Claro que é a
cor. Claro que são os céus revoltos e cheios de nuvens em infinitas matizes de
cinzento e branco e preto (eu sei que não estou a ser muito preciso mas há
brancos e pretos que, para mim, são tudo menos cinzentos). Claro que é o brilho
da água nas folhas. Claro que é a água. Claro que é tudo isto, o outono.
Tomo a estrada
na Serra e parto à descoberta, confortável no aconchego de roupas que me
escondem a pele da brisa que, com a subida do caminho, sobe também ela a vento,
límpido, claro, benfazejo.
Aqui e ali, já
as bétulas e os carvalhos começaram a alaranjar, alastrando em contraponto com
o verde dos castanheiros que oferecem ao chão ouriços repletos de doçura bem
resguardada (como sói acontecer com os mais preciosos tesouros) pelas aguçadas
pontas da miríade de espinhos que os adornam.
Paro para
fotografar. Sem outra pressa que a de apanhar a luz que se esconde na
nuvem, a intermitente calma que impede as folhas de tremer, o fluir da
água que corre ainda pouca mas mesmo assim já alimentada pelas primeiras chuvas
que as semanas anteriores trouxeram.
Fotografar é,
tal como a viagem uma constante procura. Talvez seja isso que mais me atrai em
ambas, já que a descoberta não deixa de lhe ser um adequado corolário. Mesmo em
sítios que repetidamente visitamos, a viagem é sempre nova, como o é a
descoberta. E aqui, na Serra, é uma quase primeira vez, porque os dedos das
duas mãos não chegam para lembrar a última vez que corri estas estradas
e senti o sopro forte do vento, tal como por estes dias às portas do castelo de Linhares da Beira ou a beleza calma dos bosques nas Penhas da Saúde ou a
magnifica desolação das pedras nuas a caminho da Torre.
Claro que é
tudo isto o outono, num tempo estranho, desconfortável, atravessado por um medo
que se não vê de outra forma que quando se olha para o única coisa que nos
deveria dar alento: as pessoas.
Tementes de um
inimigo que se não vê, escondemo-nos uns dos outros, viramo-nos as costas,
afastamo-nos, isolam-nos. E ainda assim, como escrevi há dias a alguém, tudo
isto não é forçosamente pior, não fora a causa que o determina. De facto, expurgada de muito do mundano e do
supérfluo que, sem queremos, se lhe cola, a existência pode ser mais atenta,
mais arguta, mais...essencial.
Como
essenciais são as imagens que a paisagem me oferece e eu tento guardar em
combinações infinitas de 0s e 1s, dizem-me. A primeira vez que vim à Serra,
tinha há pouco minha primeira máquina de 35mm minimamente boa (Yashika
electro 35), e começava a descobrir a virtude gradual do preto e branco em
filmes que, como tantos aprendizes de feiticeiro, revelava depois em casa,
entre a escuridão da despensa e o lavatório da casa de banho.Hoje tudo é
tão mais fácil. Mal se carrega no botão do disparador, a imagem aparece no écran
nas costas da máquina, como por magia, com toda a informação que nela está
contida. Tão fácil que nos esquecemos, tantas vezes, do que mais importa: olhar
para ver e não apenas para olhar.