Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
4 de agosto
O calor de um agosto recente entra pelas janelas semiabertas do carro. Ainda é cedo e, por enquanto, suporta-se facilmente, para mais quando empurrado pelos cento e tal quilómetros hora em que o ponteiro do velocímetro oscila, num constante mais-coisa-menos-coisa.
Sabe-me bem a estrada; não pela inevitabilidade das várias
horas que passaremos sentados sobre os finos traços coloridos dos mapas que nos
garantem a certeza do caminho, mas pela antecipação de tudo o que esses mesmos
mapas não contam: as cores; os cheiros; as coisas; as gentes, o infindável isto
e aquilo que deslumbra quem procura pela simples razão de querer ver.
Não é sensação nova, de resto. É sempre assim; todos os
anos; sempre que possível; tanto que às vezes, nesta mesma estrada me dá
vontade de fechar os olhos e deixar o carro ir, que ele já deve conhecer o
caminho.
Café! Tão importante quanto o esticar das pernas a que me
obrigo de quando em vez numa área de serviço ou de descanso, para desentorpecer
os músculos e aclarar a névoa hipnótica da infindável sucessão dos traços
brancos na autoestrada (wir fahren, fahren, fahren, auf der autobahn) que me
pesa nas pálpebras e me fixa o olhar, momentaneamente, em nada, sinal
inequívoco de que é hora de parar.
Uma, duas, três vezes até Trujillo, que o calor já aperta e
o que estou mesmo a precisar é de um gelado, desses que são mais água e corante
que outra coisa, e que derretem pau abaixo até transformarem os dedos em
matéria autocolante, mas que transbordam de fresco e de memória de quando
contávamos as moedas nos bolsos, sempre das mais pequenas, para os comprar no
carrinho dos sorvetes.
Trujillo é escala habitual por isso não nos demoramos e, de
costas voltadas à enorme estátua do Pizarro, retomamos a estrada, Estremadura
fora que Castela já está próxima.
Algures a meio a paisagem muda. Estamos mais alto, e o
horizonte abre-se em vistas largas, de genérico de filme em technicolor e
cinemascope. Só falta mesmo uma linha fina de poeira a levantar-se, lá ao fundo,
a denunciar um qualquer Stuart Granger ou John Wayne em heroico galope.
Infelizmente não se pode parar e as imagens que guardo são
apenas as da memória - fraco, muito fraco, negativo para imprimir, para quem
não consegue desenhar seja o que for sem uma máquina fotográfica.
Galgamos quilómetro atrás de quilómetro e o ponteiro do
combustível começa a ameaçar colar-se ao lado esquerdo do mostrador. Há muito tempo que não vemos um posto de abastecimento. Uma primeira tentativa de
sair da estrada e entrar num povoado em busca do precioso destilado de petróleo
resulta infrutífera, mas, mais à frente, dizem o mapa e as tabuletas está
Tarancón, que nos parece ter dimensão suficiente para não poder viver sem uma
estação de serviço por perto. Acertamos… e atestamos.
Não está longe o destino: Cuenca, cidade da serra a quem
empresta o nome, no sopé de outra serra, a de Albarracin, que nos dá o rio mais
longo da Península, nosso a partir das belas portas de Rodão, e do mundo, quando
para ele se abre no Terreiro do Paço.
Chegamos e a estrada leva-nos direito ao hotel. Por uma vez
não perdemos tempo à procura; também não perdemos tempo no hotel, que a cidade
espera para ver, o dia já vai adiantado e, acima de tudo, mesmo sem saber onde
é, já nos decidimos por uma essencial e fresca caña na Plaza Mayor.
Armados da necessária planta, partimos à procura da cidade
velha, alcantilada entre rios e a uma altitude que recomenda o uso de outro
transporte que os pés até lá chegar. Deixamos o carro num parque, perto do
castelo, e iniciamos a descida por ruas de sabor renascentista, estreitas,
resguardados na sombra dos prédios velhos, altos, exibindo curiosas varandas de
ferro e laje.
É tarde, e no fim da rua que se abre para a Plaza Mayor, a
catedral já não admite visitas, sentamo-nos numa esplanada à sobra do colorido
das casas altas que flanqueia a praça e cumprimos o combinado: e que bem que
sabe a frescura dourada da cerveja sobre os quase oitocentos quilómetros do dia
e a hora de caminho ao calor que parece não querer abrandar.
Retemperados, continuamos o caminho que o já muito usado
“guia de Espanha” nos indica, como
outros que parecem ter guardado também para a hora da sombra, o prazer
da despreocupada descoberta.
Da escarpa onde se insinuam as “casas colgadas”, olhamos o
parador, lá em baixo, sobre o rio, banhado agora em Luz, e descemos até à ponte
para as irrevogáveis fotografias de turista alegre, misturados com famílias e
casais praticantes do famigerado auto-retrato (“papa, yo quiero um palo de
selfie”, ouço um criança suplicar…)
Voltamos, estrada acima e decidimos que está na hora de
regressar ao hotel. Já no carro e no caminho uma placa indica “Ciudad
encantada”; julgando-a perto, não resistimos ao apelo das estranhas formações
rochosas que já tínhamos visto nas fotografias, e lá obrigamos o carro na direção
da seta castanha.
A estrada serpenteia ao longo do rio, de um verde de
quartzo, leitoso; estranho.
Paramos para fotografar, apesar da luz, da falta dela, da
irrelevância do sítio; mas há rio e árvores… vale sempre a pena tentar.
Seguimos viajem. No cruzamento pergunto ao condutor de um
outro carro se a cidade encantada ainda é muito longe. Trinta quilómetros, é a
resposta, e a esta hora já fechou, acrescenta.
É pena, fica para a próxima, que amanhã é dia de seguir em
frente, que hoje, o dia e o corpo já pedem descanso.
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