GR 11 – E9 – Trafaria - Base Militar NATO Fonte da Telha
O GR11 – E9 é um trilho de Grande Rota que atravessa a Europa. Os
seus dois pontos de origem e destino provam bem pelas diferenças que lhes são
aparentes que este é um trilho longo e, seguramente, diverso
São Petersburgo dos Czares e o cabo de S.Vicente do Infante… 5.000 km de costa atlântica
debruçada sobre o Báltico, o Mar do Norte, o Canal da Macha, a Biscaia e, por
fim, as arribas da costa ocidental Ibérica, da Finisterra à ponta de Sagres.
Tenho andando bastante a pé, ultimamente, mas ao ritmo que
venho cumprindo diariamente levaria alguns 500 dias até descalçar as botas à
porta do farol algarvio. Talvez por isso, resignei-me a um trecho bem mais
curto, e bem mais consentâneo com a minha experiência de andarilho, o que não
me impede de dizer orgulhoso que “já fiz um pedaço do GR11-E9”, quanto mais não
seja para me confortar o ego.
Tinha lido que a Câmara Municipal de Almada, seguindo a boa
moda que as Camaras parecem estar todas agora a descobrir, de recuperar,
definir, remarcar, manter, percursos pedestres, tinha marcado um percurso
pedestre entre a Trafaria e as instalações da NATO na Fonte da Telha.
Há uns tempos que o andava para fazer, porque, primeiro, é
às portas de casa, segundo, passava por sítios que eu nunca passei, embora more
no Concelho há uns bons anos e já o tenha corrido quase todo e, terceiro, tendo
18 km de extensão e uma ou duas subidas mais ingremes pelo meio, daria para me
aperceber de como me encontrava fisicamente.
Por isso, numa folga, meti as barritas, a clássica sandes de ovo e alface e a garrafa
de água na mochila, ataquei bem os
sapatos, enfiei o chapéu na cabeça, apesar do dia estar para o encoberto (mas
nunca se sabe, não é…) peguei num bastão e meti tudo no banco ao lado do
condutor.
Destino: Trafaria.
Àquela hora, apesar de ser segunda-feira, o trânsito não
seria problema e estava o relógio do meu fiel Skoda Fabia quase a latejar as
seis e meia da manhã, quando passei à porta do centro de saúde onde alguns
candidatos à benfazeja vacina se aprestavam já a guardar vez (depois não admira
que as filas se adensem ao longo do dia….).
Grande sorte: um sítio para estacionar mesmo ao fim da rua. Um bom
presságio para o dia.
Fui até ao largo do cais dos barcos, local onde oficialmente
começa o trilho. Não vi o painel de início, talvez retirado por causa das obras que por ali
havia, ou então talvez o painel estivesse localizado no Porto Brandão, local
onde o trilho se pode também iniciar, numa variante de percurso.
Ah. É por aqui!
Um poste com a primeira marcação apontava em
frente e, em frente, eu segui. O relógio marcava seis e trinta e quatro; o dia estava fresco; a vontade de andar era
grande. Como seria? Difícil? Muita subida? O coração, para mim, que já lhe
mexeram, é sempre uma preocupação, não posso abusar, mas sentia-me preparado e,
com passada segura e determinada, lá iniciei a caminhada, na contramão das
pessoas que se dirigiam à paragem do autocarro para também elas iniciarem o seu
dia, seguramente menos prazenteiro que o meu.
Era óbvio que estava a uma cota muito perto da do nível
médio do mar, por isso, a partir daqui, e sabendo que o percurso iria passar
pelo Convento dos Capuchos, e que não acompanharia a estrada para a Caparica,
seria a subir.
Muitas vezes fui à Trafaria de bicicleta. Gostava muito de
fazer a descida desde o cruzamento para o Murfacém, com as alegres curvas e
contracurvas a embalar o descanso após a ligeira subida que tomava a estrada a
partir da rotunda da Unversidade.
Desta vez o sentido era o contrário, por isso, saquei do
bastão e resignei-me. Toque; toque; a ponta de metal a bater no asfalto marcava
o ritmo de uma passada que tomava dinâmica de ralentando na justa inversa medida
da pendente que esforçada mas resolutamente ia vencendo, parando de quando em vez para uma fotografia de ocasião e também para garantir que o ritmo cardíaco se mantinha num nível aceitável.
Pouco mais de um quilómetro percorrido e o pior parece passado: no cruzamento para a bateria de costa da raposeira, a estrada que lhe dá acesso segue de nível, o que se faz imediatamente sentir nas pernas e na passada.
Passo uma visita mais detalhada à bateria, porque, há pouco tempo, lá estive a fotografar, e sigo a estrada, recuperando o folego e o ritmo de passada.
Entre Corvina e Raposeira. Não, não falo de peixe acompanhado de espumante, mas sim dos dois sítios que enquadram a estrada militar que me leva à escarpa sobranceira a S. João da Caparica, um local onde nunca tinha estado.
Atrás de mim, as ruinas do forte de Alpena, parte do complexo da bateria do Regimento de Artilharia de Costa, à frente, um dia ainda novo, mas encoberto, que se anuncia húmido e me convoca um olhar panorâmico desde o dedo espetado no oceano do Cabo Espichel, lá longe, ao fundo, até à serra de Sintra, anunciada a meio caminho pelo ilhote do Bugio.
Sigo ao longo da escarpa , com cuidado, porque o tombo, a haver, é grande. O caminho inflete de repente para norte, novamente, recusando cruzar o que já foi a vedação (hoje uma vedação com várias possibilidades de fácil violação) do aquaparque da Caparica.
Começamos de novo a descer, e percebo que os meus passos me levam em direção ao IC 11, assustando no caminho dois ou três láparos, que correm a esconder-se nas silvas que ladeiam a estrada.
Cruzada a estrada, via passagem aérea, deparo com as primeiras pessoas que encontro, desde que deixei a Trafaria. Esperam o autocarro, parece. Novamente a pendente da estrada se faz sentir nas pernas e no folego. Continuo com calma, preocupado, como sempre, com as rpm do meu motor de combustão interno. Atravesso aquilo que o Google Earth me diz ser a Quinta da Aldeia e continuo a subida pela Aldeia dos Capuchos, em direção ao Convento que lhe deu o nome, onde chego após passar uma vereda cuja existência desconhecia de todo.
É a semana do Festival de Música dos Capuchos, e as bancadas ainda lá estão montadas. Gostava de as ter usado, em particular para assistir ao recital do Hopkinson Smith, mas afazeres e compromissos vários impediram-me de o fazer. A visão das cadeiras vazias tornam mais aguda a mágoa de não ter podido usá-las para fruir a noite embalada nos sons do alaúde do mestre…
Sigo a estrada de novo até virar para a estrada do Robalo (depois da corvina, já não é de estranhar e, na verdade, la em baixo é terra de pescadores… ainda….). Outro caminho a descobrir…
Caminho entre as vivendas, grandes e recatadas. O ladrar contínuo de cães faz-me saber que estão todas ocupadas, o que aliás se deixa perceber nos jardins bem cuidados e no um ou outro automóvel com que me cruzo. A estrada transforma-se em pista, de repente, bordejada por centenários pinheiros. Estou na mata dos medos, na paisagem protegida da Arriba Fóssil da Costa de Caparica. De alguma forma estou em território meu conhecido, embora nesta zona em particular nunca tenha passado.
A areia está cada vez mais solta, seguramente efeito das passagens de jipes todo o terreno e motas de motocross. Ainda bem que é a descer, sempre custa menos, mas a areia solta é um piso cansativo e desagradável. Para mais tenho ambos os sapatos ligeiramente rotos, à frente, de lado, o que faz que, com cada passada, alguma areia entre para dentro deles e se vá anichando contra os dedos, o que aumenta imensamente o desconforto, a ponto de ter de parar, de vez em quand,o para uma rápida operação de “vazamento”.
O caminho leva-me arriba abaixo, o que não me agrada de todo, porque sei que terei novamente de ganhar cota, uma vez cruzada a estrada que segue para a Praia da Mata, por onde tantas vezes passo.
Meu dito, meu feito: cruzo a estrada e embrenho-me de novo na picada, que segue agora ao longo da Caparica agrícola onde água e fertilizantes dão corpo ao milagre de retirar brócolos, couves e milho do que me parece ser não muito mais do que areia…. Passo por aspersores a funcionar e deixo que o chuveiro me apanhe. Sabe bem, estou já bem suado e o dia húmido, embora com uma temperatura muito agradável, não ajuda a que a camisa seque.
Como são bonitas as perpétuas-das-areias, agora que estão em flor e mancham de amarelo quente o areal por onde alastram também os malfadados chorões… paro um pouco a fotografá-las.
Sei que estou quase, quase, a cruzar de novo o asfalto, no desvio para a praia do rei, e é na pequena clareira que aí existe, para parqueamento de viaturas de emergência, que me sento num providencial tronco de pinheiro para me dessedentar, descansar um pouco, vazar uma vez mais os sapatos e trincar uma barrita energética, com dois terços do caminho andado.
Retomo o caminho: há um desnível de cerca de 20 metros, que se vence com facilidade porque a trilha apenas tem 5 ou 10 metros mais inclinados. Depois, alcança-se de novo o plateau da mata e será sempre a direito até ao final do trajeto, num caminho que me é totalmente familiar e que já várias vezes percorri, num sentido ou noutro.
Sigo o caminho bem marcado, cruzando a espaços a areia solta dos corta-fogos que conduzem a miradouros sobre as praias. Já estive em todos muitas vezes, e apenas paro no que mais gosto, para a habitual fotografia.
Sinto que vai chover: a brisa está mais fria e a humidade sente-se.
Já não é presságio, é mesmo água que cai do céu, em versão molha-tolos, mas persistente, ao mesmo tempo que chego ao limite exterior norte da bateria de costa da Raposa. Sento-me no portão móvel que barra a estrada alguns metros antes da porta da bateria. Passados os corta-fogo tenho de novo os pés atolados em areia, dentro dos sapatos. Descalço-me de novo para operação de “manutenção”, volto a calçar-me e retomo a trilha que segue a vedação da bateria.
O parque de merendas sobranceiro à Fonte da Telha está ocupado pelo apoio logístico de uma equipa de filmagens, embora não veja qualquer tipo de ação por ali. Já só me falta o trecho que vai da Fonte-da-Telha até às instalações da NATO, dois ou três quilómetros, a direito, sem outra dificuldade que a falta de rede telefónica a espaços, por isso telefono para casa, para avisar o meu apoio logístico, (não sou menos que os outros, não é verdade?) que pode vir andado para me recolher (que voltar para trás a pé, não era opção….)
A chuva parou, de novo. em todo o caminho na mata, ter-me-ei cruzado com 2 pessoas e um cão (à trela de uma delas). Sinto-me imensamente bem, não demasiado cansado, ainda com reservas para mais uns quantos quilómetros.. se o soubera, teria definido a Lagoa de Albufeira como termo da viagem, já que seria sempre a descer (mas provavelmente com mais areia solta) e não mais do que uma légua...
Não importa, o que sei é que estou a chegar. Mais passo, menos passo e ,de repente, vejo à minha esquerda a estrada e ao fundo da mesma o portão da NATO. Olha… cheguei…
Também aqui alguns carros de apoio à produção cinematográfica esperam uma ação que não vejo acontecer em lado algum. Sento-me ao lado do painel do percurso. São 10h50. Confiro o gps do telemóvel - 18, 52 quilómetros – respeitável distância, rumino orgulhoso. Da mochila, saco a minha magnífica sandes de ovo. Haverá melhor prémio?
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