Barcos. Mais barcos que não o são mais. Hoje já só convidam o olhar, convocam a história, que não contam mas invocam:
Era uma vez um belo barco. Não: quatro belos barcos. Todos irmãos. O maior, era o mais velho, claro está. Era nele que os pais, esforçadas traineiras de meia idade - ele com o castanho avermelhado do óxido a despontar aqui e ali, sempre que algum metal se mostrava por entre o corpo forte da madeira; ela já sombra de moça mas ainda airosa, apesar da queimada pintura azul e branca que lhe adoçava as elegantes linhas - confiavam para olhar pelos outros, os pequenos, tão semelhantes que muitos os pensavam gémeos, quando a chamada da maré e do peixe os obrigava a sair mar fora, rasgando água e ar com simétricos e convergentes rastos, brancos de espuma e negros de fumo.
Nessas ocasiões, sentia-se preso por não poder sair também, mas ainda assim aceitava o encargo com o orgulho de quem sente que outros nele confiam. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, a sua vez surgiria e nesse dia passaria para lá da linha, daquela linha lá ao fundo, onde as nuvens tocavam por fim o mar, que por agora lhe limitava o mundo.
Moínho da Mourisca - Setúbal
Os irmãos, esses não tinham corpo para sentir qualquer grilheta que não a da debandada da água que, 2 vezes por dia, sabiam certa, limitados que estavam a brincadeiras de ria, ao ritmo da remada dos mariscadores que os usavam. Para um deles, o mais jovem, dado a enjoos e indisposições pueris, não era fácil suportar o desconforto da retirada, sempre que perdida a flutuação se sentia adornado sobre um dos lados. No inverno, ao frio, ainda conseguia suportar o incómodo de se sentir tombado, debruçado sobre si próprio. Era no verão, no entanto, que o desconforto se transmutava em suplício, quando o sol quente libertava do lodo que nessas alturas lhe servia de leito, um cheiro doce, fastiento, tão diferente do salgado cheiro a mar, do perfume das algas e do iodo que com a maré cheia vinha lá do fundo, de onde os pais iam até se deixarem de ver, dia após dia.
Como em qualquer outra história, dir-se-á que eram felizes. Nada de excessos, de facilidades, que estes não convêm a personagens de caráter, antes aquela felicidade que une animais nas fábulas, famílias nas parábolas, ou o sol e a lua na eterna história dos dias.
Certo será também que os mais pequenos muitas vezes se deixavam contaminar pela graça da inconsciência e que não raras haviam sido as vezes em que pai ou mãe, ou até mesmo o irmão mais velho, farto de condescendências, os haviam chamado à razão.
Mas de crianças sempre se esperou que ousassem, e se aflitos se encontravam depois, perdidos entre canais e salinas, também seguro seria que nada de maior aconteceria, porque a ria morria ali e no campo que a bordejava não entraria por certo quilha.
Um dia, que a tantos outros parecia igual, pai e mãe saíram cedo para o mar em alegre sopros de buzina.
Um dia, que a tantos outros parecia igual, acabou por o não ser.
Um dia, que a tantos outros parecia igual, chegou ao fim sem que pai e mãe voltassem lá do fundo, de onde os flamingos aparecem alardeando o inverno.
Histórias do mar. Comuns e tristes. Toda a gente o sabe!
Foi há muito tempo.
Na charca onde se guardavam, continuam à espera. Os quatro: o mais velho e os outros três, aqueles que se dizia serem gémeos.
Apesar do tempo que passou continuam imóveis, tristes, e no inverno, quando chove, há quem diga que se lhes ouve um dócil pranto, abafado nos gemidos das cordas que o vai-vem da água retesa e alivia.
Eu, amante de barcos velhos e de crónicas de mar, acredito que seja verdade. Se assim não fosse, quem lhes contaria a história?
Once upon a time there was a beautiful boat. No: four beautiful boats. Brothers, all of them. The biggest one was of course the eldest. Upon him their parents, hard working middle aged trawlers - father exhibiting the occasional brownish oxide stain, on scraps of metal showing through the strong wooden body; mother, not a lass any longer and yet still graceful, in spite of the sunburned blue and white paint that lent charm to her elegant lines - would bestow the responsibility of looking after the others, the younger ones, so alike looking that many thought them to be twins, whenever the call of tide and fish urged them to leave, tearing water and air in symmetrical, converging, foam white and smoke black wakes.
On those occasions, the eldest brother felt trapped, sad for not being able to also go. Still he would proudly accept the task, for it brought him the satisfaction of knowing he was trusted. Sooner or later, he knew, his time would come, and on that day we would cross the line over, that line that dwelled there in the distance, where clouds finally touched the sea, the outer boundary to the world he knew.
His brothers, in turn, were too young to feel tied up by any other shackle than the receding water that, twice a day, forced an intermission in all their joyful playing amidst the marshes to the rhythm of the oars expertly used by local fishermen. Besides, the discomfort of the retreating water was something that one of them, the youngest, prone to nausea and puerile indispositions, found hard to bear, when laying stranded, all flotation lost, leaning on one side of the hull. In winter, in the cold, hard and displeasing as it might be, he found he could but barely bear the nuisance of feeling tipsy, leaning over himself. But in summer, discomfort would give way to torment, when a sweet, nauseating scent would rise from the mud he sat upon, all too different from the salty smell of sea, the perfume of algae and iodine, that the tide would bring over from that distant place where to ,day after day, mum and dad would navigate until they could no longer be seen.
As in any other story, it should be said that they were happy. Freed from any excess or undue ease of living as befits any person of character, they exhibited the same happiness that unites animals in fables, families in parabolas, or sun and moon in the everlasting story of the days.
As expected, the younger ones would also be tainted by the pleasure of carelessness and many were the times when father, mother, or even brother, fed up with condescending, would call them to reason.
But children are expect to dare and even if they would later find themselves lost in distress, amidst canals and salt flats , it was a known fact that nothing serious would ever happen, for the shallow strips of water bordered but flat fields, where no keel would ever venture.
One day, a day like so like many others, turned out not to be.
One day, a day like so like many others, came to pass, without mother and father returning from there, in the distance, wherefrom flamingoes appeared to spread the promise of winter.
Sea stories. All to common and sad. A well known fact!
All that happened a long time ago...
On the pond, where they dwell, they lay still. In waiting. The four of them: the eldest and the other three, those some said looked like twins.
In spite of all the time that has passed them by they remain motionless, sad, and in winter, when rain falls, some say a feeble weeping can be heard over the moaning of the mooring ropes that stretch and sag in line with the coming and going of the water.
I, the lover of boats and sea chronicles, believe it to be true. If it were not to be, who would tell their story?
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