Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
XIII
5º feira - 8 de agosto
Pelo sobe e desce da estrada cruzamo-nos amiúde com ciclistas, alguns viajantes, outros mais dados ao lado competitivo do desporto, todos, sem dúvida, adeptos do sofrimento que os acentuados planos inclinados infligem aos corpos que, volta sobre volta da pedaleira, obrigam as bicicletas a galgar as muitas curvas e contracurvas de que se vai fazendo o caminho.
Invejo-os. Não pelo penar da subida, mas pela certeza que após cada uma delas, uma exaltante descida se lhes oferece, e que o ar que se fende rápido com o corpo descansado sobre a máquina, irá parecer mão que nos afaga a face, sopro que nos refresca, vertigem de montanha russa…
Passamos Villaviciosa, capital da Cidra, dizem os roteiros, não paramos. Fazemo-lo alguns quilómetros depois para o conforto de um café que já tarda. Num pequeno bar de estrada entre duas ou três casas na encosta da montanha. Chove. Chuva de verão, fresca, daquela que se pode usar com calções sem comprometer o prazer da viagem, a alegria da descoberta. Pelo menos eu assim penso, e assim faço.
Passamos Arriondas e as suas inúmeras escolas de canoagem. Tenho pena de não parar, para uma pequena visita, mas a volta do dia é grande e, na verdade, ainda nem a começámos… há que seguir em frente. Paramos em Cangas?
A cool and humid morning with a couple of clouds threatening showers. We left early, towards the core of the Astúrias; towards their utmost charms; towards the heights.
On the continuous up and down of the road we frequently come across cyclists, some just travellers, other more involved in the competitive side of the sport, but all of them enthusiasts of the pain that the very steep inclined planes inflict on the bodies that force the bikes, with each turn of the chainring, to gulp down the twists and turns of the track.
I envy them. Not for the suffering of the climb, but for the certainty that after each ascent, an exhilarating descent will be there for them to grasp and that the air that is fast cut, with the body melted onto the machine, will feel like the hand that caresses one’s face, the breeze that soothes us, the vertigo of a roller coaster….
Villaviciosa, the capital of Cider, so say the guidebooks. We go through it without halting. We do it some kilometers later, for the comfort of a long due cup of coffee, in a small bar by side of the road, between two or three houses on the mountain side. It rains. Summer rain, cool rain, the type that is fine to wear with shorts without compromising the pleasure of travelling, the joy of discovering. So think I, for one, and so do I.
We pass Arriondas and its many canoeing schools. I would have liked to stop for a short visit, but the day’s trip is long and in truth we haven’t yet began… we must press on… Shall we stop in Cangas?
XIV
Cangas de Onis é o típico campo base para os amantes dos desportos de natureza. Pequena vila no sopé da cordilheira, encostada ao rio Sella, por toda a parte se vêm pessoas passeando botas de montanha acusando um uso tão intenso e verdadeiro, quanto o ar de despreocupação e felicidade que saudavelmente exibem. Facilmente se percebe que o turismo é aqui rei, com inúmeras lojas de inevitáveis recuerdos e um sem número de agências que propõem uma quase infinita miríade de experiências de natureza, umas mais de moda que outras, mas todas por igual certamente atraentes.
Cangas de Onis is the prototypical base camp for the nature sports lover. A small village on the base of the mountain range, perched on the river Sella, Cangas is full of people perambulating well worn trekking boots showing signs of an usage as intense and true as the relaxed and happy demeanor they exhibit. It is easy to conclude that Tourims rules here, with countless shops selling the inevitable “recuerdos” and innumerable agencies proposing and almost endless myriad of nature experiences, some more fashionable than the others, but all of them equally attractive.
Como em todas as localidades turísticas no pino do verão, estacionar é uma dor de cabeça, e lá fomos dando voltas até encontrarmos um local de poiso nas fraldas da vila, subindo encosta acima.
A ponte romana, que de romana não tem nada por ter sido erguida já na idade média (abençoada wikipédia) verdadeiro ex-libris de Cangas, está, como é habitual, cheia de candidatos à posteridade. Não é fácil tirar uma fotografia sem que nela apareça alguém na ponte ou cá em baixo nas rochas que bordejam o rio, em clássicas poses de álbum de recordações.
As in all tourist places at the summer peak, to park is synonymous of headache, and so we went round and round up the side of the mountain until we finally found a place to stop on the outskirts of the village.
The roman bridge, which is as roman as I because it was built in the middle ages (thanks again, Wikipedia), a true ex-libris of Cangas, is, as usual, teeming with candidates to posterity. It is not easy to get a photo without including someone over the bridge or down below it on the rocks that flank the river, in a classic “souvenir album” pose.
Sempre embirrei com a ideia de terem pendurado a cruz da Astúrias debaixo do arco principal: Parece-me, visualmente, desajustado. Uma ponte e um local tão bonitos não precisavam desta distração e deixar que o mais importante símbolo de uma região durma, literalmente, debaixo da ponte também não me parece a melhor das ideias. No entanto, ela lá está, e estou certo, estará por muitos e muitos anos mais.
I have always disliked the idea of the Cross of the Astúrias hanging from the main arch: visually, it looks unbalanced, to me. Such a beautiful bridge and place didn’t need this type of distraction and to let the most important icon of a region to literally sleep under the bridge doesn’t seem to me to be the best of all ideais. That said, there it stands and, I’m pretty sure, there she’ll stand for many years to come.
Retomamos o caminho,
We take to the road again,
próxima paragem:
next stop:
XV
Covadonga
Berço da reconquista Cristã - embora quem conquistou o quê, em termos de história, seja sempre coisa para avaliar à luz dos tempos e dos modos – Covadonga vive da fé… e dos recuerdos, coisas que se habituaram a andar mão na mão.
Cradle of the Christian reconquest - although who concquered what, in historical terms, is always something to be evaluated under the light of times and manner - Covadonga thrives on faith... and "recuerdos", two things that have come to walk side by side.
A gruta onde a Senhora terá aparecido ao valente soldado Pelayo, primeiro dos reis das Astúrias, cujo reino terá fundado, alimenta a esperança sussurrada no terço, sinceramente declamado pelos inúmeros crentes que a procuram no cumprimento de promessa, na esperança lancinante de um auxílio, de uma cura, e também a respeitosa curiosidade dos que apenas interrogam a racionalidade da crença.
The cave where the Lady would have appeared to the valiant soldier Pelayo, the first king of the Astúrias, whose kingdom he created, feeds the hope mumbled through the beads of the chaplet, recited in all sincerity by the countless believers that seek this place fulfilling a promise, desperately hoping for support, for a cure, as well as the respectful curiosity of those that question the rationality of the belief.
Vêm aos milhares, em agosto (imagino que fora do verão, seja bastante menor a afluência). Todos eles: perfilam-se debaixo da estátua de Pelágio, onde novamente sobressai uma cruz Asturiana num conjunto escultórico que me resulta desequilibrado (que mania Asturiana esta, a de meter a cruz em tudo o que é sítio…), visitam a Basílica, dirigem-se à Santa Gruta, e partem reconsolados. Tal como eu, que tudo isto fiz, e me consolo apenas por poder olhar e tudo isto ver.
They come by the thousands, in August (I’d expect this number to be much lower once summer is past). Each and every one of them poses under Pelayo’s Statue (where again a Cross of the Astúrias stands out atop the figure of the king, for a sculptoric result that looks unbalanced to my untrained eye (I can’t understand this Asturian mania of having to put a cross no matter where….) visits the Basilica, walks to the Holly Cave, and departs, light at heart. The same as I, who have done it all too and feel light at heart just for being able to witness it.
Gostava de ter ido novamente até ás lagoas glaciares que, perto de Covadonga, constituem uma das atrações famosas do Parque Nacional dos Picos de Europa. No entanto, não é mais possível fazê-lo de mote próprio nos meses de verão. O acesso agora é limitado a um número máximo de pessoas por dia, e o transporte é forçosamente assegurado por autocarros licenciados para este fim.
I would have liked to go up again to the glacial lagoons that, nearby, are one of the most famous landmarks of the Picos da Europa national park. Regrettably, it is no longer possible to do it by yourself during the summer months. Access is now limited to a maximum number of people, transportation being exclusively assured by licensed buses.
XVI
Seguimos em frente, que é como quem diz, para trás, que a estrada em Covadonga não tem outra saída que a dos ditos lagos. No cruzamento é virar à esquerda: direção Arenas de Cabralles, sem outro destino que um mapa e um “logo se vê”.Paramos em Arenas para uma curta visita, que o corpo também já pede alongamento. O calor húmido do início da tarde não convida ao passeio e procuramos uma sobra de esplanada, para consultar o mapa e beber um café.
Não temos tempo para grandes voltas, por isso decididos que circundaremos toda a área dos picos via Potes, Riaño, e depois por estradas secundárias até chegarmos à Oviedo. É uma volta grande, mas os dias são compridos e a paisagem mais que justifica.
Antes, no entanto, um pequeno desvio: no cruzamento um sinal indica "Funicular de Bulnes".
Lembro-me que há muitos anos fomos aos Picos e estivemos num local com um teleférico. Um teleférico não é um funicular, mas nem me passou pela cabeça que pudesse ser outra coisa. Vamos ver.
E como é magnífico o caminho, lado a lado com um rio que desce da montanha feito água da mais transparente e pura que se pode encontrar. Aposto que se pode beber diretamente do rio.
We continue onwards, so to speak, because in reality we have to go back since the Road at Covadonga has no other exit that that that leads to the lakes. At the crossroads we’ll have to turn left: heading: Arenas de Cabralles, without any other destination than a map and “later we’ll see..”
We stop at Arenas for a short visit, since our bodies are already claiming for some stretching. The humid heat of the early afternoon does not invite strolling and we go after the shade of a bar’s esplanade, to take a look at the map and drink a coffee.
We don’t have the time for an extensive visit, so we decide that we will circumnavigate all the area around the Picos, going through Potes and Riaño, following through secondary roads after that until we reach Oviedo again. It is a long journey, but the days are still long too and the scenery more that justifies it.
But before we start, a small detour: at the crossroads, a sign claims "Funicular de Bulnes".
I recall many years ago visiting the Picos and having been somewhere with a teleferic. A teleferic is certainly not a funicular, but somehow to my mind they seem to be one and the same…. Let’s go and see
And how amazingly gorgeous is the way up, hand in hand with a river that runs down from the mountain with the most transparent and pure water one can possible find. I bet one can drink directly from the river.
Continuamos a subida. Passamos a entrada para o funicular sem dar por isso, escondida que está na montanha e num parque de estacionamento, e seguimos a subir. Uma serpente terá por certo engolido a estrada… curva, contracurva e mais curva, obrigam a constante concentração no caminho, roubando-me o prazer de uma paisagem virgem, agreste mas decididamente convidativa. Muitos são os carros que encontramos parados pelo caminho. Vazios. Muitas serão as pessoas que se espalham pelos trilhos que por certo percorrem toda esta área, em caminhadas, escaladas e outras saudáveis formas de gozar o tanto que a montanha oferece.
We continue to climb. Inadvertently, we pass by the access to the funicular, hidden between the mountainside and a parking lot. A serpent must have swallowed the road…bend after bend after bend force the driver to remain concentrated on the road, precluding the fruition of a virgin scenery that is harsh but decidedly inviting. Many are the cars that we find parked along the road. Empty. Many will be the people scattered along the paths that I’m sure will run through the entire area, trekking, rock climbing or indulging in any other way of enjoying all that the mountain has to offer.
Tresviso é mesmo no alto. Para nela entrar temos de engatar a 1ª mais que uma vez. Não imagino como se vive aqui no inverno, quando as cores daqui fugirem levas pelo cinzento escuro do céu e pelo branco da neve que, certamente, tudo aqui cobrirá durante bastante tempo.
No café pergunto pela tal estrada de ligação: é um trilho pedestre, não negociável de carro. Não nos resta outra saída que correr a serpente de novo; voltar atrás, até Arenas, para apanhar a estrada nacional…
Descemos a estrada devagar, estonteados não sei se pelas curvas se pela beleza fulminante da paisagem.
Desta vez damos pela entrada para o funicular, e vejo Bulnes, lá em cima, a gritar por visita… mas não podemos… desta vez…que pena…
Chegados a Arenas, de novo, viramos à direita e seguimos contentados pela constante maravilha que desfila ao nosso lado. Pesca-se salmão aqui, não o sabia: outra indicação que as águas são verdadeiramente impolutas.
Sigo, parando de quando em vez, tomado pela beleza da paisagem (ou por simples imposição fisiológica). Como gostava de ter mais tempo, de poder passar por aqui com a máquina fotográfica livre de compromissos e agendas…
The climb appears to be endless and we now follow an ever twisting, ever rougher, ever steeper road. A quick look to a tourist pamphlet with a simple map shows that it will end at Tresviso, but from there on a fine line connects the village to the national road on the base of the mountain. It must be a rural road, I think, we will probably be able to follow through.
Tresviso really stands on the heights. To enter the village I must use first gear more than once. I can’t imagine what it will be like to live here in the winter, when the colours have fled taken by the dark grey of the sky and by the white of the snow that, I’m sure, will cover everything about for quite a long time.
At the local café I ask for directions for the connecting road: it is a trekking path, I’m told, useless for a car. We have no other option than to go back and follow the serpent again, until Arenas, to get on the national road again…
We gown down the mountain slowly, flabbergasted either by the many bends or by the imposing beauty of the landscape.
This time we notice the access to the funicular and I catch a glimpse of Bulnes on top of the mountain, crying to be visited… unfortunately we can’t… not this time…. What a pity….
Back in Arenas again we turn right and carry through constantly in awe at the never ending marvels that unfold by the side of the road. They fish salmon here, I did not know tha: another clear indication that the water is absolute pristine.
À esquerda passo pelo fim de uma trilha pedonal que sobe pela montanha acima: é o fim do caminho que liga a Tresviso, do tal caminho que me obrigou a voltar atrás…
Se a estrada exige constante atenção, desfiando-se num rol infinito de apertadas curvas, a paisagem exige constante contemplação, com os largos horizontes dominados pelo verde dos vales, aqui e ali rasgado pelo cinzento da pedra nua nas encostas da montanha.
On our left we pass by the end of a trekking path that goes up the mountain: that’s the end of the path that leads to Tresviso, the same path that made go back….
If the road demands constant attention, with its endless myriad of bends, the scenery demands constant contemplation, the wide horizon being dominated by the green of the valleys, thorn apart here and there by the grey of the naked stone on the mountain sides.
Algures cruzamos a delimitação das Astúrias e passamos a pisar solo Cantábrico, a diferença é apenas administrativa, acho, que em tudo o resto, da janela do carro não vejo diferença alguma.
We cross the border of the Astúrias somewhere and we are now on Cantabrian ground. The difference is merely administrative, for as far as I can see from my car window, everything looks the same.
XVI
É meio da tarde, Potes fervilha de agosteiros como nós. Desentorpecemos as pernas (e no meu caso os braços, cansados de tanto rodar o volante de um lado para o outro) e refrescamo-nos com uma revigorante caña num dos bares da rua principal da vila.
Midafternoon and Potes is bubbling with august worshipers like ourselves. We stop to stretch our legs, (and, in my case, the arms, weary that they are from so many turns of the driving wheel ) and we quench our thirst with an invigorating caña in one of the bars of the village’s main street.
Fico fascinado pela diversidade de feijões que se vendem por aqui, todos diferentes das nossas variedades tradicionais, com exceção do grande feijão branco com que se faz a fabada, que em terras lusas toma o nome de feijoca.
Feito criança, espreito pelo canto do olho se ninguém está a olhar e, despudoradamente, roubo em 3 lojas outros tantos feijões, cada um de sua espécie, das alcofas onde se oferecem. Tentarei germiná-los mais tarde… o fim justificará os meios…!
I’m fascinated by the diversity of the beans that are sold here, all different from our traditional varieties, with the exception of the large white bean used to concoct the fabada, which back home goes by the name of feijoca.
A child once more, I cunningly look through the corner of the eye to make sure no one is watching and, with total lack of manners, I steal 3 beans, one of each species, from the bags in which they are offered, in three different shops. I will try to germinate them later... the end will justify the means...!
Seguimos para o carro, estacionado ao sol. Abro a janela: com intervalo quase regular, ouve-se o “oouuush” metálico de uma roldana a correr o cabo esticado entre as pontes que cruzam o centro da vila. Sobre a ponte mais elevada, os candidatos a uma descida em slide fazem fila no quente sol da tarde.
We get back in the car parked in the sun. I open the window: with an almost regular cadence , a metallic “oouuush” can be heard coming from the pulley running down the cable that links the two bridges that cross the village centre. On the highest bridge, the candidates to a slide form a nervous queue out in the warm afternoon sun.
Também o carro parece fazer oouuush, agora que retomou as curvas da estrada.
Até Oviedo, são horas de estrada, e milhares de curvas. Uma a uma negoceio-as; uma a uma desfruto-as; uma a uma.
Our car also seems to "oouush", now that it is back on the road.
Until we reach Oviedo we still have some hours of driving to do and thousands of bends. One by one I co through them; one by one I enjoy them; one by one.
Chegamos já o dia vai moribundo. Troquê-mo-lo pela cidra, essa estará certamente bem viva! ..
When we finally arrive the day is dying. Let's trade it for cider, I'm sure it'll be well alive!....
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