domingo, 30 de junho de 2013


Mata Nacional dos Medos - Fonte da Telha

No calor, que se levanta seco de um chão pobre e sedento, soergue-se o mistério: há cor, muita! Tanta que vence qualquer comparação com o imenso pano azul que fecha todo o cenário na volta do proscénio.

Não fora assim e o estio seria ainda mais seco, mais pardento…mais verão; de todas, a estação que menos procuro, eu, caçador de  nuvens, admirador de nada, voyeur de céus e ar.

Há pois que evitar olhar o manto verde das copas dos pinheiros que, compactas e contínuas, parecem responder ao céu com a vontade de noutro céu se tornarem, também ele sumamente aborrecido, deslavado, plasticamente irrelevante.


Mata Nacional dos medos - Fonte da Telha

É preciso ir de novo ao fundo, como se os olhos, mais que o corpo,  respondessem automáticos à imposição da gravidade: falam talvez de sol, talvez de mar, talvez de ambos, e entusiasmadas com a sua presença próxima, agitam-se ao menor sopro. Oferecem à brisa o mistério de um corpo rasgado como flâmula de cavaleiro medieval, em tons vários de uma paleta que se estende entre rosa e lilás.

Frágeis, assinam-se em pose de pretensa humildade. Na verdade, assentes na nudez ereta do fino e apagado  caule convocam o belo.


 
Dianthus Broteri

Há quem o saiba  e responda, passeando um corpo frágil, num voo que ainda o é mais, curto, quase desajeitado. E, no entanto, se para o belo era a chamada, mais justa não poderia ser a resposta que, no brilho fátuo de asas de filigrana, ondula hesitante entre o castanho da erva seca e a fragância verde de  tomilho e rosmaninho.


  Nemoptera bipennis

Olho o sol e penso relógio: está na hora. Saio da mata suado, cansado, e (eu, que não procuro o verão) infinitamente contente!

 
Mata Nacional dos Medos - Fonte da Telha


The heath ascending from a soil both poor and thirsty gives way to mystery: there’s colour. Lots of it! So much so that it can easily prevail in any comparison with the endless blue that encircles the proscenium.

Were it not like that then summer would be even drier, drabber…summery; of the four, the season that I long for the least; I, the hunter of clouds, the admirer of naught, a voyeur of skies and air.

It is therefore mandatory not to look at the green blanket of the pine canopies that, compact and continuous, seem to answer the sky with a longing to becoming another sky themselves,  all too boring, dull, visually irrelevant .

One has to look down deeper again, as if the eyes, more that the body,  automatically answer the call of gravity: they probably talk about the sun, or the sea, or both, and excited by its proximity, they flutter in the slightest draft. They offer the breeze the mystery of a torn body as if the pennant of some medieval knight, in varying shades of a rose and lilac palette. All too fragile, they affect a pose of pretended modesty. In truth, sitting atop the erect nakedness of a thin and unassuming stem they summon beauty.



Dianthus Broteri

Some know it and heed the call perambulating a fragile body, in an even more fragile, short, almost awkward sort of flight.

But in spite of it, and if beauty was the object of the call, no fairer answer could there be than the ethereal glamour of  filigree wings, hesitantly waving amidst the brown of the dried grass and the green fragrance of thyme and rosemary.

I look at the sun and think watch: it’s high time. I leave the woods sweaty, tired, and (I, who  seek not summer) infinitely happy!

 Nemoptera bipennis



segunda-feira, 17 de junho de 2013

Algumas histórias muito pequenas em tudo
inclusive na moral
I
Do escuro em que vivia o mundo, mais não fugia que um frenesim de asas golpeando o ar.

Levado pela aflição do instinto, o melro seguiu em frente, só se dando conta que atingira o fim do negro, o limiar da luz, pelo pasmo do repentino cintilar.
Temente, voltou atrás. No breu que lhe cobre o corpo brilha agora a mácula de sol que lhe vestiu o bico.
II
O gato olhou o pássaro e pensou: “se te comer nunca mais cantas; mas eu tenho fome e foi assim que nos criaram: tu para cantares, eu para te comer”.

Atiradas pelo vento, das verdes e viçosas urtigas que bordejam o muro da velha horta pendem ainda, inertes, algumas penas cinzentas e castanhas .

Roído pelo remorso, o gato enche agora os fins de tarde com um alegre chilrear.

III

Correu as persianas e ligou a luz. Intimidade forçada mas necessária para indagar a razão do doce calor que sentia subir-lhe pelas pernas nuas, abrigadas na comprida batina que usava sob os paramentos com que dizia missa nas manhãs de domingo.

A custo, dobrou-se o suficiente para agarrar a sotaina de ambos os lados, junto à bainha, e subiu-a, deixando a nu os joelhos:

“Diabo!” Gritou o padre; “Miau” respondeu o gato.


IV

Abriu a janela à luz amarela do dia, tímida no frio quente da manhã. Sorveu a primavera numa única golfada aflita, espasmódica, num staccato involuntário do diafragma.
Do estrépito que ressuou no quarto e vibrou nas vidraças, guardou  a fugaz vertigem na urgência do alívio.
Olhou embaraçado o espelho e notou que teria de comprar lenços!

Some stories that are very short
 in text and morals
I
Besides a frenzy of wings cutting through the air, nothing rose from the darkness that consumed the world.
Driven by the anguish of instinct, the blackbird kept on going, realizing it had reached the edge of the blackness, the threshold of light, by the flicker of the sudden scintillation.
In fear it turned back.
The gloom that covers its body  is now stained by the imprint of sun that dresses its beak.
 II
The cat eyed the bird and thought: “if I eat you, you’ll never sing again; but I am hungry, and that is the purpose we were created for: you, to sing, I, to eat you”.
Blown by the wind, dangling from the green and  flourishing nettles that grow by the base of the wall at the edge of  the vegetable garden, a few  lifeless  grey and brownish feathers can still be seen.
Driven by deep regret , the cat now fills the final moments of the afternoon with a joyful  twittering.
III
He shut the venetian blinds and turned on the light. A forced but needed intimacy so as to question why the sweet warmth he felt rising up through his bare legs, covered by the long cassock he wore under the canonicals in which he said mass, on all Sunday mornings.

At cost, he bent over just enough to grab both sides of the cassock by the hem and  to pull it up, uncovering both knees:

“Hell!” cried the priest; “Meow” answered the cat.

IV

He opened the window up unto the yellow light of the day that shone shyly in the warm morning coldness.  He gulped  spring in a single urgent, spasmodic,  sip  with an involuntary staccato of the diaphragm.
From the loud noise that echoed through the room, vibrating in the window panes, he kept but the  sudden vertigo of urgent relief.
Feeling embarrassed, he looked into the mirror and made a mental note that he would have to buy paper handkerchiefs.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Cedo a manhã,
que li cedo,
como quem cede a prioridade:

todas as manhãs se apresentam pela direita,
na verdade,
e a tarde espera-me,
na rotunda.

Cedo,
mas não paro.

(A noite aguarda na passadeira).


I yield the morning
that I greeted early today
as if yielding priority:

All mornings come from the right,
truth be known,
and the afternoon is looming
at the roundabout.

I yield,
but I don’t stop.

(Night waits by the zebra crossing).