sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise



4 de agosto

O calor de um agosto recente entra pelas janelas semiabertas do carro. Ainda é cedo e, por enquanto, suporta-se facilmente, para mais quando empurrado pelos cento e tal quilómetros hora em que o ponteiro do velocímetro oscila, num constante mais-coisa-menos-coisa.

Sabe-me bem a estrada; não pela inevitabilidade das várias horas que passaremos sentados sobre os finos traços coloridos dos mapas que nos garantem a certeza do caminho, mas pela antecipação de tudo o que esses mesmos mapas não contam: as cores; os cheiros; as coisas; as gentes, o infindável isto e aquilo que deslumbra quem procura pela simples razão de querer ver.

Não é sensação nova, de resto. É sempre assim; todos os anos; sempre que possível; tanto que às vezes, nesta mesma estrada me dá vontade de fechar os olhos e deixar o carro ir, que ele já deve conhecer o caminho.

Café! Tão importante quanto o esticar das pernas a que me obrigo de quando em vez numa área de serviço ou de descanso, para desentorpecer os músculos e aclarar a névoa hipnótica da infindável sucessão dos traços brancos na autoestrada (wir fahren, fahren, fahren, auf der autobahn) que me pesa nas pálpebras e me fixa o olhar, momentaneamente, em nada, sinal inequívoco de que é hora de parar.

Uma, duas, três vezes até Trujillo, que o calor já aperta e o que estou mesmo a precisar é de um gelado, desses que são mais água e corante que outra coisa, e que derretem pau abaixo até transformarem os dedos em matéria autocolante, mas que transbordam de fresco e de memória de quando contávamos as moedas nos bolsos, sempre das mais pequenas, para os comprar no carrinho dos sorvetes.

Trujillo é escala habitual por isso não nos demoramos e, de costas voltadas à enorme estátua do Pizarro, retomamos a estrada, Estremadura fora que Castela já está próxima. 

Algures a meio a paisagem muda. Estamos mais alto, e o horizonte abre-se em vistas largas, de genérico de filme em technicolor e cinemascope. Só falta mesmo uma linha fina de poeira a levantar-se, lá ao fundo, a denunciar um qualquer Stuart Granger ou John Wayne em heroico galope.

Infelizmente não se pode parar e as imagens que guardo são apenas as da memória - fraco, muito fraco, negativo para imprimir, para quem não consegue desenhar seja o que for sem uma máquina fotográfica.

Galgamos quilómetro atrás de quilómetro e o ponteiro do combustível começa a ameaçar colar-se ao lado esquerdo do mostrador. Há muito tempo que não vemos um posto de abastecimento. Uma primeira tentativa de sair da estrada e entrar num povoado em busca do precioso destilado de petróleo resulta infrutífera, mas, mais à frente, dizem o mapa e as tabuletas está Tarancón, que nos parece ter dimensão suficiente para não poder viver sem uma estação de serviço por perto. Acertamos… e atestamos.

Não está longe o destino: Cuenca, cidade da serra a quem empresta o nome, no sopé de outra serra, a de Albarracin, que nos dá o rio mais longo da Península, nosso a partir das belas portas de Rodão, e do mundo, quando para ele se abre no Terreiro do Paço.

Chegamos e a estrada leva-nos direito ao hotel. Por uma vez não perdemos tempo à procura; também não perdemos tempo no hotel, que a cidade espera para ver, o dia já vai adiantado e, acima de tudo, mesmo sem saber onde é, já nos decidimos por uma essencial e fresca caña na Plaza Mayor.

Armados da necessária planta, partimos à procura da cidade velha, alcantilada entre rios e a uma altitude que recomenda o uso de outro transporte que os pés até lá chegar. Deixamos o carro num parque, perto do castelo, e iniciamos a descida por ruas de sabor renascentista, estreitas, resguardados na sombra dos prédios velhos, altos, exibindo curiosas varandas de ferro e laje.











É tarde, e no fim da rua que se abre para a Plaza Mayor, a catedral já não admite visitas, sentamo-nos numa esplanada à sobra do colorido das casas altas que flanqueia a praça e cumprimos o combinado: e que bem que sabe a frescura dourada da cerveja sobre os quase oitocentos quilómetros do dia e a hora de caminho ao calor que parece não querer abrandar.



Retemperados, continuamos o caminho que o já muito usado “guia de Espanha” nos indica, como  outros que parecem ter guardado também para a hora da sombra, o prazer da despreocupada descoberta.


Da escarpa onde se insinuam as “casas colgadas”, olhamos o parador, lá em baixo, sobre o rio, banhado agora em Luz, e descemos até à ponte para as irrevogáveis fotografias de turista alegre, misturados com famílias e casais praticantes do famigerado auto-retrato (“papa, yo quiero um palo de selfie”, ouço um criança suplicar…)



Voltamos, estrada acima e decidimos que está na hora de regressar ao hotel. Já no carro e no caminho uma placa indica “Ciudad encantada”; julgando-a perto, não resistimos ao apelo das estranhas formações rochosas que já tínhamos visto nas fotografias, e lá obrigamos o carro na direção da seta castanha.



A estrada serpenteia ao longo do rio, de um verde de quartzo, leitoso; estranho.

Paramos para fotografar, apesar da luz, da falta dela, da irrelevância do sítio; mas há rio e árvores… vale sempre a pena tentar.


Seguimos viajem. No cruzamento pergunto ao condutor de um outro carro se a cidade encantada ainda é muito longe. Trinta quilómetros, é a resposta, e a esta hora já fechou, acrescenta.
É pena, fica para a próxima, que amanhã é dia de seguir em frente, que hoje, o dia e o corpo já pedem descanso.


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