma curva da estrada, uma tabuleta castanha que aponta para a descoberta, para o documentário que nos imaginamos fazer e não ver, no conforto do sofá da sala.


Castillo del buen suceso

Subimos ainda a estrada íngreme que leva ao castelo. Lemos que foi recentemente recuperado pela atual e aristocrata dona, que seguramente gastou uma fatia apreciável da herança de família para lhe dar o aspeto  limpinho e acabado que agora ostenta.


Descemos.  Não há nenhum café aberto em Cañada del Hoyo. Procuro uma fonte para encher a garrafa de água, encontro uma, está ao sol e a água sai quente. Do jardim da pequena praça, dois simpáticos velhotes gritam-me que ao fundo, do outro lado da rua, está uma fonte de água corrente. Agradeço e encho as garrafas com a frescura que desce das montanhas.


Retomamos a estrada e a largura das vistas que nos acompanham e já só paramos em Teruel, saídos de  Castela-la Mancha e entrados na região autónoma de Aragão.


Carro estacionado num parque subterrâneo, que o sol continua forte e é a hora pior para com ele conviver.


 

Plaza mayor
Armados da planta recolhida no posto de turismo, calcorreamos ao abrigo das escassas sombras dos prémios a cidade velha, procurando de quando em vez o conforto do ar condicionado de uma loja, para uma vista de olhos aos saldos (que há sempre prendas para levar).  

    
Torre de S. Martín

Torre del Salvador


As torres mudéjares e a catedral, classificadas como património mundial, são visita obrigatória, deslumbrantes no meticuloso tricot de tijolo e cerâmica que lhes adoça as frontarias, resplandecentes de luz e brilho ao sol  vertical do meio do dia.


Catedral de Santa Maria de Mediavilla

Lemos no guia sobre os amantes, versão aragonesa de Romeu&Julieta, imortalizados em nome de ruas, lojas e  mausoléu, onde descansam enfim juntos - como sempre acontece nas melhores histórias de amor – no resguardo mercantil da bilheteira.


La escalinata
Temos de partir que Lérida, o nosso destino do dia, ainda está longe. Descemos até à praça maior para uma rápida, muito merecida e desejada caña, e voltamos ao parque de estacionamento, não sem que me encha de coragem e desça a longa escalinada neo-mudéjar, para a óbvia fotografia.

Plaza mayor



Chegamos a Lérida (ou Lleida, como se escreve em Catalão, que aqui é já Catalunha), quando o dia já vai longo. Temos alguma dificuldade em encontrar o hotel, mas após três ou quatro voltas de rotunda e inversões de marcha, lá descobrimos o letreiro que o anuncia.


Chegámos.


Instalamo-nos e partimos para a cidade em demanda de jantar. São quase nove horas. Corremos tudo, na esperança de encontrar um restaurante que tenha um aspeto mais acolhedor que a pizaria da esquina, o Burguer King de outra esquina ou o snack bar da praça onde as crianças brincam enquanto os pais cavaqueiam entre uma cerveja ou um café.


Meia hora depois, até já o snack bar está a fechar as portas e de restaurantes nem sombras. Procuramos as ruas da cidade velha. Estamos em Espanha. Em Espanha janta-se tarde. Tem de haver alguma coisa aberta.


Nada. Só pobreza. Daquela que escondem hoje as grandes cidades em quasi-guetos, nos seus bairros mais velhos. É assim em Lérida, é assim em Lisboa.


Voltamos ao hotel desanimados e pedimos jantar. Amanhã, à luz do dia, talvez as coisas pareçam diferentes.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise



4 de agosto

O calor de um agosto recente entra pelas janelas semiabertas do carro. Ainda é cedo e, por enquanto, suporta-se facilmente, para mais quando empurrado pelos cento e tal quilómetros hora em que o ponteiro do velocímetro oscila, num constante mais-coisa-menos-coisa.

Sabe-me bem a estrada; não pela inevitabilidade das várias horas que passaremos sentados sobre os finos traços coloridos dos mapas que nos garantem a certeza do caminho, mas pela antecipação de tudo o que esses mesmos mapas não contam: as cores; os cheiros; as coisas; as gentes, o infindável isto e aquilo que deslumbra quem procura pela simples razão de querer ver.

Não é sensação nova, de resto. É sempre assim; todos os anos; sempre que possível; tanto que às vezes, nesta mesma estrada me dá vontade de fechar os olhos e deixar o carro ir, que ele já deve conhecer o caminho.

Café! Tão importante quanto o esticar das pernas a que me obrigo de quando em vez numa área de serviço ou de descanso, para desentorpecer os músculos e aclarar a névoa hipnótica da infindável sucessão dos traços brancos na autoestrada (wir fahren, fahren, fahren, auf der autobahn) que me pesa nas pálpebras e me fixa o olhar, momentaneamente, em nada, sinal inequívoco de que é hora de parar.

Uma, duas, três vezes até Trujillo, que o calor já aperta e o que estou mesmo a precisar é de um gelado, desses que são mais água e corante que outra coisa, e que derretem pau abaixo até transformarem os dedos em matéria autocolante, mas que transbordam de fresco e de memória de quando contávamos as moedas nos bolsos, sempre das mais pequenas, para os comprar no carrinho dos sorvetes.

Trujillo é escala habitual por isso não nos demoramos e, de costas voltadas à enorme estátua do Pizarro, retomamos a estrada, Estremadura fora que Castela já está próxima. 

Algures a meio a paisagem muda. Estamos mais alto, e o horizonte abre-se em vistas largas, de genérico de filme em technicolor e cinemascope. Só falta mesmo uma linha fina de poeira a levantar-se, lá ao fundo, a denunciar um qualquer Stuart Granger ou John Wayne em heroico galope.

Infelizmente não se pode parar e as imagens que guardo são apenas as da memória - fraco, muito fraco, negativo para imprimir, para quem não consegue desenhar seja o que for sem uma máquina fotográfica.

Galgamos quilómetro atrás de quilómetro e o ponteiro do combustível começa a ameaçar colar-se ao lado esquerdo do mostrador. Há muito tempo que não vemos um posto de abastecimento. Uma primeira tentativa de sair da estrada e entrar num povoado em busca do precioso destilado de petróleo resulta infrutífera, mas, mais à frente, dizem o mapa e as tabuletas está Tarancón, que nos parece ter dimensão suficiente para não poder viver sem uma estação de serviço por perto. Acertamos… e atestamos.

Não está longe o destino: Cuenca, cidade da serra a quem empresta o nome, no sopé de outra serra, a de Albarracin, que nos dá o rio mais longo da Península, nosso a partir das belas portas de Rodão, e do mundo, quando para ele se abre no Terreiro do Paço.

Chegamos e a estrada leva-nos direito ao hotel. Por uma vez não perdemos tempo à procura; também não perdemos tempo no hotel, que a cidade espera para ver, o dia já vai adiantado e, acima de tudo, mesmo sem saber onde é, já nos decidimos por uma essencial e fresca caña na Plaza Mayor.

Armados da necessária planta, partimos à procura da cidade velha, alcantilada entre rios e a uma altitude que recomenda o uso de outro transporte que os pés até lá chegar. Deixamos o carro num parque, perto do castelo, e iniciamos a descida por ruas de sabor renascentista, estreitas, resguardados na sombra dos prédios velhos, altos, exibindo curiosas varandas de ferro e laje.











É tarde, e no fim da rua que se abre para a Plaza Mayor, a catedral já não admite visitas, sentamo-nos numa esplanada à sobra do colorido das casas altas que flanqueia a praça e cumprimos o combinado: e que bem que sabe a frescura dourada da cerveja sobre os quase oitocentos quilómetros do dia e a hora de caminho ao calor que parece não querer abrandar.



Retemperados, continuamos o caminho que o já muito usado “guia de Espanha” nos indica, como  outros que parecem ter guardado também para a hora da sombra, o prazer da despreocupada descoberta.


Da escarpa onde se insinuam as “casas colgadas”, olhamos o parador, lá em baixo, sobre o rio, banhado agora em Luz, e descemos até à ponte para as irrevogáveis fotografias de turista alegre, misturados com famílias e casais praticantes do famigerado auto-retrato (“papa, yo quiero um palo de selfie”, ouço um criança suplicar…)



Voltamos, estrada acima e decidimos que está na hora de regressar ao hotel. Já no carro e no caminho uma placa indica “Ciudad encantada”; julgando-a perto, não resistimos ao apelo das estranhas formações rochosas que já tínhamos visto nas fotografias, e lá obrigamos o carro na direção da seta castanha.



A estrada serpenteia ao longo do rio, de um verde de quartzo, leitoso; estranho.

Paramos para fotografar, apesar da luz, da falta dela, da irrelevância do sítio; mas há rio e árvores… vale sempre a pena tentar.


Seguimos viajem. No cruzamento pergunto ao condutor de um outro carro se a cidade encantada ainda é muito longe. Trinta quilómetros, é a resposta, e a esta hora já fechou, acrescenta.
É pena, fica para a próxima, que amanhã é dia de seguir em frente, que hoje, o dia e o corpo já pedem descanso.