quarta-feira, 13 de agosto de 2014

O homem que pedala, que ped'alma
com o passado a tiracolo,
ao ar vivaz abre as narinas :
tem o por vir na pedaleira

                       (Alexandre O'Neill)


Há um ano que pedalo, no ir e vir de todos os dias. Antes já pedalava, desde há muito, mas agora faço-o com a regularidade que roubei ao autocarro. Contas de aritmética simples e de “igual a” dão-me quatro mil no resultado. Tanto quanto de casa às fronteiras da Ucrânia com a Rússia (que obviamente não procuraria por estes dias conhecer) ou de casa até ao cabo Norte, lá pelas brancuras da Noruega.

Não procuro nada em especial senão locomoção e prazer. Dois direitos que me são caros e inalienáveis. E a bicicleta garante-me ambos,  o “por vir na pedaleira” como inigualavelmente disse um dia o O’Neil.

Parêntesis

Momento de natural e rebuscada vaidade: eu conheci o homem. O Poeta. Isto  é, estive ao pé dele várias vezes embora as circunstâncias não fossem daquilo que finamente se define como privar. Aliás, privado fiquei eu de resposta no dia, o único, creio, em que me dirigiu palavra, para me pregar um enorme e merecido raspanete por algo que tinha a ver, acho (quase quarenta anos depois, a memória da causa, que não do efeito, já me vai falhando) com os pés em cima de uma cadeira do teatro onde estávamos, ou qualquer outra patetice de puto libertário e libertino, ou simplesmente impertinente e mal-educado.

Fecha parêntesis

O ar, que se faz vento; a estrada, que se faz corrida; os outros, que se fazem trânsito e os do passeio, que se fazem passado, tudo na bicicleta se prova e saboreia com o prazer dos simples.

A minha bicicleta tem um pequeno motor elétrico que me ajuda nas subidas. Combinação perfeita, porque ainda que arfe quando a o declive é mais longo e pronunciado, nunca o coração me promete saltar de entre a pulmadura (palavra magnífica que não encontro no léxico mas que ouvi no meio das aulas de português entre duas baforadas de Ritz - ou seria SG? - a quem tinha pleno direito de a inventar).

Parêntesis

Tinha a letra mais miudinha e certa que alguma vez vi e enchia as aulas de fumo e de deuses gregos, logo  a mim que nos anos de liceu nem aos deuses cá da terra prestava atenção que fosse (bem, o tempo passa e algumas coisas nunca mudam…). Dava aulas de latim também, a dois alunos daqueles que ousavam notas impróprias, mas eu, tanto de umas como de outras, estava absolutamente livre.

O Virgílio Ferreira era um chato!

Na altura.

Que pena tenho eu de o ter tido à mão fora de tempo.

Fecha parêntesis

Sol, vento, chuva, nada é impróprio ou incontornável para uma bicicleta. Se assim fosse não existiria Holanda, nem Dinamarca, porque as pessoas não sairiam de casa. É moda? Sim, por aqui começa a ser, ou não fossemos nós, neste recanto  da ibéria, dados a tudo o que é coisa com o mais leve cheiro a modernaço e pimpão…. mas, por definição, as modas passam, e o que importa mesmo é o resíduo, o ”assento” que, se tiverem de verdade algum substrato, acabam por deixar.  É por isso que, por uma vez, acredito que alcançaremos a massa crítica que  separa a moda do natural. Assim foi em  cidades onde a bicicleta é agora transporte democrático e igualitário, partilhada como serviço público.

E o prazer de me sentir vento? E o chão que se enrola sob a tira fina de borracha em ritmo redondo e evoca música, que ouço cá dentro, onde não são precisos auscultadores? E as linhas que penso, leio e escrevo? Mesmo nas subidas…

E, logo a seguir, a descida, sem esforço, sem sequer pedalar, embalada apenas pelo ruído seco dos pneus sobre o asfalto.

Tudo pelo preço de um simples exercício de pernas em circular ostinato de músculos…uma pechincha, meus caros, uma pechincha…

A eterna  bicicleta: ontem velha limousine dos pobres, hoje marca de moderno e  urbano (deste último, em todas as aceções).

Parêntesis

Urbano também. Tavares Rodrigues. Não sei se ele alguma vez andou de bicicleta (que o faria por certo com a graça da imaculada e elegantíssima figura) mas lembro o homem sábio de tudo que me enchia as aulas de Literatura Francesa com a leveza de uma presença serena, exigente e sabedora.

Fecha parêntesis

Há um ano que pedalo, no ir e vir de todos os dias.

Tenho o por vir na pedaleira!

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