quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Um conto de natal

Só, de novo, no quarto da velha pensão, recolheu a carteira no bolso de dentro do grande casaco vermelho, pendurado com cuidado nas costas da única cadeira.

Nu, enrolou a toalha branca em torno da profissional barriga e saiu para o corredor que atravessou até à casa de banho, não sem antes se assegurar que a porta do quarto ficara bem fechada.

Lavou-se, com esmero e sabão, liso, arredondado, polido de muitas mãos, muitas peles.

Secou-se, breve, e voltou a enrolar-se na branca, mas agora húmida, toalha. 

Saiu para o corredor que atravessou até ao quarto, deixando a porta da casa de banho entreaberta, sinal de que outros a poderiam utilizar.

Leve, acalmado de corpo e instinto, tornou a vestir-se: cuecas; camisola interior; calças e camisa.

Olhou-se ao espelho e penteou os ondulados cabelos brancos e a comprida barba.

Calçou as botas pretas, de meio cano e, a custo, enfiou-se de novo no grande casaco vermelho; Abotoou-o e cintou-o com o aperto da reluzente fivela prateada.

Ajeitou, sobre o nariz, os óculos de lentes redondas, sem graduação, só vidro, “era uma vez”.

Desceu as escadas do segundo andar da velha pensão até ao rés-do-chão.

Deitou o olhar para trás do balcão de madeira envernizada.

Imersa na revista mundana, a rececionista ignorou-o.

Empurrou o velho batente azul celeste e saiu para a rua.

Sorveu, ávido, o ar frio do fim da tarde.

Dirigiu-se a pé, avenida abaixo, para o centro comercial.

As crianças sentam-se agora ao seu colo e os pais tiram fotografias.

Encostada ao candeeiro no topo da rua, enfeitado com o branco néon de uma pluma de estrelas, ajeita a saia curta sobre as coxas cruas, na esperança que mais alguém pare.

Lembra o tempo em que invejava as crianças que, na praça, entre as vendedeiras de flores, se sentavam ao colo do pai natal, sorrindo para os pais que lhes tiravam fotografias.

A Christmas Carol

Alone again in the room of the old boarding house, he put the wallet back in the inner pocket of the large red jacket, carefully resting on the back of the only existing chair.

Stark naked, he wrapped the white towel around the  belly, came out into the corridor,  assured himself with a twist of the knob that the room door was  properly closed and walked to the bathroom.

He washed himself up with a smooth and rounded soap bar, polished by many a hand, many a skin.

He quickly dried himself up and again wrapped himself up in the white and now humid towel.

He walked again along the corridor to his room, leaving the bathroom door slightly ajar, a sign that it was now available for others to use it.

Feeling lighter, body and mind soothed, he dressed himself up again: shorts; singlet; trousers and shirt.

He looked in the mirror and combed his wavy white hair and his long beard.

He put on the black wellingtons, and struggled to don the large red jacket.

He buttoned it up and belted it around his waist with its shiny silver buckle.

He put on his round clear lens glasses.

He climbed the stairs from the second floor of the old boarding house down to the ground floor.

He gazed across the hall to the back of the varnished wood counter.

Immersed in the mundane magazine, the receptionist ignored him.

He pushed the old celestial blue wooden door and came out into the street.

He gulped, avid, the cold dusky air.

He walked down the avenue to the shopping mall.

Children now seat on his lap, while their parents shoot photographs.

Leaning against the street lamp, adorned with the white neon of a trail of stars, she arranges the short skirt over her plump thighs, hoping that someone might stop and ask again.

She recalls the days when she envied the children in the square, amidst the flower sellers, seating on Santa’s lap, smiling while their parents snapped their  photographs.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015


Händel e Beethoven, o Messias e a 9ª, num mesmo ano... como se tudo começasse por “era uma vez….”

Aos poucos o pentagrama vai fazendo sentido; os símbolos sobre ele impressos, também.

Não, ainda não falo a língua, mas percebo-a agora muito melhor que há três anos, quando comecei. E é tão belo, ver como os sons se escrevem, e se partem, e se dividem, e sobem, e descem, e saltam, e aceleram e retardam… como em qualquer outra língua.

Händel e Beethoven, logo estes dois (que o Mozart também já foi) … só falta mesmo o outro, o eterno Bach.

            


Horas de dedicado trabalho para a recompensa de um aplauso que, desculpando-me as notas falhadas, as más entradas, as desafinadelas e todas as outras páginas do catálogo universal da fífia, me enche, por momentos, da maior das alegrias.

A minha voz, a dos outros, a melodia que se constrói no tear da harmonia; tudo só com a força que vem de dentro; do ar; que respiro e faz soar o  instrumento que me ecoa na garganta.

 Freude! Freude! Freude!


      


Händel and Beethoven, The Messiah and the 9th, all in the same one year… as if it all were to begin with “once upon a time…”


Step by step the pentagram is becoming clearer;  and so do the symbols therein.

No, I still don’t speak the language, but I understand it now much better than I did three years ago, when I started. And it is a thing of wonder, to see how sounds are written, and can be broken, and divided, and made to rise and go down, and jump, and accelerate and retard… as with any other language.

Händel and Beethoven, these two of all (Mozart is already on my list too)… there’s but one remaining: Bach, the eternal.

Hours of dedicated work for the retribution of a benign applause that forgives missed, out of pitch notes, failed entries and all my other forays into the universal catalogue of musical offenses, and fills me up momentarily with the most intense joy.

My voice, that of the others, the melody that is built in the loom of harmony; all this coming from deep within, upon air, the same air that I breathe and that resonates in the instrument echoing in my throat.


Freude! Freude! Freude!

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Lenga-lenga da beira da estrada, por ter ouvido Vivaldi na rádio, enquanto guiava.

The sidewalk rigmarole, or on listening to Vivaldi on the radio,while driving


Uma última gota de água desfez-se concêntrica, em círculos, na poça à beira da estrada.

Um pardal voou para a árvore na calçada, à beira da estrada. Segurava no bico a promessa de ninho.

É o início da época das lagartixas, pois o sol vai de novo brilhar. Tanto que vai secar a poça à beira da estrada.

A folha nunca o soube, mas tinha em si um caleidoscópio de cor. Está agora caída à beira da estrada, como a primeira gota de água. 


A final drop of water came to rest, concentric, in circles, onto the puddle by the side of the road.

A sparrow flew onto the tree on the sidewalk by the side of the road, clutching in the beak the promise of a nest.

It is the beginning of the lizard season, for the sun is about to shine again. So much so that it will eventually dry the puddle by the side of the road.

The leaf never knew it, but deep within itself it held a kaleidoscope of colour . It lies now fallen by the side of the road, just like the first drop of water.

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Curioso, tomo a folha, molhada, do chão
e pousou-a leve na palma, aberta, da  mão.

Recortada, a folha velha do velho carvalho
conta-me histórias de pássaros e orvalho
lento, como as rugas que a ambos nos marcam 
o tronco, a casca, (à falta de mostrarmos as raízes).

Homem e árvore - apenas húmus -  juntos invocam
A terra, que lhes é mãe e os faz felizes!

segunda-feira, 26 de outubro de 2015


Tuas eram todas as flores
Como se fosses o sol
do único dia da primavera.

Baixei os olhos,  porque passavas
breve, como nota de música,
mínima, infantil, quasi-carícia,

mas ainda te guardo a sombra
(eu que do tempo
só sei as letras que o escrevem).

Talvez a lua cheia me a reclame…
por isso, inseguro e temeroso,
palmilho o escuro do carreiro
à luz convulsa  dos vaga-lumes.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015



Eu não me interessa o Champagne do Sousa. É-me indiferente o vice-cônsul Iduíno.  Sou daqueles que, em causa de causas, com maior facilidade me declararia pelas porteiras, mesmo se vulnerável e, admito, disponível para o preconceito de que esta preclara categoria de ser humano se confunde com a expressão tangível da aplicação do conceito aeroportuário – coisa da profissão - de hub and spoke (concentração e distribuição de tráfego) ao domínio das substâncias da comunicação…da informação… do “então não é que”…; da mais irrepreensível rúbrica de suplemento - a duas colunas e caixa alta - “Sabia que…?”!

Nem sequer acabei ainda de ler o livro. (afinal só o abri ontem, na hora do almoço,…. e, pelo meio, tive 3 horas de fila para a ponte, no dia em que alguém decidiu que do tabuleiro à água há menos incerteza que da dor à luz….(para que não restem dúvidas, eu acho que a pessoa estava profundamente enganada e, pelo que sei, ela, a pessoa, acabou por perceber o mesmo).

Agora, a verdade é que, não sei se pelo verde que me corre no vermelho do sangue (amarelo… só se for na  gordura… como nos frangos, ou no que deles resta nas prateleiras refrigeradas do supermercado), se por um qualquer efeito “gaiola dourada”, se pelo simples facto de eu ser um emotivo daqueles que verte lágrima e taquicardia ao mais pequeno estímulo das mitocôndrias (e não será nelas que a coisa “bate”; não será seguramente…; mas é daquelas palavras que têm semiótica de sabedor; de “diseur” de espantos e outros abrenúncios…), a verdade, dizia eu, é que em metade do livro, por três vezes….pimba: a gente olha para o lado; respira fundo, afeta pó no globo…

Metade está então para três, assim como todo está para….(o binómio de Newton é tão belo, etc. etc.)
E depois, é o prazer…
da história que se não viveu, mas que se procurou  honestamente conhecer;
do absoluto controlo discursivo;
da técnica narrativa;
da minha janela vejo o mundo… e essas coisas…

Joana…
Muito bom! Muito bom, mesmo.

PS. Não sei se leste o outro antes do teu …”os últimos marinheiros”… uma verdadeira delícia do mar, das boas, genuínas….

A gaita é que acabo por ter de ir ao Pingo Doce, só porque gosto de livros magnificamente escritos, e a gente não vai ao supermercado para estas coisas, não é verdade?


segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise


12 de Agosto

Há no ar húmido e fresco da manhã o sabor de resto, de migalha. É o último dia e não porque assim o queira, mas porque assim o há que ser.


Isaba

São mais seiscentos quilómetros que nos hão de levar de novo ao país do lado esquerdo do mapa, por isso há que partir cedo, porque por certo haverá paragens pelo caminho, por agora impensadas.

Carregamos o nosso fiel papa-léguas com as malas, as mochilas e o peso da saudade que já sinto dos sítios onde passei e não estive, ou estive e não passei.

Isaba

Isaba ainda dorme. De mansinho solto o pedal da embraiagem e o carro toma a estrada, logo a seguir à anta no topo do parque de estacionamento que, por descuido, apenas fotografei com a memória.

Uma primeira paragem em Roncal. Não é longe do local de partida, mas uma boa chávena de café é pressuposto que ainda não cumprimos, apesar do pequeno almoço no hostal.

Para além da dona do bar, que se afadiga na preparação de mais um dia e a quem pedimos os almejados dois “solos”, não há mais ninguém por aqui, nem na rua tampouco. Todas estas férias têm sido assim: com exceção da aglomeração consumista dos supermercados de Andorra, este é um Agosto sem filas, esperas, barulho… gente. Decididamente, um Agosto verdadeiramente sinónimo de prazer.

À saída do bar, uma placa indica um desvio para um memorial dedicado a Júlian Gayarre. Aceitamos a sugestão e seguimos a estrada até um largo com uma estátua homenageado aquele que, leio mais tarde, foi um famoso tenor espanhol, não me apercebendo que estou em frente a um cemitério onde se encontra o mausoléu que guarda a memória e os ossos deste filho da terra.



Vale abaixo, seguimos então acompanhado o rio Esca que, de quando em vez, se deixa ver por entre as pedras e o arvoredo que o escodem da estrada.
Uma velha e interessante ponte. Nova paragem. Burgui.




Há por aqui uma tradição de transporte de lenha em grandes jangadas, que se mantém viva para turista ver.


Burgui

Ao lado da velha ponta medieval, um pequeno monumento invoca a coragem dos Almadieros, os homens que conduziam as enormes jangadas, uma das quais, seguramente com uns 15 metros de comprimento, senão mais, está aqui, junto ao monumento, montada sobre tacos de pedra. Não posso deixar de pensar que não será obra fácil dirigir um monstro destes rio abaixo…



O rio que por aqui corre livre, ganha largura e  transforma-se em lago, mais abaixo, em mais uma das muitas represas que, em Espanha como em todo o lado, os estrangulam, para nosso deleite elétrico ou de rega.



Do lado direito, sobre uma colina, uma estranha aglomeração, antiga seguramente, chama-nos a atenção. Fotografo do meio do campo de cereal, porque a estrada está cortada e não se pode lá chegar. É Escó, povoação abandonada desde a construção da grande represa para que olha, de cima da colina.

Escó

Gostava de ter ido lá dar uma vista de olhos e seguramente fá-lo-ia, não fossem ainda os muitos quilómetros que temos pela frente… É que ainda queremos dar uma espreitadela no mosteiro de Leyre, e o tempo não dá para tudo…

São cerca de 9 quilómetros a subir, mas em boa estrada, até ao mosteiro. Hoje coabitam aqui monges Beneditinos e os turistas que utilizam o hotel em que está transformado parte do mosteiro.

Mosteiro de Leyre

Há por aqui, como não podia deixar de ser, um ambiente de calma e contemplação que se respira sem se ver, desde logo pela própria localização do mosteiro, sobranceiro sobre o vale, e também pela consciência de que esta é a morada de quem se retirou do mundo que nos é quotidiano por opção própria, na busca de um sentido, que todos, desta ou daquela forma, procuramos.
Produz-se queijo e vinho, nestas terras. Um monge imóvel, silente, atenderá os pedidos, sem uma única palavra, suspeito. As pessoas entram na sala e julgam tratar-se de uma figura de cera. Assustam-se quando fecha os olhos….despeço-me com um respeitoso bom dia… que não sabia se devia ter dito ou não e que também não obtem qualquer resposta…

No bar vende-se caviar Aragonês. Outra descoberta. Não fazia ideia que por estes lados houvesse esturjões, muito menos que se explorassem as suas delicadas ovas. Assim é desde há poucos anos, parece, num processo que se terá iniciado num passado relativamente recente, com o “cultivo” de esturjões na albufeira de Yesa.

Retomamos o caminho e lugares que nos são familiares desfilam ao ritmo dos marcos quilométricos: Pamplona; Logroño; Burgos, Valladolid….

Antes de Burgos, em Tosantos, uma ermida escavada na rocha, chama-nos a atenção cá de baixo, da estrada.

Paramos e tomamos o desvio que nos leva a uma subida de terra batida só acessível a pé. Está quente, e suo em bica quando chego lá acima. Tudo parece fechado e deserto. Empurro a porta… está aberta. Ouço alguém dentro da ermida. Pergunto se posso entrar, responde-me que sim. É a senhora que faz a limpeza e cuida do pequeno templo. Pede-me que não fotografe por dentro e ajuda para a manutenção da ermida. Não tenho dinheiro comigo, ficou lá em baixo no carro. Diz que não tem importância, que depois vai connosco lá abaixo… conta-nos que a imagem da Sra., ao longo do ano, divide a estada entre a ermida e a igreja, na vila, lá em baixo também, na beira da estrada. Faz-me saber que esta é uma paragem importante no caminho de Santiago e que são muitos os peregrinos que vêm à ermida ouvir missa. A aldeia tem dois albergues para peregrinos, diz-me, um privado e um público. Acabada a visita, desce connosco o caminho até ao carro, como prometera - ou não fosse a gente esquecer-se -  e volta a subir para acabar as limpezas.


Ermida de Santa Maria de la Peña - Tosantos

Não paramos mais senão para meter combustível e esticar as pernas.

Bragança, dizem a tabuletas, "fogo...", digo eu com o dedo apontado para a coluna de fumo que se ergue lá ao fundo, algures sobre a serra… estamos de volta…

Ite, missa est!



quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória


11 de agosto


D
eixamos o apartamento com a tristeza do tempo que não tivemos e do muito que ficou para ver. As montanhas lá estão, o azul e o verde também… que esses têm toda vida para ali ficar.



Conduzo devagar, tentando absorver tudo na memória, até o brilho do sol sobre o plano de água de Lanuza, o recorte das fragas cinzentas contra o céu, o reflexo das árvores e das casas sobre o calmo pano verde esmeralda, e sigo, sigo em frente, a subir, em direção a França, na fronteira que fica algures aqui perto a seguir à estação de ski de Formigal.


Formigal


As pistas verdes de ski têm agora outro tipo  de utilizadoras, pachorrentas e bem-dispostas. Mordem-nas tranquilas, indiferentes aos pequenos grupos de caminhantes que aproveitam o bom tempo para um passeio montanha acima (como eu gostava de poder ir agora também…)


Formigal

Mesmo no topo fica a fronteira – El Portalet – e se o formigal já formigava de esplendoroso, aqui os mais superlativos adjetivos são  parcos e murchos para descrever o panorama…  decididamente matéria para interlúdio de televisão com legenda de “no comments”.

Cá do alto, de onde a Europa apagou as linhas grossas dos mapas, que indicam que daqui se passa para ali (embora, cada vez mais, a tinta pareça querer ganhar novo vigor…), vê-se o verde que ondula não de erva alta, mas das suaves curvas do terreno de onde, inesperadamente, não fosse a sua óbvia e indesmentível presença, emergem fragas rudes, ásperas, na cor e no corte.



El Portalet

Até onde a vista alcança é tudo assim, pontuado aqui e ali por calmos rebanhos ovelhas e vacas.
Deixamo-nos ir, estrada abaixo, imersos em verde, sempre o verde, agora feito de encosta leves e ondulantes, depois de bosque cerrado, depois de prazenteiro vale, cortado aqui e ali por linhas de água e telhados de casas.





El Portalet


Laruns: é a hora em que as pessoas saem da padaria com baguettes a espreitar para fora dos sacos de papel e os cafés estão cheios. Desentorpecemos as pernas e tomamos também nós um café na pequena vila.



Laruns

Seguimos viagem, sem parar, até Pau.

Há vinte anos que por aqui não passávamos. Lembro a visita ao castelo, um dia relativamente sombrio e pouco mais. Nada me é familiar, no entanto.

Castelo de Pau

Está calor e estacionamos bem perto do centro. As lojas estão abertas e ainda temos de comprar prendas para as nossas filhas, por isso, entremeamos  um bom par de horas entre compras e descoberta das simpáticas ruas, algumas estritamente pedonais, da acolhedora cidade alcantilada sobre o rio que toma a designação de Gave de Pau.

Respira-se por aqui o mesmo ar de afluência e bem-estar que nos tem acompanhado todas estas férias: ruas bem cuidadas, casas pintadas, pessoas nas ruas e nos restaurantes, comércio vivo… tudo o que uma cidade saudável deve mostrar a visitantes e moradores.


Pau

Voltamos à estrada e às curvas, às vacas, à subida, Pirenéus adentro e passamos a fronteira no Col de la Pierre St Martin.




Olho para o indicador do combustível….devia ter metido algum em Pau….mas é sempre a descer, já não falta muito….Isaba. Chegámos!

Instalamo-nos rapidamente no acolhedor hostal e descemos logo porque temos de tratar do problema do combustível, (que o carro está já a andar só a vapor de gasóleo, acho…) e porque queremos ainda aproveitar o que resta da tarde para mais uma caminhada.

A estação de serviço mais próxima fica em Urzainki, meia dúzia de quilómetros para baixo da Isaba. Abastecemos e voltamos a subir agora para lá de Isaba, até ao centro da vila de Uztarroze, onde, de acordo com o pequeno mapa que nos forneceram na receção do hostal, começa um percurso circular que nos leva pelo que há de melhor para ver por aqui.


Uztarroze

Argynnis spec.


O percurso está relativamente mal sinalizado e em alguns troços nota-se que não têm sido muitos os pares de botas que têm pisado o chão, tamanha a densidade e altura da erva que tapa por completo o trilho. À falta de sinalização, embrenhamo-nos uma ou duas vezes por entradas sem saída, até que encontramos na estrada três senhoras que, como nós,  passeiam,  já provavelmente aconchegadas de jantar. Indicam-nos o caminho correto e depois, como o percurso de volta se faz por estrada, já nada há que enganar.

É calmo, o passeio, e as subidas são leves, mas embora passando por alguns locais com interesse, não é de todo comparável aos magníficos passeios que já fizemos nestas férias. Fica a alegria de andar, de ver e de respirar  ar limpo, daquele que faz fome… é que são horas de jantar….

Isaba
Um duche rápido no quarto e de novo na rua para procurar restaurante, que há pelo menos 4 em Isaba, segundo a internet.

Descemos a pé, até ao fim da vila, onde fica aquele que, segundo as críticas que lemos, será o melhor. Entramos: mesas cheias, dá para ver que a comida nos pratos tem ar de merecer o que dela lemos. É já aqui, digo. Pergunto por mesa para dois. Impossível é a resposta, está cheio e o segundo turno está todo reservado. Que tente o Hostal Lola, que também serve refeições.

Lá vamos a pé, vila acima e, pelo caminho, passamos outro restaurante. Procura a entrada. Está fechado….

Hostal Lola: é coisa mais fina, dois ou três andares, grande menu aberto à entrada… subo, pergunto… não, estamos cheios, há muita gente, são as férias, os emigrantes, etc etc.

Temos dois croissants e uma lata de atum no carro…. Se calhar vai ser o jantar… parece impossível...

Meia dúzia de pessoas bebem um copo encostados ao muro em frente a um pequeno café que tem mesas (todas cheias) lá dentro. Pergunto de novo. A rapariga do bar olha-me com ar de quem não está muito para aí virada, mas pergunta lá para dentro, para a cozinha, se ainda se pode arranjar alguma coisa. Sim. (Estamos safos!).

Vinte minutos depois estamos a partilhar a mesa com um outro casal, enfiando o garfo e os dentes em duas ou três tiras de Txistorra, a magnífica salsicha aragonesa, ovos estrelados e as piores batatas fritas que alguma vez comi. Mas tudo nos sabe a augusto pitéu…

É o nosso último jantar, fora de Portugal, destas férias… não é lá grande climax para oito dias de absoluto disfrute de algumas das mais belas paisagens que alguma vez percorri…

É castigo, acho: não se pode passar por aqui e ficar tão pouco tempo….!

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

10 de agosto

Embalse de Lanuza. Este o destino que tomamos após um pequeno almoço com um dia claro e a prometer-se quente, a entrar pela janela escancarada da sala.



Nâo é longe e seguimos sem pressa, desta vez sem voltar atrás, antes deixando-nos ir estrada fora, em direção a Escarilla. As sombras ainda são compridas e é impossível não parar aqui e ali para pôr a máquina fotográfica a uso, tantas são as vistas que queremos guardar.

Escarilla
 
O início do trilho que segue a margem poente da barragem fica logo ao inicio da vila, bem perto de um grande largo onde estaciono.




Após uma pequena subida, o trilho inicia a descida até à margem da grande lagoa e persegue-a até ao paredão a barragem, enquanto o grande pano de água esmeralda serve de espelho às impressionantes paisagens que se revelam para prazer e fruição dos caminhantes.


Peña Foratata e Embalse de Lanuza

Poucos, aqueles com que nos cruzamos. Tudo é calma e sossego. Até a brisa, que não corre, para recato das árvores, fonte de apreciada sombra, que o sol vai quente e o ar húmido.



A meio do lago, do outro lado fica Lanuza, ou a parte que resta dela, a nova, recuperada, que esta é uma povoação quase ao estilo da nossa aldeia da Luz. Parte da povoação original estará debaixo do manto verde da água. Ao lado da povoação um grande anfiteatro desce para um palco à borda de água. Leio mais tarde que aqui se fazem festivais de música. E que bom que deve ser, um fim de tarde, com o sol a recolher por detrás das montanhas envolto em banda sonora.


Lanuza


O trilho não podia estar mais cuidado: a espaços, bancos convidam à paragem, à contemplação, para aqueles que a isso são mais dados, porque para os outros há sempre as mesas para um piquenique entre amigos ou família.




Sem pressas, chegamos ao fim do trilho. Decidimos voltar para trás pelo mesmo caminho. Do outro lado da lagoa, o percurso faz-se pela estrada e, para além e mais longo, não me parece que tenha assim tanto interesse, sendo também totalmente exposto, sem vislumbre de sombra.



Um ou dois kayaks fendem agora a água e o ar com os gritos dos remadores que, em bem humorada disputa, se desafiam mutuamente.

Volto a fotografar a Peña Foratata, o grande pico que se ergue ao fundo do lago, agora que o sol já vai mais alto e que o azul polarizado do céu fica mais escuro e contrastado.

Já no parque de estacionamento tomamos o carro e percorrermos rápidos a pequena vila de Sallent de Galego, de trânsito difícil, pelo apertado das ruas acrescido de obras de manutenção nos pavimentos. Dirigimo-nos a Lanuza. Queremos ver a vila.

                                                                           Lanuza
                                 
Simpática, bem cuidada. Os edifícios, de corte antigo não escondem, no entanto,  a tenra idade, como se pode ver gravado a escopro por cima de algumas portas.

Peña Foratata


Não nos demoramos que ainda temos tempo para ir a Panticosa fazer outra caminhada, pequena, a do Mirador de Santa Maria.

A deslocação de carro é rápida e em pouco tempo começamos a ascensão para o miradouro. 

Estranhamente, o início do percurso, após uma pequena subida inicial, faz-se por uma descida, com alguma pedra solta. À medida quer vamos descendo, não podemos deixar de pensar que estamos a caminhar na direção errada, mas pouco depois o carreiro empina, para nunca mais largar.


Está calor… húmido… e a coisa piora assim que saímos da sombra para a inclemência de um sol que chispa na pedra e nas costas.

O último troço leva-nos por fim a subir até uma plataforma com corrimão de madeira sobre o teto de uma das abandonadas casamatas que aqui, na crista do monte, em tempos serviram de postos militares de observação.

A vista, desimpedida e larga, vale bem o esforço da subida. Pena é que a hora seja péssima com o sol a pique a queimar um horizonte que, de tão belo, não merece o deslavado e manso contraste que o forra, para quem olha de cá de cima do morro.

O caminho de descida faz-se pelo mesmo trajeto, só que mais rápido, claro.


Panticosa - Vista a partir do M irador de Santa Maria

Em Panticosa, compramos bebidas frescas e almoço, que comemos depois no conforto e fresco do apartamento.

A tarde é de passeio. Temos tanto para ver e tão pouco tempo… seguimos direitos  a Jaca, mas não há como ficar indiferente aos sinais das placas castanhas que nos indicam pontos de interesse...
Castelo de Larrés, leio e tomo a direita da rotunda. Poucos quilómetros depois, feitos em planura onde o cereal vivia agora na lembrança dourada dos caules cortados rente de ambos os lados da estrada, um pequeno povoado com duas torres que entendo depois serem o castelo e que albergam também um museu de desenho. Não pressinto vivalma e está tudo fechado... regressamos.

Castelo de Larrés

Jaca: à entrada, torna-se óbvio que esta é uma cidade de militares. Quarteis, vários, e  as muralhas de uma cidadela que se impõe sobre um relvado que mantém à distância o bulício do trânsito. Só temos tempo para visitar por fora. Procuramos o posto de turismo e, munidos da planta, “ligamos os pontos” de interesse que, afinal, não são assim tantos nem muito distantes um dos outros.

Jaca - A cidadela

Jaca

Temos de regressar. Procuramos a estrada por onde viemos e, como tantas vezes, perdemo-nos. Insisto… volto atrás … e perco-me de novo…por fim lá consigo retomar o caminho, mas não sem que antes percorra alguns dos bairros mais periféricos da cidade que não contava, de todo, visitar….

A estrada corre por um  largo vale de grandes campos cultivados, acompanhando o que parece a “cicatriz” de uma zona de falha tectónica, lembrando uma longa e direita espinha dorsal.

Viramos para Biescas e de novo o caminho que já conhecemos, também correndo por um vale, embora muito mais estreito e acidentado.

Biescas

Biescas parecia recomendar paragem. Não é hoje o melhor dia: há feira e carroceis, e barulho entrecortado com calor. Não nos demoramos mais que uma gelada cerveja.

A sombra já vai tomando conta de todo o vale. Ainda quero chegar a tempo de fotografar o dólmen de Santa Elena, construção megalítica facilmente acessível a partir do cruzamento da estrada. Alguns carros sem pessoas estão por ali estacionados. Caminhantes, seguramente, que são vários os percursos que por aqui passam. Nada se ouve que não os ruídos que nós próprios fazemos. Com tempo e calma monto o tripé e recolho meia dúzia de fotografias… a luz, sempre ela… quem me dera ficar por aqui uma semana para ter realmente tempo para gastar na procura das melhores horas, das melhores luzes, das melhores sombras…

Biescas - Dólmen de Santa Elena


Mas amanhã é já para outro lado, que as férias não duram sempre….