domingo, 26 de maio de 2013

Mata Nacional dos Medos - Costa de Caparica
A contraluz segue o vento que me empurra sem caminho, sem norte outro que o saber precisamente onde estou, até ao velho tronco onde tantas vezes já parei: para descansar da subida, para olhar para trás; para olhar para a frente; para, simplesmente, olhar.

Não se inquieta com o incómodo da companhia - sou-lhe naturalmente indiferente.

Imóvel, no ponto mais alto do corta-fogo que ondula agora creme na penugem da erva seca que o ocupa,  passa por tudo o que por ele passa, igualmente indiferente.
E, lentamente, decai. Inevitavelmente, decai.
Na secura cinzenta do corpo sobra o castanho que faz terra nas feridas onde já despontam as folhas interesseiras dos chorões.
“Na natureza nada se cria….”
Sigo o meu caminho, que é o mesmo de há pouco, só que agora, de volta.
E lentamente desço a encosta…inevitavelmente, desço a encosta…




The backlit wind leads me through no given path, without any other north than knowing precisely where I am, to the old trunk where I have stopped so many times before: to rest, weary from the climb, to look back, to look ahead, simply to look.

The inconvenience of the company doesn’t seem to affect it, my presence being absolutely indifferent.

Motionless atop the highest point of the firebreak that now swings cream in the  dried grass that has conquered it, it passes by everything that passes it by, with equal indifference.

And slowly it decays. Inevitably, it decays.

His sun-dried grey body, at places exudes the brown that becomes earth in the wounds where the opportunistic leaves of the ice plants already emerge.

“In nature, nothing is created…”

I follow on, on the same path of a while ago, only this time in the opposite direction.

And slowly I climb down the slope… inevitably, I climb down the slope.





segunda-feira, 13 de maio de 2013


B
arcos. Mais barcos que não o são mais. Hoje já só convidam o olhar, convocam a história, que não contam mas invocam:

Era uma vez um belo barco. Não: quatro belos barcos. Todos irmãos. O maior, era o mais velho, claro está. Era nele que os pais, esforçadas traineiras de meia idade - ele com o castanho avermelhado do óxido a despontar aqui e ali, sempre que algum metal se mostrava por entre o corpo forte da madeira; ela já sombra de  moça mas ainda airosa, apesar da queimada pintura azul e branca que lhe adoçava as elegantes linhas - confiavam para olhar pelos outros, os  pequenos, tão semelhantes que muitos os pensavam gémeos, quando a chamada da maré e do peixe os obrigava a sair mar fora, rasgando água e ar com simétricos e convergentes rastos, brancos de espuma e negros de fumo.

Nessas ocasiões,  sentia-se preso por não poder sair também, mas ainda assim aceitava o encargo com o orgulho de quem sente que outros nele confiam. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, a sua vez surgiria e nesse dia passaria para lá da linha, daquela linha lá ao fundo, onde as nuvens tocavam por fim o mar, que por agora lhe limitava o mundo.

Moínho da Mourisca - Setúbal
Os irmãos, esses não tinham corpo para sentir qualquer grilheta que não a da debandada da água que, 2 vezes por dia, sabiam certa, limitados que estavam a brincadeiras de ria, ao ritmo da remada dos mariscadores que os usavam. Para um deles, o mais jovem, dado a enjoos e indisposições pueris, não era fácil suportar o desconforto da retirada, sempre que perdida a flutuação se sentia adornado sobre um dos lados. No inverno, ao frio, ainda conseguia suportar o incómodo de se sentir tombado, debruçado sobre si próprio. Era no verão, no entanto, que o desconforto se transmutava em suplício, quando o sol quente  libertava do lodo que nessas alturas lhe servia de leito,  um cheiro doce, fastiento, tão diferente do salgado cheiro a mar, do perfume das algas e do iodo que com a maré cheia vinha lá do fundo, de onde os pais iam até se deixarem de ver, dia após dia.



Como em qualquer outra história, dir-se-á  que eram felizes. Nada de excessos, de facilidades, que estes não convêm a personagens de caráter, antes aquela felicidade que une animais nas fábulas, famílias nas parábolas, ou o sol e a lua na eterna história dos dias.

Certo será também que os mais pequenos muitas vezes se deixavam contaminar pela graça da inconsciência e que não raras haviam sido as vezes em que pai ou mãe, ou até mesmo o irmão mais velho, farto de condescendências, os haviam chamado à razão. 

Mas de crianças sempre se esperou que ousassem, e se aflitos se encontravam depois, perdidos entre canais e salinas, também seguro seria que nada de maior aconteceria, porque a ria morria ali e no campo que a bordejava não entraria por certo quilha.

Um dia, que a tantos outros parecia igual, pai e mãe saíram cedo para o mar em alegre sopros de buzina.

Um dia, que a tantos outros parecia igual, acabou por o não ser.

Um dia, que a tantos outros parecia igual, chegou ao fim sem que pai e mãe voltassem lá do fundo, de onde os flamingos aparecem alardeando o inverno.

Histórias do mar. Comuns e tristes. Toda a gente o sabe!
Foi há muito tempo.

Na charca onde se guardavam, continuam à espera. Os quatro: o mais velho e  os outros três, aqueles que se dizia serem gémeos.

Apesar do tempo que passou continuam imóveis, tristes,  e no inverno, quando chove, há quem diga que se lhes  ouve um dócil pranto, abafado nos gemidos  das cordas que o vai-vem da água retesa e alivia.

Eu, amante de barcos velhos  e de crónicas de mar,  acredito que seja verdade. Se assim não fosse, quem lhes contaria a história?




Boats. More boats that aren't  any longer. Nowadays they only invite the eye, convening a story they don't tell, but do invoke:

Once upon a time there was a beautiful boat. No: four beautiful boats. Brothers, all of them. The biggest one was of course the eldest. Upon him their parents,  hard working  middle aged trawlers -  father exhibiting the occasional brownish oxide stain, on scraps of metal showing  through the strong wooden body; mother, not a lass any longer and yet still graceful, in spite of  the sunburned blue and white paint that lent charm to her elegant lines - would bestow the responsibility of looking after the others, the younger ones, so alike looking that many thought them to be twins, whenever the call of  tide and fish urged them to leave, tearing water and air in symmetrical, converging, foam white and smoke black wakes.

On those occasions, the eldest brother felt trapped, sad for not being able to also go. Still he would  proudly  accept the task, for it brought him the satisfaction of knowing he was  trusted. Sooner or later, he knew,  his time would come, and on that day we would cross the line over, that line that dwelled there in the distance, where clouds finally touched  the sea, the outer boundary to the world he knew.

His brothers, in turn, were too young to feel tied up by any other shackle than the receding water that, twice a day,  forced an intermission in all their joyful playing amidst the marshes  to the rhythm of the oars expertly used by local fishermen. Besides, the discomfort of the retreating water  was something that one of them, the youngest, prone to nausea and puerile indispositions,  found hard to bear, when laying stranded, all flotation lost, leaning on one side of the hull. In winter, in the cold, hard and displeasing as it might be, he found he could but barely bear the nuisance of feeling tipsy, leaning over himself. But in summer, discomfort would give way to torment, when a  sweet, nauseating scent would rise from the mud he sat upon, all too different from the salty smell of sea, the perfume of algae  and iodine, that the tide would bring over from that distant place where to ,day after day, mum and dad would navigate until they could no longer be seen.

As in any other story, it should be said that they were happy.  Freed from any excess or  undue  ease of living as befits any person of character, they exhibited the same happiness that unites animals in fables,  families in parabolas, or sun and moon in the everlasting story of the days.

As expected, the younger ones would also be tainted by the pleasure of carelessness and many were the times when father, mother, or even brother, fed up with condescending, would call them to reason.

But children are expect to dare and even if they would later find themselves lost in distress, amidst canals and salt flats , it was a known fact that nothing serious would ever happen, for the  shallow strips of water bordered but flat  fields,  where no keel would ever venture.

One day, a day like so like many others, turned out not to be.

One day, a day like so like many others, came to pass, without mother and father returning from there, in the distance, wherefrom flamingoes appeared to spread  the promise of winter.

Sea stories. All to common and sad. A well known fact!

All that happened a long time ago...

On the pond, where they dwell, they lay still. In waiting. The four of them: the eldest and the other three, those some said looked like twins.

In spite of all the time that has passed them by they remain motionless, sad, and in winter, when rain falls, some say a  feeble weeping can be heard over  the moaning of the mooring  ropes  that stretch and sag in line with the coming and going of the water.

I, the lover of boats and sea chronicles, believe it to be true. If it were not to be, who would tell their story?



sábado, 4 de maio de 2013

Não foi seguramente capricho de arquiteto paisagista, nem desígnio de engenheiro de estradas, mas a rotunda nua, mal tratada e suja de plásticos e papel, brilha agora mais que se tivesse estátua de herói ou luzes de natal.

O que é preciso é dar por isso (quase como dizia o Pessoa sobre o binómio de Newton…); praticar a sensata arte de olhar para o chão - refúgio dos tímidos, dos culpados e dos que simplesmente gostam de ver; sorver o óbvio para saborear o fim de boca inesperado que premeia a insistência...mesmo que por mera confirmação probabilística.


                                  Erva abelha - Ophrys apifera                             Erva abelha - Ophrys apifera


Erva língua - Serapias strictiflora


                              Erva língua - Serapias strictiflora                       Erva língua - Serapias strictiflora

É por isso que eu procuro, e fico infantilmente feliz sempre que encontro, quase sem querer, como aconteceu ontem com as orquídeas na rotunda do posto de gasolina!


It was certainly not  a whim of a landscaping architect, nor the will of the  road engineer, but the naked roundabout, neglected and soiled by paper and plastic, now shines more than it would were it given an hero’s statue or Christmas lights.

One has to notice it though… (almost like what Pessoa said about  Newton’s binomial…); indulge in the wise art of looking at the floor – an haven for the shy, the guilty and  those that simply like to see - to gulp down the obvious in order to savour that unexpected aftertaste that rewards persistency... even if by mere probabilistic confirmation.

That is why I search and become childishly happy whenever I find, almost by chance, as it was the case yesterday with the orchids in the roundabout of the gas station!

quarta-feira, 1 de maio de 2013




Alcácer do Sal
Determinadas e pacientes, não abandonam os ninhos, nem a esperança de prol, apesar do frio que faz de Abril oposto outono.


Cabo Sardão

Seguras na certeza  do  instinto, há muito que deixaram de acreditar em histórias de belos pássaros que trazem filhos de terras distantes. Agora, só a verdade lhes importa, e essa em breve eclodirá  do esforço que  pai e mãe repartem, alheios ao vento que, talvez por detestar crianças,  grita  zangado.
 
Sabem-se parte do mundo e não ousam partir, por agora. Como outros fizeram, quando a  pátria se esperançava tão maior que a verdade.  Homens grandes, homens pássaro, homens cegonha

Vila Nova de Milfontes

Sarmento de Beires, Brito Pais, Manuel Gouveia

A imensa atração do ar, de ir - porque grandes são os que procuram - num tempo em que o mundo ainda tinha longe.

Hoje, o mundo definhou, alcança-se com os dedos, declina-se com um motor de busca. A terra de ontem perdeu-se para os almanaques e para as estátuas.

Vila Nova de Milfontes

Os barcos já o perceberam e julgando-se inúteis procuram cemitério na praia ou escondem-se humildes na mesma água onde antes se impuseram,



Vila Nova de Milfontes

Vila Nova de Milfontes
agora que as armérias dizem flor ao pé das pedras e zelam pelo fim de mais um dia, que, cansado, recolhe com a maré.

 Cabo Sardão
Determined and patient they won’t abandon their nests nor the hope of offspring, in spite of the cold that turns april into autumn.

Assured by the certainty of instinct, they believe no longer in tales of beautiful birds bringing children over from distant lands. Only the truth matters nowadays, and it will soon hatch from the effort that father and mother share, oblivious to the wind that yells madly, probably out of dislike for children.

They know they are a part of the world and, for now, they refuse to leave. Unlike others have done, when the idea of homeland was so much bigger than the truth. Great Men, Birdmen, Storkmen!
Sarmento de Beires, Brito Pais, Manuel Gouveia

The irrevocable attraction of the air, of going – great are those that search – in a time when there was still a place for distance in the world.

The same world that today has dwindled and that can now be grasped by the fingers, and declined with a search engine. The Earth of yesterday has been lost to almanacs and statues.

Ships have fully understood it and, believing themselves useless, search for cemetery on beaches or humbly hide themselves in the same water where they proudly stood before, now that the armerias spell flower amidst rocks and stones, overwatching the end of another day, that, tired, recedes with the tide.






Vila Nova de Milfontes