quarta-feira, 16 de outubro de 2024

 Rota Vicentina

2ª parte


 Vila Nova de Milfontes - Almograve - 2 de outubro 2024


Eu devia ter ficado à espera que isto acontecesse, se tivesse estado atento aos sinais do dia de ontem.... aquele nevoeiro matinal, aquele fresco húmido à noite... ainda assim tive mais sorte que as moças italianas que deixaram as botas no pátio, para apanharem ar.... pois o que apanharam foi água, que, de manhã, estavam, todas encharcadas, disse-me uma, com ar preocupado.... "talvez haja por aí um secador de cabelo", lembrei-lhe.

Na verdade eram óbvios os sinais senão de chuva durante a noite, pelo menos de uma imensa humidade relativa, que agora de manhã, se traduzia numa camada de nevoeiro daquele que mais parece um lençol branco que tudo cobre e tudo afasta da vista, para lá da nossa mais imediata proximidade.

Não era tempo com que gostasse  de ter de conviver, mas não estava em posição de escolha, por isso dediquei-me com afinco à preparação da saída, mais uma vez carregando o depósito de água na  mochila e acomodando bem o resto dos meus parcos pertences, reduzidos a uma muda de roupa exterior, um polar e um impermeável mais 2 mudas de roupa interior, e mais quatro pequenas saquetas, uma com os primeiros socorros, outra com os artigos de higiene, outra com os carregadores e auscultadores e outra ainda com o meu pequeno estojo de aguarelas, lápis e o meu diário de viagem que, obstinadamente, insisto em manter, sempre que faço estas caminhadas mais extensas.

Já na rua, procurei, como não podia deixar de ser, uma café aberto para a indispensável bica, conforto ainda mais desejado quando me via envolvido por todo o lado na tela branca que tornava o ar visível e as coisas o seu contrário.

Café da manhã; Cena 1, Toma 1... Acção:

Entro no café, grande, bem iluminado, com bolos apetitosos no balcão e quatro funcionários por detrás do mesmo enquanto alguém, que presumo a dona, ou a gerente, falava com outra pessoa numa das pontas do mesmo.

Aproximo-me do balcão, com óbvia intenção de pedir qualquer coisa e fico a olhar para as quatro pessoas que do outro lado se encontram. Passam 5, 10, 15, 20 segundos. Continuam os quatro ou a tagarelar entre si, ou a fazer o que quer que fosse, que era manifestamente nada.

Corta!

Meia volta e saio para a rua. Sorte que há um outro café do outro lado da rua, também aberto. Menos apelativo que o primeiro, é certo, bastante pior iluminado, com ar mais vetusto mas com uma máquina daquelas que conseguem tirar 4 cafés e dois abatanados ao mesmo tempo, pelo que a função primordial estaria assegurada.

Café da manhã; Cena 2, Toma 1... Acção:

Entro no café  em que alguém, presumivelmente cliente, como eu, se encontra sentado numa das mesas. Dirijo-me ao balcão, que se apresenta deserto.

"Naturalmente está lá dentro", mordisco para dentro "não deve demorar."

10, 20, 30 segundos.... o cliente sentado à mesa levanta-se e sai. Eu, para não lhe ficar atrás, mas não querendo parecer que lhe estou na peugada, espero mais 10 segundos e desando.

Corta!

"Porra, mas será que não se consegue tomar a merda de um café neste sítio..." e lá vou arrastando a mochila às costas na procura incessante do aconchego de uns miligramas de cafeína. Vila Nova de  Milfontes vai acordando e aqui e ali veem-se  pequenos grupos de trabalhadores imigrantes, que cavaqueiam talvez à espera dos transportes, os primeiros grupos de miúdos e miúdas a marchar para a paragem do autocarro para irem para a escola. A meio da rua principal diviso, no meio do clarão branco do nevoeiro, um outro clarão amarelo de luz... aproximo-me: ah, ah! outro café. é desta é que é!

Café da manhã; Cena 3, toma 1... Acção: 

Uma senhora está atrás do balcão, afadigada a fazer uma sandes para um outro cliente. Espero que acabe de a fazer, o que não demora mais do que o tempo que leva a escrevê-lo. Levanta os olhos e olha-me com um ar simpático e inquiridor, enquanto me responde com um sorriso e um "bom dia" ao "bom dia" que também lhe desejei. "Uma bica, cheia, por favor, e um pastel de nata."

" Tão rápida quanto a máquina do café o permite, coloca-me o meu obscuro objeto de desejo num tabuleiro acompanhado de um pires onde fumega (começa a ser hábito, não é?....) um pastel de nata queimadinho, como eu gosto, acabado de sair do forno. "Para pagar é ali com aquela colega", diz-me, apontando para o outro lado do balcão.

Pego no tabuleiro vou para uma mesa, finalmente contente por ter tido o prazer da urbanidade e simpatia num relacionamento efémero.... será isto tão difícil assim de concretizar, que raio se passa com as pessoas?

Corta!

Aquecido pelo sorriso da senhora do balcão, temperado a canela e nata e ainda com o sabor quente e acre do café a deleitar-me o palato, saio para a rua branca e tomo a direção que me indica a aplicação no telemóvel até alcançar o marco onde vejo as primeiras riscas verde e azul do dia. Cá vamos nós.

Entro pelo carreiro que sai pelo lado sul da vila por entre a vegetação e, após alguns minutos de caminhada, estou na estrada nacional, a caminho da ponte sobre o rio Mira, que ali vai, por fim, tomar banho no oceano.

Não se vê literalmente nada para baixo da ponte,  não ser uma ou outra silhueta de árvore na margem; não se vê literalmente nada sobre a ponte, para lá de umas escassas dezenas de metros da balaustrada da mesma e dos candeeiros que a iluminam. A meio da ponte, o nevoeiro começa a "cair" em pingos não muito grossos mas suficientemente incomodativos para começar a pensar que "o melhor é tirar o impermeável..."

Faço-o debaixo da copa de uma árvore, já do outro lado da estrada enquanto observo uma jovem que avança também para a outra árvore do lado.... por ali fica à espera que passe, provavelmente não tem impermeável. Trocamos algumas palavras de circunstância e avanço pelo trilho que corre agora por bosque, flanqueando extensões agrícolas.

Podia ter evitado a volta pela ponte, e poupado uns quilómetros se tivesse apanhado o pequeno ferry que cruza o Mira desde a Vila. Optei por não o fazer, no entanto, porque, para além de não saber se com o tempo que fazia continuaria a operar, queria ver uma pintura na empena de uma casa que sabia por ali existir e que ficava bastante a montante do local onde o ferry atracaria.

De repente consegui divisar a casa no meio da tela branca. Não a falharia nunca, de qualquer forma, uma vez que o caminho passa mesmo à sua beira antes de começar a descida para o rio.

Entretanto a chuva voltara a transformar-se em cortina de humidade apenas, pelo que o impermeável voltou a ser entalado entre a aba de fecho da mochila, por detrás da capa, também ela impermeável, de proteção.

De qualquer forma estava já totalmente encharcado da cabeça aos pés, porque apesar de tudo estava calor e o suor que em profusão produzia não evaporava, juntando-se à água no ar ambiente, ensopando, literalmente, calças, camisa e tudo o resto.

Chegado ao rio, pensei que poderia seguir pela sua margem, pela areia, até à praia na foz e, depois, seguir por ela adiante, tirando uma vez mais partido da maré baixa... mal pus o pé na areia desisti da ideia: não quereria avançar por ali adiante a pisar um piso mole e quase movediço...

Tomei então o caminho marcado, que se faz no princípio por estrada, durante umas boas centenas de metros, antes de subir para voltar a ladear terrenos agrícolas para entrar, por fim, no pesadelo da areia solta do trilho sobre as arribas, que assim iria continuar por bastantes quilómetros, alternando com os primeiros bosques de acácias, uma invasora que lentamente se tem expandido muito agressivamente por aquelas bandas. 

Atravesso um área com um curioso relevo cárstico, lapiás, creio chamarem-se, que fotografo contente por antever bom resultado.

Adoro fotografar. nestas caminhadas mais extensas forçosamente são várias as oportunidades de captar boas fotografias que se nos atravessam, mas curiosamente há aqui uma equação complexa que é preciso ter em conta.

Desde logo a disponibilidade... mental... o fim que se procura. Aqui,  o caminho, a passada, o contacto com a natureza, ser parte dela e não ser o que dela se retira, faz-me olhar tudo de outra forma... talvez que mais que a imagem procure o ritmo, a verdadeira imersão (como eu detesto esta palavra pelo neomodernismo vago que lhe associo); uma complexidade sensorial que a fotografia não pode dar, por ser simples representação bidimensional.

Os mesmo locais, mas diferentes formas de os olhar: a busca mais cuidada da imagem, da composição e a eliminação sensorial do que não pode ser captado no plano de focagem. Mais tempo, e, seguramente, um pulso mais lento, isto o que preciso quando o objetivo é a fotografia.

Não várias vezes, quando o corpo está já cansado e penso mais em chegar que em parar, olho o que, em condições normais, me faria parar e sigo em frente... por vezes a remoer o remorso.... (tanto que chego a voltar atrás, só para o malfadado clique, mas é raro tal acontecer).

Um promontório maior com que deparo lembra-me uma estação de serviço, tantos os caminhantes que a sós ou em pequenos grupos aproveitam as pedras altas para descansar o corpo e recompor os níveis, com algo para morder e beber.

Também eu encontro um lugar adequado para alijar a mochila e descansar o corpo. Não podia ser melhor, mesmo de frente para a linha de costa no sentido sul-norte... pena é que pouco se veja por entre a cortina branca que teima em se manter estendida.

Iogurte e uma fatia de pizza, sobra do jantar do dia anterior. Que bem me sabem.

De volta à areia e às acácias. De repente, uma praia, um areal enorme com escada de acesso. Quero acreditar que posso seguir por ele e evitar a areia solta por mais um bom pedaço... desço as escadas, sigo em frente com um ritmo que já me não lembrava ser possível. Como sabe bem, as pernas, completamente esticadas a cada passada, os pés fincados numa superfície dura, que retorna impulso a cada pisadela, ah, como é bom andar... ando umas boas centenas de metros e vejo um casal que cruza na direção oposta. "Devem estar a fazer o caminho no sentido oposto", penso. Ao chegar ao pé deles, pergunto-lhes se é boa a passagem pela praia e até quando por ela se pode prosseguir. Respondem-me que também eles estavam a tentar o mesmo que eu, mas que tiveram que voltar atrás porque não acharam maneira de voltar a subir para a falésia.

Estava convicto que havia subida lá à frente, mas decido não arriscar. Volto atrás também, e, pelo caminho, recomendo o mesmo a uma moça que me tinha perguntado se havia passagem pela praia e a quem eu dissera que eventualmente sim. Também ela inverte caminho e não se mostra nada chateada por o fazer, dizendo-me que eu lhe tinha dito que não estava seguro da existência da passagem... fico mais contente: sei bem o quanto custa cada passo a mais, numa altura em que o corpo já pede trégua.

Mais areia e mais umas passagens por bosques de acácias e o caminho inflete para o interior, por altura da Praia da Foz dos Ouriços, que apenas se deixa adivinhar sob o nevoeiro. Almograve está já perto e à entrada da vila há uma fonte. Sento-me ali a descansar e aproveito para comer mais alguma coisa que vai sendo hora de almoço. Estou cada vez mais convencido que a lata de conserva foi uma das mais importantes conquistas da humanidade. Filetes de cavala com iogurte, combinação tão improvável quanto vencedora.

O destino está a poucas centenas de metros. Não obstante a hora prevista de check in são, segundo me informa o documento de reserva para a pousada da juventude, as seis horas da tarde... onde é que já se viu... o que vou fazer até lá?

Dirijo-me, no entanto, à pousada, na mesma, uma vez que, pelo menos poderia lá deixar a mochila e descansar em algum sofá ou algo do género.

Na receção um letreiro informa que não está ninguém por ser hora de almoço. Fico por ali à espera e, pouco depois, uma simpática senhora aparece. Digo-lhe que tenho uma reserva para hoje e trata-me logo do check in. Que excelente surpresa. Não são duas horas ainda. Vou logo para o quarto, deixar as coisas e preparar-me para tomar um banho. Estou cansado e tenho a roupa toda absolutamente encharcada, colada à pele, da humidade e do suor. Felizmente não vou precisar de a lavar porque tenho roupa lavada que chegue até me encontrar com a minha mulher que comigo virá ter em dois dias. Ainda bem que assim é, por certo não a conseguiria secar se a tivesse de lavar. 
Tento improvisar um estendal para secar um pouco a roupa usada antes de a guardar na mochila. da forma que está, por certo irá ganhar bolor e cheiro nos dois dias que a terei que manter guardada. Os auscultadores fazem de corda, esticado o respetivo cabo entre os dois pilares da cama. Nele ficarão penduradas calças e camisa, mas não secarão e terei, no dia seguinte, de os guardar, nesse estado, num saco de plástico. O perfume que exalavam quando finalmente os retirei do saco, já de volta a casa, era, estou certo, classificável na gama das armas químicas.....

O resto do dia, como habitualmente, foi passado a descansar e na procura de um postal para enviar, o que não foi tarefa simples. A simpática senhora da Junta de freguesia/posto de correios disse-me para tentar no posto de turismo... e não é que consegui lá comprar um postal do Almograve???? (não é muito bonito, e diz "Odemira" à frente, mas a legenda atrás assegura que a imagem foi tirada na praia do Almograve, facto confirmado pelo funcionário do posto que me o vendeu....)

Não me sentia com vontade de cozinhar e procurei um restaurante, no fim do dia, para jantar. Estava cheio. Tudo caminhantes do Trilho, eu o único português e um dos poucos homens.

Já no posto de turismo, na pequena conversa que tive com o funcionário ele me tinha confirmado a opinião que eu fora alicerçando de que o Trilho dos Pescadores é maioritariamente procurado por estrangeiros, (alemães, diria eu, em primeiro lugar, nórdicos e italianos depois) e fundamentalmente por mulheres quer em grupos quer como eu, em modo solitário.

Zambujeira do Mar seria o destino do dia a seguir... se ao menos o nevoeiro levantasse...


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A ponte sobre o Mira quase que se não mirava....

...mas, se procurarmos, há sempre uma composição que se esconde e se pode fotografar. 

O mesmo lá por baixo, sobre o rio....

ou no bosque que ladeia a margem esquerda.

Este o mural que queria ver e que pesou na decisão de não tomar o ferry.

Que raio... seria uma casa, um restaurante, um hotel?


De repente via-me num filme de série B com um décor estranho ....

Esta a razão porque prosseguir pela margem do rio até à praia não me traria qualquer vantagem....

 

Quando a descobri, por baixo de um rail de estrada, iria jurar que estava viva, tão natural era a pose, mas toquei-lhe com o bastão, não se mexeu e manteve a mesma pose... Cobra rateira, ainda juvenil, acho.


As aranhas tinham as teias cheias de água, o que as tornava bastante mais visíveis. 

"Na outra margem, por entre as acácias," teria dito o Hemingway se por aqui tivesse passado....

A epítome da caminhada



Mesmo com nevoeiro as vistas eram belíssimas. Aliás, o silêncio, a ausência de pessoas à volta, a ténue imagem que se deixava adivinhar por debaixo da cortina  de ar espesso, tangível, convocava uma beleza própria, incomum, velada, só acessível a quem por ali estava. E quem por ali estava era só eu!

Os curiosos lapiás que me lembravam pele de leopardo


As acácias que, paulatinamente, vão ocupando terreno e negando o crescimento do que quer que seja à sua beira.

"Pit Stop"




O areal onde voltei para trás a certa altura e que começava lá atrás, na primeira falésia a entrar por mar adentro que se vê ao fundo, na fotografia.  Podia ser um pouco complicado, porque a maré já estava a encher, mas ainda assim, se tivesse continuado, tinha conseguido subir cá mais ao fundo, acho....

Corvos do mar


A praia da Foz dos Ouriços







terça-feira, 15 de outubro de 2024

 Rota Vicentina

2ª parte


Porto Covo - Vila Nova de Milfontes - 1 de outubro 2024


"Gaita! Mas porque é que eu não me levantei mais cedo?", gritei eu para dentro, no silêncio dos meus pensamentos quando me assomei ao terraço onde tomei o pequeno almoço, depois de uma noite mal dormida, muito por culpa do meu companheiro de quarto que, a partir das duas da manhã, um pouco depois de se ter deitado, decidiu entreter-me com uma  intermitente mas muito sonora demonstração do quanto partes nossas algures escondidas dento do nosso terço superior, podem vibrar de forma assustadoramente reverberante, ao ritmo da respiração.

O céu parecia uma enorme fogueira e o quente dos brilhantes matizes amarelos, laranjas, vermelhos  contrastava de forma absolutamente deslumbrante com o frio azulado do nevoeiro que,  lá ao fundo, envolvia a praia, rompido pela massa escura da ilha do pessegueiro que se recortava contra o céu. 

É por estas e outras do género que eu adoro começar o dia antes do sol raiar, sempre que ando por fora com o intuito de passear ou fotografar. Não há espetáculo que mais me ilumine que um nascer do sol como o que, infelizmente, não conseguia agora ver na sua magnífica plenitude, tapado o horizonte que estava por casas e telhados.

Em condições normais, às horas a que me encontrava a morder a sandes do pequeno-almoço, estaria já há algum tempo na rua, mas aqui, com as absurdas horas de check in reivindicadas pelos alojamentos - 15h; 15h30; 16h, até 18H...- , não há qualquer vantagem em sair cedo, porque depois, no fim da etapa, cansado e a precisar de um banho, teria que ficar algures à espera de poder entrar no alojamento, em absurdo e não merecido desconforto.

Enfim, como dizia o meu pai, não há vantagem alguma em chorar sobre o leite derramado, por isso, resignado com uma ou duas fotos do deslumbrante céu, só "para mais tarde recordar", continuei com os meus preparativos para a partida, que é como quem diz, carregar água no depósito da mochila, acomodar tudo lá dentro o melhor possível, massajar os pés com um pouco de vaselina antes de calçar as meias, para prevenir o aparecimento de bolhas, enfiar os pés nas já muito utilizadas, e por tal afeiçoadas aos pés, botas, atacadas com duplo nó para se manterem apertadas, e, por último, enviar os braços pelas alças da mochila e cingi-la o melhor possível ao corpo, tirando partido das várias correias que o permitem. Só faltava uma coisa, verdadeiramente indispensável: café. Estava, no entanto com sorte porque em Porto Covo há cafés abertos desde as 7h30, pelo que em poucos minutos  encontrava-me sentado numa mesa de um café em frente à insubstituível bica, debicando um pastel de nata que, à primeira dentada, libertou ainda algum vapor da cozedura de onde saíra há muito pouco tempo, estava certo.

E fiz-me ao caminho.

Um pouco de estrada a descer até à pequena praia da baía de Porto Covo que atravessei para logo tomar o trilho que subia pela arriba acima no flanco esquerdo da enseada. O cheiro, aquele cheiro de ontem, que eu tão bem conhecia, tinha hoje uma nova nuance olfativa: caril. O cheiro da perpétua das areias ou erva-do-caril, (Helichrysum sp.)  que se via nas dunas, em tufos aqui e ali, embora já com as flores secas e sem cor, mas cujo cheiro, esse, se sentia bem e me acompanharia ao longo dos dias da minha caminhada.

Como estava bom para andar, o dia. Fresco, com um sol não muito duro, filtrado pela humidade que se sentia ainda no ar, e que bela luz que deitava sobre a paisagem. Tinha sido um bom dia para por ali ficar a fotografar, mas o intuito era outro por isso contentei-me em observar e fruir a beleza da manhã que me recebia como apenas mais um elemento insignificante de relevo num panorama que se estendia até perder de vista para sul, sempre debruado a azul pelo mar e pelo céu, que, também eles, ao longe, pareciam ser só um.

Nestes primeiros quilómetros a pista corre em terra batida, mas não demorou muito a entrar na temida areia solta, que anunciava o que seria de esperar para o resto da etapa.

De todos os tipos de terreno por que passei  té hoje nas minhas caminhadas, a areia solta é o que mais detesto. É fácil perceber porquê,  basta pensar no que sentimos quando vamos a uma qualquer praia e de areia e temos que caminhar desde a linha de água até à sua orla superior em cima da areia solta em que os pés se afundam e dificilmente encontram apoio para tração., agora experimentemos fazê-lo por vários quilómetros a fio.... para além do cansaço que induz, a quebra de ritmo que provoca, com passada lenta e pesada, é verdadeiramente esgotante, se muito continuada. Acrescente-se a isso ainda a eventual necessidade de esvaziar os sapatos de quando em vez para eliminar a areia que neles possa ter entrado e o cenário ainda se torna mais desagradável. Felizmente, as minhas velhas botas portaram-se a rigor e apenas do lado direito alguma areia encontrou caminho por alguma fresta no revestimento, sem que no entanto a quantidade de areia fosse de molde a obrigar-me a paragem, antes de entrar na parte final da etapa, já corrida em asfalto e terra batida.

Por altura da Praia do Pessegueiro, assim batizada em razão da ilhota que lhe fica em frente e que tanta fama ganhou com a canção do Rui Veloso, a trilha desce para o areal e por ele seguirá até se alcançar o forte de Nossa Senhora da Queimada, altura em que se volta a subir para a arriba.

Do forte para a frente e após percorrer um bom pedaço num estradão de terra batida, volta a infletir para o bordo da falésia e para a areia solta, que sobre ela assenta. A maré estava bem vazia ainda e por isso optei para, de novo, descer para a praia e caminhar ao longo da linha de rebentação o que pude fazer até ao final da Praia do Malhão, evitando assim um bom pedaço do difícil piso com que, no entanto, me tive que contentar para o resto da jornada.

Se no dia anterior não tinha encontrado ninguém, agora era fácil  descobrir vultos, mais à frente ou mais atrás, tendo-me até, pela primeira vez, em dada altura, cruzado com pessoas que caminhavam na direção oposta e que, tal como eu fizera na parte Algarvia do trilho, o percorriam de sul para norte. 

Uma caminhante com quem me cruzei a meio do areal da praia do Malhão e a quem incitei com um "you're almost there..." perguntou-me se  poderia continuar pela praia, porque por cima da falésia era terrivelmente cansativo, disse.

Respondi-lhe que o poderia ainda fazer por dois ou três quilómetros, mas que tivesse em atenção que a maré estava a subir... e, chegado ao fim do areal, também eu subi as escadas até ganhar novamente a cota da arriba e do infame caminho de areia.

Este iria acompanhar-me até ao local onde, por fim, a trilha desemboca numa estrada de asfalto, por cima de um pequeno porto de abrigo de embrcações de pesca, no Porto da Bracas já muito próximo de Vila Nova de Milfontes. 

A esplanada do restaurante que ali existe proporcionou a muito agradável sombra de que desfrutei enquanto me refazia da energia desgastada  com as sandes e os iogurtes que comigo levara, observado com suprema inveja por uma gata branca a quem tive que oferecer um pouco do pão com atum de conserva que constituiu o meu faustoso repasto.

Um caminho de terra batida conduziu-me por fim ao exterior da Vila nova de Milfontes onde cheguei ainda com muito tempo para saborear a minha sacrossanta e geladinha cerveja sem álcool, pensava eu.... na mesa do café onde tomei assento com este fim, a resposta que tive ao concomitante pedido foi "não tenho.... desde que abri o café esta é a segunda vez que me pedem isso, por isso nunca cá tive isso...", desgostoso, tive de me contentar com a versão ainda mais deslavada da dita: água gaseificada. Ao menos também tem bolhinhas.....

Como estava muito próximo dos correios, ainda comprei o habitual postal que despachei logo ali, antes de ir para o hostel, onde cheguei ainda antes da hora do check in (15h), mas como à porta havia uma sombra e uma cadeira, por ali me deixei ficar até que, finalmente, veio alguém e pude tratar das intendências do alojamento, banho, roupa, etc.

Um passeio de tarde pela Vila, para abastecimento, e uma pizza numa esplanada gerida por um simpático  indiano ou paquistanês, fechou o dia que já também ele tinha terminado há bastante tempo, quando, por fim, regressei ao quarto para dormir.



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Nunca foi uma das minhas bandas favoritas, longe disso, mas não posso deixar de pensar nos Deep Purple: "Smoke on the water.....

... a fire in the sky."

Um singelo monumento de homenagem a um "Mestre Brissos da Silva Pacheco", falecido em 1941, sobre o qual não consigo encontrar qualquer referência, na descida para a praia da baía de Porto Covo.


Pois praia, só se for pela forma, porque em Porto Covo, há bastante melhor para gozar dos prazeres de água e areia (e também rocha). Não obstante, consegue ser fotogénica, se procurado um bom ângulo...

A Vila e a manhã que sobre ela avançava, na igual medida em que eu dela me afastava....




A omnipresença da Ilha do Pessegueiro, até, também ela, a deixar para trás....


ao longo do areal que a confronta na praia que lhe leva o nome.

O velho forte de Nossa Senhora da Queimada, começado a construir em 1588 que, em conjunto com o forte de Sto. Alberto do Pessegueiro, instalado na ilha e que nunca foi concluído, pretendia ser guarda contra os corsários que por estas bandas se aventuravam, banhado pela neblina que já se dissipava mas que por aqui ainda se vislumbrava


É uma sorte poder ter uma casa localizada em sítio de tamanha beleza, tal como é uma sorte conseguir fazer uma fotografia como esta: nada joga com nada em termos temáticos e conceptuais e, no entanto, a mim, parece-me uma bela imagem.

Não muitos, mas outros já tinham pisado esta areia antes de mim, naquele dia.... a fotografia não os mostra, mas estavam dentro de água, uns - surfistas - e outro à borda dela, esperançado em que algum sargo mordesse o anzol engodado que volta e meia lá lançava para o mar.

As rolas do mar, essas, continuavam impávidas a mordiscar por entre os limos das rochas.

Este o pedaço que tinha conseguido calcorrear lá em baixo, aproveitando a maré-baixa.

Muitas foram as vezes que tinha visto imagens desta coluna com um ninho de cegonha em cima, mas esta era a primeira que o via desocupado e semi-destruído. Não deve tardar a voltar a ser ocupado, que as elegantes aves já se ouviam a bater os bicos, em Vila Nova de Milfontes. 



Não é a toa que lhe chamam o "Trilho dos Pescadores". Alguns deles, por vezes, viam-se em sítios que me questionava como lá teriam chegado....

Não há muito para dizer, quando as imagens se bastam a si próprias. A mim, no entanto, trazem-me lembranças, cores, cheiros, sensações que não consigo descrever com palavras, mas que guardo como pequeno mas íntimo tesouro.


Vila Nova ficava ali, depois de um daqueles promontórios.

O porto de abrigo de Porto das Barcas