Não, não vi nada que se pareça com um leprechaun. Talvez porque, na verdade, muito pouco vi, se bem que não por falta de tempo, mas antes por tempo a mais, daquele que embirra com turistas, visitantes e outros voyeurs da geografia.
Um longo manto cinzento debruado a chuva, frio, granizo, vento, muito vento. De Belfast a Cork, de Dublin a Galway. Toda a rosa-dos-ventos, portanto, e, ainda assim, como não admirar o pouco que se mostra, entre os verdes agrícolas do sul e o ainda castanho das charnecas e turfeiras do norte,
temperados com o amarelo vivo dos narcisos que, por estes dias, salpicam toda a ilha de luz, como pequenos sois, como quem diz ao outro, ao grande, que teima em esconder-se, “não és aqui preciso!”.
Dublin |
Dublin, a grande cidade, que, hoje, quando as fronteiras não são fisicamente muito mais que riscos grossos nos mapas, como qualquer capital é cosmopolita nos habitantes e visitantes, foi ponto de partida e, trezentos e sessenta graus depois, de chegada também. Tudo a correr pelo outro lado da estrada, porque aqui se guia como na grande ilha do lado, ou quase diria, do outro lado da névoa húmida que se nos colou como aura ou como catarata que não deixa ver mais que suspeitas de uma imensa e bruta beleza, de vales, escarpas, mar, planuras, lagos.
Dublin |
Só as cidades se mostraram por entre nesgas de um sol episódico. Tudo o resto vive preso à água, que nunca está longe, que se sente no ar, do mar, dos lagos e dos rios que correm por toda a parte e dão whisky, e dão cerveja, e dão fruta, e dão leite e dão lã dos milhares de carneiros que pespontam montes e charnecas, sem que pareçam estar obrigados a nenhuma vedação.
Olhamos pelo buraco do sol como quem olha pelo buraco da fechadura. A cidade e as serras em diário de um voyeur, feito de notas breves porque breves foram os vislumbres…soube a pouco, dir-se-ia…há de haver mais, dir-se-á…quem sabe…?
Óscar, poucas estátuas me ficaram na memória de voyeur citadino como a tua. Deslumbras, como da primeira vez, pela cor, pela suavidade do traço, pela nonchalance (mereces mesmo um itálico, não é?...) da pose, ali, frente a casa, no canto do jardim. Sláinte!
Memorial de Óscar Wilde
As portas de cor, que brilham mesmo à chuva, que dão brilho à chuva, que se abre para deixar por momento brilhar a agulha que toca o céu frente aos correios em O’Connel Street, à beira de um século sobre os tiros da revolta que aqui proclamaram uma primeira República da Irlanda. Sláinte!
O rio e as outras torrentes: o tráfego, as pessoas, tudo precisamente regulado pela ordem cromática dos semáforos.
A obrigatória descida aos pubs, a abarrotar com as mais diversas categorias de razões para por eles passar: que o diga ela, que que passeia tutu e liga com as amigas na despedida de solteira; ou eles, colarinhos e gravatas desapertados na ressaca de um casamento; aqueloutros, que trocam dois dedos de conversa; o do fundo do balcão, entregue ao exercício solitário de um copo; muitos, entregues à confirmação da súmula descritiva da última edição do guia turístico; eu, que para tudo olho e, mais que pessoas, busco música, que há, mas não da que procuro, até que, 3 pubs mais tarde (que são todos uns ao pé dos outros), ela finalmente me agarra pelos ouvidos, e me atira para a frente de um violino e de uma guitarra que, com entusiasmo genuíno, desdobram a vertigem estonteante de uma deliciosa reel. Sláinte!
Newgrange. Cinco mil anos depois profanamos um túmulo com a indiferença que nos dá a vontade de conhecer e sobram as perguntas habituais quando a história é suposição e não facto.
Gralhas, aos milhares, por toda a parte, cisnes, patos, e a visão inesperada de um glamoroso faisão na berma da auto-estrada.
Newgrange |
Cruzamos a fronteira, que não está lá mas que se sente nas bandeiras britânicas que agora se veem aqui e ali, na borda da estrada.
Gigante, a calçada, traçada a escopro e martelo (que só assim parece razoável obter-se tão geométrico resultado) pela mais telúrica das forças; gigantes as escarpas em Slieve League, tanto que não lhes vejo o cume… a água, sempre a água, feita cinzento, feita nuvens.
Giant's causeway |
Slieve league |
A erva, a lã da terra, que se oferece ao vento, ondulada, também aqui em Carrick-a-rede, Ponta que foi de salmões, dizem, aos milhares, e agora é de turistas, seguramente em comparável número quando os dias forem de sol e calma...
Kerrick-a-Rede |
Ulster, Belfast, a memória do navio tão grande que nem Deus o conseguia mandar ao fundo; a memória (a minha) dos noticiários, as bombas, os murais que tanto queria ver e não vi, a imponência vitoriana da Câmara Municipal, Art Déco no cruzamento da estrada e o estranho ato de usar uma moeda estrangeira, a boina que o vento me arranca da cabeça e atira ao tráfego, entre a Ópera e os azulejos de um pub magnífico.
Belfast |
O sabor genuíno de uma cidra no pub, na pequena Donegal, a abarrotar de música e conversa da boa, da que se molha ao balcão, enquanto ao fundo, ao pé das mesas, se bate o pé a compasso, ou não tivesse a música da terra a força que lhe dá espuma, a mesma que sobe pelas paredes do copo que parece cheio de café com leite e lentamente se transubstancia na escura, turfenta e caramélica guiness, a mais nacional das cervejas.
Os vales glaciares e as turfeiras, o apontamento pitoresco de um ou outro telhado de colmo, tudo vazio de gente, que o tempo não convida, mas ainda que convidasse, pouca diferença faria, porque quilómetro atrás de quilómetro sobra o espaço e faltam as gentes.
Sligo, a terra de Yeats, que compro em livro, mais tarde, em Cork, que tanto aqui chove…
A Galway das 14 famílias heraldicamente expostas na praça central e das ruas estreitas de casas à cores que à noite parecem cinzentas, para não destoar dos dias; dos pubs com música, da música nas ruas; das lojas de música, da música que fazemos a palmilhar o caminho. Sláinte!
Ali ao lado as escarpas, as Cliffs of Moher, que não visitamos, porque já lá estivemos, o tempo está péssimo e Cork espera, com um rio, e ruas com casas coloridas, e música na ruas e nos pubs e lojas de música, e gralhas e gaivotas e o cheio a maresia, antecâmara da costa que tomamos em Kinsale e nos repele na old head, em frente à porta para um exclusivo clube privado de golfe.
Cork |
Kinsale está deserta e nem mesmo as cores vivas das casas conseguem quebrar o cizento de um dia que vai morrendo em baixo contraste... um pouco mais de sol - eu era brasa... como não lembrar os versos do Sá Carneiro...
Kinsale |
Dublin e o círculo que se fecha, num último passeio de turista de sexta-feira santa, com a estranha e inesperada proibição de venda de bebidas alcoólicas, pubs fechados e seguranças a vigiar as estantes das bebidas nos supermercados, zelosamete enroladas em manga de plástico preto, para ocultar o pecado... idiosincracia, dirão os sociologicamente avisados, apenas outro cromo na caderneta de ridículos da espécie, digo eu, mais dado que sou à análise descomprometida...
Um último olhar sobre a ponte: indiferente o rio continua correr e, como todos os dias, há de levar, devagar na corrente, a noite que me despede. Sláinte!
Dublin |
A long grey veil, lined in rain, cold, hail, wind, lots of wind. From Belfast to Cork, from Dublin to Galway. The entire wind rose, therefore, and yet, how can one fail to admire what little is shown, from the agricultural greens of the South, to the brown and drab clad moors and bogs of the North, all seasoned with the vivid yellow of the daffodils that these days splash all the island with light, as if little suns that cry out to the other, the big one, that stubbornly fails to appear, “You’re not needed here!”.
Dublin, the big city, that today, when borders are physically but thick lines on the maps, is, as any modern capital, cosmopolitan in dwellers and visitors, was the starting and - three hundred and sixty degrees later - the ending point of a journey made on the other side of the road, for here one drives like they do in the great neighbouring island, or as one might say, on the other side of the humid mist that fell on us like an aura or a cataract that will not let one see more than the suspicion of immense and raw beauty; of valleys; cliffs; sea; plains; lakes.
Episodic surges of an episodic sun seem to grace the cities. The rest is somehow shadowed by water, the water that is never far, and that can be felt in the air, in the sea, in the lakes and rivers that run here, there and everywhere, and yield whiskey, and yield beer, and yield fruit, and yield milk and yield the wool of the thousands of sheep that spatter hills and bogs, free from any type of fencing.
I look through the hole of the clouds as if peeking through a keyhole. City and country in the diary of a voyeur, made up of brief notes, for brief were the glimpses… not enough to quench the will to see, one would say… who knows….?
Oscar, I know no other statue like yours. You still dazzle, like the first time I saw you, for all your colours; the smoothness of the lines, the nonchalance (you do deserve italics, don’t you….?) of your pose, there, right in front of your house, in the garden’s corner. Sláinte!
The colourful doors, that glow in the rain, that make the rain glow, the rain that stops for a moment so that the needle that touches the sky at O’Connell street might shine, almost one century after the shots that hereby proclaimed the first Republic of Ireland. Sláinte!
The river and the other torrents: traffic; people; all precisely regulated by the chromatic order of the traffic lights.
The mandatory descent to the pubs, filled with the most diverse categories of reasons for being there: she, dressed in tutu and garter enjoying a bachelorette’s party with her friends, or them, ties and neck buttons undone, in the hangover of a wedding; or those there, that chat; or the one by the end of the counter, alone in the solitary exercise of a glass; many going through the confirmation of what the latest guidebook says; I, who observe it all and search for music more than for people, and yes, there is music, but not of the type I look for, until 3 pubs later (they are all next to the other) she grabs me by the ears and throws me to the front of a fiddle and a guitar that with genuine enthusiasm unfold the stunning vertigo of a delicious reel. Sláinte!
Newgrange. Five thousand years later we desecrate a tomb with the indifference that comes from the will to learn and the usual questions emerge, as it will always happen when history is supposition and not fact.
Crows, by their thousands, everywhere, swans, ducks and the unexpected vision of a pheasant by the shoulder of the motorway.
We cross a border that isn’t there but that can be felt in the Union Jacks that are now to be seen here and there, both sides of the road.
Giant, the causeway, cut in hammer and chisel (how else could such a geometric result be achieved by the gods?) by the most telluric of all forces; giants, the cliffs at Slieve League, so much so that I cannot see their summit… the water, always the water, made grey, made clouds.
Grass, the wool of the earth, that is offered to the wind, wavy, also here in Carrick-a-Rede, once famous for salmon, by the thousands, and now famous for tourists, in comparable numbers, I’m sure, when the days of sun a calm finally come to stay.
Ulster, Belfast, the memory of a ship so huge that not even God could sink her; the memory (mine) of news services, the bombs, the murals that I so much wanted to see and did not, the victorian magnificence of the City Council. Art Déco by the crossroads and the strangeness of using a foreign currency; the cap that the wind pulls from my head and throws into the traffic, between the opera and the tilework of a magnificent pub.
The genuine taste of a local cider in the pub of little Donegal, bursting with music and good conversation, the type that one wets at the counter, while by the tables, feet are beaten in compass, or shouldn’t the local music have the strength of the foam that rises in the sides of the glass that seems to be filled up with milk and coffee only to slowly transubstantiate into the dark, peaty and caramelic Guinness, the most national of all beers.
The glacial valleys, the bogs, the picturesque note of a thatched roof, all barren, for the weather isn’t inviting and even if it did, no much of a difference would it make, because kilometre after kilometre, there is space to spare and a want of people.
Sligo, the hometown of Yeats, whom I buy later, in a book, in Cork, for here it is pouring…
The Galway of the 14 tribes, heraldically exposed in the central square and of the narrow streets with colored houses that seem to be grey in the evening, so as not to be that different from the day; of the pubs with live music; of the music in the streets; of the music shops; of the music we make with our feet while walking home. Sláinte!
There to side, close by, the cliffs, the Cliffs of Moher, which we did not visit this time, because we had already been there, the weather is terrible and cork is waiting, with a river and coloured houses, and music in the streets, in the pubs, in the music shops and with gulls and crows and the smell of the sea, the anteroom of the coast that we touch in Kinsale and that repels us in Old head, in front of the door of an exclusive private golf club.
Kinsale is a desert and not even the vivid colours of the houses manage to break the grey of a day that slowly comes to pass in low contrast… um pouco mais de sol - eu era brasa (a wee bit more of sun - and I’d be an ember …) how not to remember these lines of Sá Carneiro.
Dublin, and the journey goes full circle, with one last good Friday tourist walk, with the strange and unexpected prohibition of alcoholic drinks sale; closed pubs and security officers keeping an attentive eye on the beverages alleys of the supermarkets, all zealously wrapped up in black plastic , as if to hide the sin… idiosyncrasy will the more sociologically minded say, just another sticker in the album of the species’ ridicule gallery, says I, more in favor of uncompromised analysis…
One last
look over the bridge: indifferent, the rivers continues to run and, as every
day , it will eventually wither
the night away, the same night that sends me away. Sláinte!
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