O homem que pedala, que ped'alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas :
tem o por vir na pedaleira
(Alexandre O'Neill)
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas :
tem o por vir na pedaleira
(Alexandre O'Neill)
Há um ano que pedalo, no ir e vir de todos os dias. Antes já
pedalava, desde há muito, mas agora faço-o com a regularidade que roubei ao
autocarro. Contas de aritmética simples e de “igual a” dão-me quatro mil no
resultado. Tanto quanto de casa às fronteiras da Ucrânia com a Rússia (que
obviamente não procuraria por estes dias conhecer) ou de casa até ao cabo
Norte, lá pelas brancuras da Noruega.
Não procuro nada em especial senão locomoção e prazer. Dois
direitos que me são caros e inalienáveis. E a bicicleta garante-me ambos, o “por vir na pedaleira” como inigualavelmente
disse um dia o O’Neil.
Parêntesis
Momento de natural e rebuscada vaidade: eu conheci o homem.
O Poeta. Isto é, estive ao pé dele
várias vezes embora as circunstâncias não fossem daquilo que finamente se
define como privar. Aliás, privado fiquei eu de resposta no dia, o único,
creio, em que me dirigiu palavra, para me pregar um enorme e merecido raspanete
por algo que tinha a ver, acho (quase quarenta anos depois, a memória da causa,
que não do efeito, já me vai falhando) com os pés em cima de uma cadeira do
teatro onde estávamos, ou qualquer outra patetice de puto libertário e
libertino, ou simplesmente impertinente e mal-educado.
Fecha parêntesis
O ar, que se faz vento; a estrada, que se faz corrida; os
outros, que se fazem trânsito e os do passeio, que se fazem passado, tudo na
bicicleta se prova e saboreia com o prazer dos simples.
A minha bicicleta tem um pequeno motor elétrico que me ajuda
nas subidas. Combinação perfeita, porque ainda que arfe quando a o declive é
mais longo e pronunciado, nunca o coração me promete saltar de entre a
pulmadura (palavra magnífica que não encontro no léxico mas que ouvi no meio
das aulas de português entre duas baforadas de Ritz - ou seria SG? - a quem
tinha pleno direito de a inventar).
Parêntesis
Tinha a letra mais miudinha e certa que alguma vez vi e
enchia as aulas de fumo e de deuses gregos, logo a mim que nos anos de liceu nem aos deuses cá
da terra prestava atenção que fosse (bem, o tempo passa e algumas coisas nunca
mudam…). Dava aulas de latim também, a dois alunos daqueles que ousavam notas
impróprias, mas eu, tanto de umas como de outras, estava absolutamente livre.
O Virgílio Ferreira era um chato!
Na altura.
Que pena tenho eu de o ter tido à mão fora de tempo.
Fecha parêntesis
Sol, vento, chuva, nada é impróprio ou incontornável para
uma bicicleta. Se assim fosse não existiria Holanda, nem Dinamarca, porque as
pessoas não sairiam de casa. É moda? Sim, por aqui começa a ser, ou não
fossemos nós, neste recanto da ibéria,
dados a tudo o que é coisa com o mais leve cheiro a modernaço e pimpão…. mas,
por definição, as modas passam, e o que importa mesmo é o resíduo, o ”assento”
que, se tiverem de verdade algum substrato, acabam por deixar. É por isso que, por uma vez, acredito que
alcançaremos a massa crítica que separa
a moda do natural. Assim foi em cidades
onde a bicicleta é agora transporte democrático e igualitário, partilhada como
serviço público.
E o prazer de me sentir vento? E o chão que se enrola sob a
tira fina de borracha em ritmo redondo e evoca música, que ouço cá dentro, onde
não são precisos auscultadores? E as linhas que penso, leio e escrevo? Mesmo nas subidas…
E, logo a seguir, a descida, sem esforço, sem sequer
pedalar, embalada apenas pelo ruído seco dos pneus sobre o asfalto.
Tudo pelo preço de um simples exercício de pernas em circular
ostinato de músculos…uma pechincha,
meus caros, uma pechincha…
A eterna bicicleta:
ontem velha limousine dos pobres,
hoje marca de moderno e urbano (deste
último, em todas as aceções).
Parêntesis
Urbano também. Tavares Rodrigues. Não sei se ele alguma vez
andou de bicicleta (que o faria por certo com a graça da imaculada e
elegantíssima figura) mas lembro o homem sábio de tudo que me enchia as aulas
de Literatura Francesa com a leveza de uma presença serena, exigente e
sabedora.
Fecha parêntesis
Há um ano que pedalo, no ir e vir de todos os dias.
Tenho o por vir na pedaleira!
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