terça-feira, 15 de outubro de 2024

 Rota Vicentina

2ª parte


Porto Covo - Vila Nova de Milfontes - 1 de outubro 2024


"Gaita! Mas porque é que eu não me levantei mais cedo?", gritei para dentro, no silêncio dos meus pensamentos, quando me assomei ao terraço onde tomei o pequeno almoço depois de uma noite mal dormida, muito por culpa do meu companheiro de quarto que, a partir das duas da manhã, um pouco depois de se ter deitado, decidiu entreter-me com uma  intermitente mas muito sonora demonstração do quanto alguns apêndices anatómicos, algures escondidos dentro do nosso terço superior, podem vibrar de forma assustadoramente reverberante, ao ritmo da respiração.

O céu parecia uma enorme fogueira e o quente dos brilhantes matizes amarelos, laranjas, vermelhos  contrastava de forma absolutamente deslumbrante com o frio azulado do nevoeiro que,  lá ao fundo, envolvia a praia, rompido pela massa escura da ilha do pessegueiro, recortada contra o céu. 

É por estas e outras do género que adoro começar o dia antes do sol raiar, sempre que ando por fora com o intuito de passear ou fotografar. Não há espetáculo que mais me ilumine que um nascer do sol como o que, infelizmente, não conseguia agora ver na sua magnífica plenitude, tapado o horizonte que estava por casas e telhados.

Em condições normais, às horas a que me encontrava a morder a sandes do pequeno-almoço estaria já há algum tempo na rua, mas aqui, com as absurdas horas de check in reivindicadas pelos alojamentos - 15h; 15h30; 16h, até 18H...- , não há qualquer vantagem em sair cedo, porque depois, no fim da etapa, cansado e a precisar de um banho, teria que ficar algures à espera de poder entrar no alojamento, em absurdo e não merecido desconforto.

Enfim, como dizia o meu pai, não há vantagem alguma em chorar sobre o leite derramado, por isso, resignado com uma ou duas fotos do deslumbrante céu, só "para mais tarde recordar", continuei com os meus preparativos para a partida, que é como quem diz, carregar água no depósito da mochila, acomodar tudo lá dentro o melhor possível, massajar os pés com um pouco de vaselina antes de calçar as meias, para prevenir o aparecimento de bolhas, enfiar os pés nas já muito utilizadas, e por tal afeiçoadas aos pés, botas, atacadas com duplo nó para se manterem apertadas, e, por último, enviar os braços pelas alças da mochila e cingi-la o melhor possível ao corpo, tirando partido das várias correias que o permitem. Só faltava uma coisa, verdadeiramente indispensável: café. Estava, no entanto com sorte porque em Porto Covo há cafés abertos desde as 7h30, pelo que em poucos minutos  encontrava-me sentado numa mesa de esplanada, frente à insubstituível bica, debicando um pastel de nata que, à primeira dentada, libertou ainda algum vapor da cozedura de onde saíra há muito pouco tempo, estava certo.

E fiz-me ao caminho.

Um pouco de estrada a descer até à pequena praia da baía de Porto Covo, que atravessei para logo tomar o trilho que subia pela arriba acima no flanco esquerdo da enseada. O cheiro, aquele cheiro de ontem, que eu tão bem conhecia, tinha hoje uma nova nuance olfativa: caril. O cheiro da perpétua das areias ou erva-do-caril, (Helichrysum sp.)  que se via nas dunas, em tufos aqui e ali, embora já com as flores secas e sem cor, mas cujo cheiro, esse, se sentia bem e me acompanharia ao longo dos dias da minha caminhada.

Como estava bom para andar, o dia. Fresco, com um sol não muito duro, filtrado pela humidade que se sentia ainda no ar, e que bela luz que deitava sobre a paisagem. Tinha sido um bom dia para por ali ficar a fotografar, mas o intuito era outro por isso contentei-me em observar e fruir a beleza da manhã que me recebia como apenas mais um elemento insignificante de relevo, num panorama que se estendia até perder de vista para sul, sempre debruado a azul pelo mar e pelo céu, que, também eles, ao longe, pareciam ser só um.

Nestes primeiros quilómetros, a pista corre em terra batida, mas não demorou muito a entrar na temida areia solta, que anunciava o que seria de esperar para o resto da etapa.

De todos os tipos de terreno por que passei  até hoje nas minhas caminhadas, a areia solta é o que mais detesto. É fácil perceber porquê,  basta pensar no que sentimos quando vamos a uma qualquer praia  de areia e temos de caminhar desde a linha de água até à sua orla superior em cima da areia solta em que os pés se afundam e dificilmente encontram apoio para tração. Agora experimentemos fazê-lo por vários quilómetros a fio.... para além do cansaço que induz, a quebra de ritmo que provoca, com passada lenta e pesada, é verdadeiramente esgotante, se muito continuada. Acrescente-se a isso ainda a eventual necessidade de esvaziar os sapatos de quando em vez para eliminar a areia que neles possa ter entrado e o cenário ainda se torna mais desagradável. Felizmente, as minhas velhas botas portaram-se a rigor e apenas do lado direito alguma areia encontrou caminho por alguma fresta no revestimento, sem que no entanto a quantidade de areia fosse de molde a obrigar-me a paragem, antes de entrar na parte final da etapa, já corrida em asfalto e terra batida.

Por altura da Praia do Pessegueiro, assim batizada em razão da ilhota que lhe fica em frente e que tanta fama ganhou com a canção do Rui Veloso, a trilha desce para o areal e por ele seguirá até se alcançar o forte de Nossa Senhora da Queimada, altura em que volta a subir para a arriba.

Do forte para a frente e após percorrer um bom pedaço num estradão de terra batida, volta a infletir para o bordo da falésia e para a areia solta, que sobre ela assenta. A maré estava bem vazia ainda e por isso optei para, de novo, descer para a praia e caminhar ao longo da linha de rebentação o que pude fazer até ao final da Praia do Malhão, evitando assim um bom pedaço do difícil piso com que, no entanto, me tive que contentar para o resto da jornada.

Se no dia anterior não tinha encontrado ninguém, agora era fácil  descobrir vultos, mais à frente ou mais atrás, tendo-me até, pela primeira vez, em dada altura, cruzado com pessoas que caminhavam na direção oposta e que, tal como eu fizera na parte Algarvia do trilho, o percorriam de sul para norte. 

Uma caminhante com quem me cruzei a meio do areal da praia do Malhão e a quem incitei com um "you're almost there..." perguntou-me se  poderia continuar pela praia, porque por cima da falésia era terrivelmente cansativo, disse.

Respondi-lhe que o poderia ainda fazer por dois ou três quilómetros, mas que tivesse em atenção que a maré estava a subir... e, chegado ao fim do areal, também eu subi as escadas até ganhar novamente a cota da arriba e do infame caminho de areia.

Este iria acompanhar-me até ao local onde, por fim, a trilha desemboca numa estrada de asfalto, por cima de um pequeno porto de abrigo de embrcações de pesca, no Porto da Bracas, já muito próximo de Vila Nova de Milfontes. 

A esplanada do restaurante que ali existe proporcionou a muito agradável sombra de que desfrutei enquanto me refazia da energia desgastada  com as sandes e os iogurtes que comigo levara, observado com suprema inveja por uma gata branca a quem tive de oferecer um pouco do pão com atum de conserva que constituiu o meu faustoso repasto.

Um caminho de terra batida conduziu-me por fim ao exterior da Vila nova de Milfontes, onde cheguei ainda com muito tempo para saborear a minha sacrossanta e geladinha cerveja sem álcool, pensava eu.... na mesa do café onde tomei assento com este fim, a resposta que tive ao concomitante pedido foi "não tenho.... desde que abri o café esta é a segunda vez que me pedem tal coissa, por isso nunca cá tive disso...", desgostoso, tive de me contentar com a versão ainda mais deslavada da dita: água gaseificada. Ao menos também tem bolhinhas.....

Como estava muito próximo dos correios, ainda comprei o habitual postal que despachei logo ali, antes de ir para o hostel, onde cheguei ainda antes da hora do check in (15h), mas como à porta havia uma sombra e uma cadeira, por ali me deixei ficar até que, finalmente, veio alguém e pude tratar das intendências do alojamento, banho, roupa, etc.

Um passeio de tarde pela Vila, para abastecimento, e uma pizza numa esplanada gerida por um simpático  indiano ou paquistanês, fechou o dia que já também ele tinha terminado há bastante tempo, quando, por fim, regressei ao quarto para dormir.



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Nunca foi uma das minhas bandas favoritas, longe disso, mas não posso deixar de pensar nos Deep Purple: "Smoke on the water.....

... a fire in the sky."

Um singelo monumento de homenagem a um "Mestre Brissos da Silva Pacheco", falecido em 1941, sobre o qual não consigo encontrar qualquer referência, na descida para a praia da baía de Porto Covo.


Pois praia, só se for pela forma, porque em Porto Covo, há bastante melhor para gozar dos prazeres de água e areia (e também rocha). Não obstante, consegue ser fotogénica, se procurado um bom ângulo...

A Vila e a manhã que sobre ela avançava, na igual medida em que eu dela me afastava....




A omnipresença da Ilha do Pessegueiro, até, também ela, a deixar para trás....


ao longo do areal que a confronta na praia que lhe leva o nome.

O velho forte de Nossa Senhora da Queimada, começado a construir em 1588 que, em conjunto com o forte de Sto. Alberto do Pessegueiro, instalado na ilha e que nunca foi concluído, pretendia ser guarda contra os corsários que por estas bandas se aventuravam, banhado pela neblina que já se dissipava mas que por aqui ainda se vislumbrava


É uma sorte poder ter uma casa localizada em sítio de tamanha beleza, tal como é uma sorte conseguir fazer uma fotografia como esta: nada joga com nada em termos temáticos e conceptuais e, no entanto, a mim, parece-me uma bela imagem.

Não muitos, mas outros já tinham pisado esta areia antes de mim, naquele dia.... a fotografia não os mostra, mas estavam dentro de água, uns - surfistas - e outro à borda dela, esperançado em que algum sargo mordesse o anzol engodado que volta e meia lá lançava para o mar.

As rolas do mar, essas, continuavam impávidas a mordiscar por entre os limos das rochas.

Este o pedaço que tinha conseguido calcorrear lá em baixo, aproveitando a maré-baixa.

Muitas foram as vezes que tinha visto imagens desta coluna com um ninho de cegonha em cima, mas esta era a primeira que o via desocupado e semi-destruído. Não deve tardar a voltar a ser ocupado, que as elegantes aves já se ouviam a bater os bicos, em Vila Nova de Milfontes. 



Não é a toa que lhe chamam o "Trilho dos Pescadores". Alguns deles, por vezes, viam-se em sítios que me questionava como lá teriam chegado....

Não há muito para dizer, quando as imagens se bastam a si próprias. A mim, no entanto, trazem-me lembranças, cores, cheiros, sensações que não consigo descrever com palavras, mas que guardo como pequeno mas íntimo tesouro.


Vila Nova ficava ali, depois de um daqueles promontórios.

O porto de abrigo de Porto das Barcas




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