quarta-feira, 13 de julho de 2022

 

Fator 50

 

Transparente como um mal que lento anoitece

sem se dar porquê, sinto o calor que dobra as folhas

já pálidas de cor.

Refugio-me

na lembrança do mar.

 

Desenham no ar elipses, que rompem aos gritos  

como se a geometria do voo fosse pendão inimigo

ou, simplesmente, pecado.

 

Abrem as asas ao vento que lhes acossa as penas

de quente, quase inverosímil, sustentação

e gritam

mais alto que o espumar túrbido das ondas

que


O barco está já na areia.


Os homens também.


Sobra o frenesim urgente, suplicante de ar

no atropelo de uma rede

cheia

de vida, também ela transparente,

a diluir-se num último estertor, sôfrego, na areia

ou no bico de uma gaivota.

Na rua passam carros,

algumas pessoas

apesar de tudo

e da promessa de mar

que me ofereço

para resguardar a pele

sem me ter que lambuzar.

 

 

 

 

 

sábado, 30 de abril de 2022

GR11-E9 (Parte 4) - Trafaria - Cacilhas

GR11-E9 (Parte 3) - Fonte da Telha - Praia do Meco

GR11-E9 (Parte 2) - Praia do Meco - Cabo Espichel

GR11-E9 (Parte 1) - Trafaria - Fonte da Telha





E porque não continuar? a ideia não me saía da cabeça há já algum tempo porque, depois de ter concluído a ligação da Trafaria ao cabo Espichel, fazia todo o sentido continuar até ao acidente geográfico que determina o início da "margem Sul", por isso, na tarde soalheira de véspera de  Dia da Liberdade, meti-me a caminho de carro, de novo, até à Trafaria, para de lá partir para calcorrear a estrada que leva a Cacilhas.

O caminho é todo feito em asfalto e não é particularmente difícil, embora os primeiros dois quilómetros sejam sempre a subir, desde a estação fluvial da Trafaria até ao cruzamento para o Murfácem. Mas como a seguir a uma subida, regra geral, há de haver uma descida, não é nada que qualquer caminhante, minimamente habituado a andar, não faça com facilidade.



A primavera é uma excelente ocasião para caminhar. As bermas das estradas, mesmo as menos interessantes, têm sempre qualquer coisa para oferecer e, enquanto subia, várias vezes fui parando para observar as muitas flores silvestres e insetos que elas atraem.


Esta é ainda uma zona marcadamente rural, com algumas quintas ainda a arrancar da terra sustento, quanto mais não seja, para alimentar os bonitos cavalos que, tal como eu, tiravam prazer da belíssima tarde.



Um pouco mais à frente a paisagem muda por completo; estamos nas faldas da cidade. O Edifício da faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova marca claramente a transição. Para Oeste daqui é o império do betão, embora o Monte da Caparica,  última vila de casas térreas e uma igreja, viçosa, no seu  óbvio ar de  recente restauro, nos convide a uma rápida incursão.

Um cartaz indica que aqui será criado mais um parque verde, para desfrute da população. Nunca são demais, espero vê-lo em breve.







Na extrema do Monte da Caparica, percebe-se de onde o toponímico... a partir daqui é sempre a descer até Cacilhas, e a posição elevada permite uma visão sobre os terenos que ladeiam a linha férrea com o Cento Comercial, a servir de fortaleza de guarda ao Feijó e Laranjeiro


Há já alguns anos, por ter passado a trabalhar em casa, que não apanho o comboio... No entanto continuo a achar que este e o metro e, mais recentemente, o passe social a preço módico, foram  investimentos verdadeiramente estruturantes para a população desta margem.





Ao lado do comboio, correm as hortas. Intriga-me se algum sustento se consegue tirar destes campos resgatados às bermas das estradas, trabalhados a pulso e suor. Não se vê uma erva entre as leiras de milho e batatas (?), mas a água, essa é a das chuvas e nem batata nem milho são culturas de sequeiro... espero que sim, que tanto esforço merece, seguramente, recompensa.


A Rotunda do Hospital marca a entrada na grande urbe. A partir de aqui é Almada, a cidade. Sem que tal fosse desígnio, seguramente, e apenas acessível a olhar dos mais curiosos, o redondel verde premeia-nos com uma magnífica surpresa: orquídeas, às dezenas, pelo menos quatro espécies identifiquei eu, que de botânica percebo quase nada.


      

Esquerda para a direita: Anacamptis coriophora; Ophrys apifera;  Serapias strictiflora; Serapias parviflora.

Almada, meio da tarde de um sábado primaveril é uma cidade como tantas outras: as esplanadas estão bem ocupadas por conversas de circunstância adoçadas a café ou cerveja, as ruas desertas, de quando em vez ouve-se o chiar das rodas do metro sobre os carris... sigo em bom passo que é sempre a descer e nada de fotogénico se me atravessa em frente (ou mesmo de lado).

Cacilhas anuncia-se com o início da rua pedonal que me leva por entre as esplanadas dos muitos restaurantes que convidam residentes e turistas que, de novo, por aqui se notam. Poucas centenas de metros faltam para terminar o meu passeio. As obras  no largo dão um ar de desarranjo ao bonito chafariz, réplica do original inaugurado em 1874 e destruído nos anos 60 do século passado após o advento da água canalisada, que ali foi colocado, em boa hora, pela Câmara Municipal em 2012.
 



Queria acabar mesmo junto ao farol, não o posso fazer porque a área está vedada por causa das obras (o que não impede alguns pacíficos pescadores de trespassarem a vedação..)

Quase tão velho quanto o chafariz original, o velho farol , com 12 metros de altura, foi inaugurado em 1886 e desativado em 1978.

A história,  no entanto, guarda amiúde surpresas para deleite dos que a procuram melhor conhecer e a busca de alguma informação sobre esta singular infraestrutura conduz-me, de repente à coincidência:
estive na Ilha Terceira há muito pouco tempo e lá, visitei o farol da Serreta. Ora, o farol de Cacilhas, que era originalmente verde e não vermelho e estava localizado um pouco mais perto do cais dos cacilheiros do que agora está, fez uma temporada de serviço, entre 1983 e 2004,... na Serreta, substituindo o farol que alí existia e que foi danificado pelo grande sismo de 1980. 

A tinta vermelha está já bastante deslavada pela ação dos elementos, espero que agora que tantas obras por ali se fazem, se não esqueçam de revestir o velho farol com a luz que tanto merece. 


Farol da Serreta, Ilha Terceira, Açores

Passeio terminado. o "conta quilómetros" da aplicação diz-me que foram 10, 42 km, com um tempo total de 2h 24min, incluindo aqui as pausas para visita à igreja e desfrute da paisagem.

Espero pela boleia que me há de levar de volta à Trafaria, para recuperar o carro que ali deixei estacionado, a pensar já que há caminho para o outro lado do rio que valeria a pena fazer.... a ver vamos....




terça-feira, 22 de março de 2022

 Dia Internacional da Árvore
Dia Mundial da Poesia
Parabéns Joan Sebastian

(histórias de um dia que é só um,
embalado em óbvia redundância)



Escrevo atrasado, semi-desleixo,

ainda mais que a primavera se antecipou,

mas vi as árvores, estavam lá

e nos ramos guardavam todos os poemas

que não sei escrever

e que agora eclodem

em matizes de verde.

Sei que os vou ler,

Tenho até ao outono!


domingo, 6 de março de 2022

 GR11-E9 (Parte 3) - Fonte-da-Telha - Praia do Meco


E pronto: esta completada a ligação. Trafaria-Cabo Espichel… já posso dizer que caminhei de uma ponta a outra. Faltava o pedacinho entre a Fonte da Telha e a Praia do Meco - por causa da Lagoa de Albufeira estar aberta para o mar, durante o verão - mas agora que é inverno, o vento, as marés e as ondas, repõem a areia no canal de ligação, fechando-o e possibilitando a travessia na ponta mais ocidental da lagoa.

Faço-o com a ligeireza despreocupada de quem caminha pelo prazer de andar e de passar e ver. 

Ao Norte, muito ao norte, outros caminham, desesperados, na busca do maior dos bens – a Paz - enquanto outros, empurrados pelo capricho narcísico de um louco, se afadigam a negar-lhes a dignidade de Ser, a qualidade de Humano.

Sorvo o oceano com o olhar. É infinito, parece, mas não é assim.

Também a guerra há de acabar. Resta-me essa certeza. Parco consolo para mim, que, com a sorte que me dá o acaso de aqui viver, só a sinto pelos ecos das televisões ou dos serviços de Internet, ou ainda pela constatação das filas para abastecimento dos combustíveis, que galopam na escala dos preços; indiferente postulado para os que nela se vêm envolvidos, sem outra coisa terem feito que se afirmarem nação, como os acordos, assinados e reconhecidos pelo agressor, o dizem.

O sol ergue-se sobre a linha do horizonte: por baixo, o mar azul; por cima,  a luz que o sol lhe deita, amarela.

Até o dia se pinta nas duas cores mártires….

Este é um percurso sem história. É plano; escolhi a hora da maré vaza para evitar ter de caminhar em areia solta e não chegam a ser dez quilómetros. Passa pouco das  sete horas da manhã. O sol já nasceu e está fresco o dia, com algumas nuvens, mas sem ameaça de chuva. Deixo o carro no fim da estrada alcatroada, já cá em baixo, na Fonte da telha. Optei por ir sempre pela praia e não pela arriba, contornando as instalações da NATO. Verificado no Google Earth, a distância é a mesma e evito o inconveniente de poder encontrar alguma areia solta no ladear da lagoa, que teria que fazer, caso viesse por esse lado.


Tiro a primeira fotografia – o local por onde começo - e, passo a passo,  lá vou seguindo  pelo caminho de terra batida até ao seu fim. Os surfistas  parecem ter tomado este local, a julgar pela construção que encontro e que está deserta, mas que tem todo o ar de ponto de encontro e convívio dos intrépidos  deslizadores, guardada por uma curiosa escultura de uma cauda de  … golfinho (?) feita de pedaços de madeira atirados pelo mar para a praia.

A partir de aqui, tem que ser pela areia, mesmo. E lá vou eu, bem junto à linha de água, onde o chão é mais firme, com passo estugado, que a marcha nestas condições é fácil e prazenteira.

É março, e as mimosas estão floridas. Aqui e ali, intensas machas amarelas maculam o verde que alastra até ao início das arribas. É pena ser uma invasora que causa grandes problemas a outras espécies autóctones, porque o quadro é bonito de se ver.



Mexilhões asa de anjo, uma estrela do mar, búzios, conchas diversas…. Nos dias de mar agitado é comum cruzarmo-nos  com eles no areal.  




Mais à frente começo a notar que a arriba, até aqui pouco esculpida e até monótona, ganha cores e formas. Por uns momentos, quase me julgo algures no Bryce canyon, tamanha  a beleza das formas e cores que as encostas de arenito, erodidas pelos ventos e chuvas, agora aqui assumem. Faço várias fotografias, deslumbrado com a descoberta e tomo uma nota mental de aqui um dia voltar com melhor equipamento fotográfico. O local, por certo, merece-o!




Estou já a chegar à Lagoa de Albufeira,  e vislumbro um vulto escuro sobre a areal. Aproximo-me. Sinto  o cheiro pútrido da decomosição e reconheço a forma de um golfinho, morto, sobre o areal. Não posso deixar de notar que está mutilado; sem algumas barbatanas. 


Hei de ler mais tarde que é algo vulgar este tipo de encontros e a explicação para a mutilação é tão triste quanto simples: enredados nas redes de arrasto, os animais são içados para os barcos e os pescadores, para não danificarem as redes, mutilam os corpos aos animais, porque geralmente é pelas barbatanas que se encontram nelas presos. Espero que, pelo menos, as pobres criaturas já estejam mortas quando lhes cortam o corpo. Se assim não for, o crime é a todos os títulos, hediondo!

Já depois da Lagoa, uma neblina sobe do mar para a praia, alguns pescadores  tentam a sorte de corrico, mas os robalos parecem não estar para aí virados…



Alfarim. Está quase. Decido ir novamente pela baixa arriba que a partir daqui se ergue de novo, passada que está a lagoa. 25 metros a subir pela areia solta, com paragem para tirar uma rápida fotografia a uma belíssima linária que se cruza no meu caminho e chego novamente à estrada, que logo perco para seguir pela caminho que cruza a mata até ao meu destino final.

Linaria Polygalifolia


Praia do Meco. Cheguei. Sento-me numa pedra e telefono a pedir boleia para o regresso, como combinado. 

O visor do telemóvel mostra um total de 9,77 km percorridos enquanto o sol, amarelo, brilha sobre o mar, azul.