sexta-feira, 29 de novembro de 2013


Amesterdão, 21- 24 de novembro - I

Anne Frank

é na memória que se guarda de um tempo que não vivi que começo a visita à cidade que nos acolhe na quase penumbra de um  frio denso, nevoento.

Percorro a pouca distância que me leva de casa ao 263 da Prinsengracht, estonteado pela contínua cortina de bicicletas que parece correr e descorrer pelas ruas. Maravilha-me o quase silêncio que me confunde o comportamento de peão... ao ponto de quase ser atropelado uma ou duas vezes por ciclistas...por mea culpa, mea maxima culpa, que não olho para onde devo, porque aqui a estrada é das pessoas e não dos carros.



Compramos o bilhete e entramos, sem filas, com a calma que novembro nos permite, isentos da congestiva barafunda que habita os museus nos meses de sol.

Os espaços  da casa estão praticamente nus. Mas sente-se o recheio pútrido da história, no soalho, nas paredes, nas escadas. Em cada sala um curto filme narra a infâmia. No último andar, os cadernos: a escrita de uma mão menina que não chegou ao fim, quando o fim estava tão próximo.

Todos sabemos, todos lemos, todos ouvimos, vezes sem conta. Tantas que aprendemos a conviver com a nojenta barbárie como se mais não fosse que  um episódio que se capitula em compêndio de escola e se encerra na cronologia das curiosidades.

Não aqui. É por isso que estas paredes me pesam agora mais; que estas escadas, íngremes, me custam ainda mais a subir; que estes cadernos me obrigam a pensar nas crianças, que já fui, que já criei.


Saio para a rua e para o conforto de um sol que, afinal, apareceu, ainda que tímido e já oblíquo o suficiente para dourar a água calma do canal. Respiro o dia. De alguma forma respiro a liberdade.




Anne Frank

The memory of a time that I have not lived is the starting point  for the visit to the city that welcomes us in the half-light of a dense and cloudy cold .

I cover the small distance that takes me from the apartment to n. 263 of Prinsengracht, stunned by the continuous curtain of bicycles that glides along the streets. I am in awe at the near silence, my pedestrian behavior totally bewildered…  to the point of being almost ran over twice by cyclists…  mea culpa, mea maxima culpa.. I should have looked to where it matters, for here the road is for the people, not for the cars.


We buy the tickets and we go in facing no queue at all, in the calm that November allows us, free from the congestive mayhem that inhabits museums during the sunny months.

The spaces within the house are virtually empty. But the putrid presence of the history can be felt on the floor, on the walls, on the steps. In each room a short video narrates the infamy. In the last floor, the notebooks: the writing of a childish hand that could not endure until the end, when the end was so very near.

We all know, we’ve all read, we’ve all heard, time and time again. So many times that we have learned to live with the filthy barbarity as if it were nothing more than a chapter of a school manual, a dot in the timeline of all the world’s great curiosities.

Not here. That is why these walls are falling down on me; that these steep stairs are even harder to climb, that these notebooks force me to think about the children.. the one that I was, those that I’ve raised.

I go out on the street to the comfort of a sun that, nonetheless, has appeared though timid and already oblique enough to gild the calm waters of the canal. I breathe the day. Somehow, I breathe freedom.





terça-feira, 19 de novembro de 2013



Da ponta alta da escarpa, moldada pela água e pelo vento, viro costas à invernia que sopra leve sobre o rosmaninho seco e os cachos vermelhos das aroeiras:

Tanto e tão belo azul. Até onde o mundo, por agora,  acaba. Azul de mar e ar. Como se um só fosse, como se mais cor não houvesse.

Dos enormes rasgões sobra a espuma branca das nuvens. É ela que faz o azul vibrar e dá forma à composição. E no entanto é nada, apenas branco, o valor circunspecto de uma pausa na grande música do ar.

Por certo o mar terá também engolido uma nuvem: resignada assoma ainda uma última vez por sobre o suave trilo das ondas.


Cá de cima, da escarpa, olho o mar e o ar: não é preciso bilhete e a sala nunca esgota. A programação, essa, é sempre a melhor.




Standing on the high tip of the cliff moulded by wind and water, I turn my back on the winter breeze that lightly blows over the dried rosemary and the red bunches of the mastic shrubs:

So much blue, such a beautiful blue. Extending to where the world for now ends. Blue of sea and air. As if only one, as if there was no other.

The white foam of the clouds bursts out of the outsized cuts. It is it that makes the blue vibrate and balances the composition. And yet it is naught, just white, the circumspect value of a pause in the great music of the air.

The sea must have swallowed a cloud too, I'm sure: though resigned it emerges one last time over the soft trill of the waves.

From up here, on the cliff, I look at sea and air: no admission ticket needed and the venue is never sold out. 

The program is always the best, though!
.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Monsaraz
Há água, muita água, no ar, roubada ao enorme lago em que se metamorfoseou o rio que o alimenta, desde que o gigantesco garrote de betão precintou, mais a sul, as encostas bordadas de estevas e pedra escura, xistosa.



Tanta que se não vê o sol. Tudo na volta do olhar parece rendido à palidez de uma inesperada escala de cinzentos, de onde sobressai, aqui e ali, um esbracejar aflito de verde ou castanho, logo engolido pela enorme onda da névoa densa que alastra, varrendo chão e ar.




Na imobilidade das árvores, cobrem-se também elas de água, em minúsculas gotas que lhes vestem a fina pele, em algumas ainda verde, noutras já luzidio breu e noutras ainda misturando matizes de ambos, conforme a maturação as pinta.




Dentro guardam o que agora se não vê: a luz dourada que meses a fio foram acumulando na densa e acre polpa e que, a custo e contra vontade, libertarão mais tarde, esmagadas na força bruta das prensas.

Luz que me adoça o pão que, de quente ainda, se não consegue cortar e se parte com as mãos. Sai dele fumo que cheira a milagre, a fermento, a farinha. Prazeres de essência que fundem a terra com as coisas e nos lembram que também nós temos lugar aqui, mas que, para o termos, precisamos conquistá-lo, a pulso, com o esforço a que a terra obriga, mas que generosamente retorna em fruto, como as azeitonas que me empenho em arrancar às oliveiras do pequeno pomar.



Não é ainda o tempo dos frios e se tenho o corpo molhado não é só da água que anda no ar, mas também da água que me sai pelos poros. Empenho-me com vigor na tarefa. Sabe-me bem o esforço. Por certo o saber bem que deslumbra os citadinos, bem sei, que olham o trabalho árduo do campo com um misto de curiosidade e cautela (senão mesmo de puro  desdém) por o saberem, para eles, episódico e… exótico.

Tão diferente o é para quem da terra faz sustento…

A manhã vai já  a meio, e o dia segue escuro, à míngua da estrela que teima em não sair por detrás da cortina cinzenta que tudo tapa. Temo mesmo que hoje não chegue a mostrar-se se, depois da névoa, as nuvens não se arredarem também.

E, ainda assim, ao fundo do pomar há luz e cor: vaidoso, soberbo, o diospireiro olha o pálido dia e, orgulhoso, mostra o lume que, por estes dias, lhe aquece as folhas e me doura a alma.


There is water in the air, lots of it, stolen from the vast lake that its feeding river has become ever since the huge concrete garrote has strapped up, further downstream, the slopes of the banks, laced with rock roses and dark schistose stones.

So much water that the sun is nowhere to be seen. Everything within eyesight seems to have yielded to the paleness of an unexpected palette of greys, from where, here and there, distressed notes of green or brown emerge, only to be fast engulfed by the spreading mist wave that sweeps both soil and air.

In the stillness of the trees they too are covered in water: tiny droplets that coat their thin skin, still green in some of them, pitch black already for some other, or exhibiting varying mixes of both colours, for yet some other,  as ripeness will have it.

Inside they harbour what cannot now be seen: the golden light that for months they have been accumulating in their dense and sour pulp  and which they will later reluctantly  liberate under the crushing force of the press. 

Light that sweetens the still warm bread that cannot be cut and has to be hand broken. It exhales smoke, and it smells of miracle, of yeast, of flour. Pleasures of essence that blend soil and things and remind us that we too have our place in here, but also that we will have to conquer it, by hand, with the effort that the land demands and which it so generously returns in fruit, like these olives that I so hard try to strip from the trees in the small orchard.

It is not the time of the colds yet and if my body is wet it is not only from the water that hangs in the air but also from the water that spurts from my pores. I take to the task with vigorous commitment and I find pleasure in the effort. Most certainly the type of pleasure that awes city people - I know  it well - who look down on the hard work in the fields with a mix of curiosity and cautiousness (if not with pure contempt…) knowing that for them it is but  episodic and… exotic.

So different from what it really is like for those that take their sustenance from the land…

The morning is already half gone and the day is still dark, lacking the star that persists in hiding behind the grey curtain that, for now, shadows everything. I fear it might  not show itself today, if after the mist has cleared, the clouds themselves will not get out of its way.

And yet, by the end of the orchard there is light and colour: vain and arrogant, a persimmon tree stands up to the pale day and proudly exhibits the fire that these days warms its leaves and gilds my soul.