Rota Vicentina
2ª parte
Zambujeira do Mar - Odeceixe - 4 de outubro 2024
Na verdade, não chovia, mas era como se estivesse a chover, tamanha a quantidade de água no ar: uma verdadeira parede branca que, mais uma vez, tudo escondia, ou pelo menos esbatia e reduzia a apenas duas dimensões.
Ainda pensei vestir o impermeável, mal saí do hostel, mas só me iria fazer calor e não me protegeria de nada, por isso continuei rua acima, guiado pelo amarelo de luzes que sobressaíam na cortina branca.
Pouco depois estava a beberricar o meu café e (estava mesmo a tornar-se um hábito) um magnífico pastel de nata, ainda estaladiço e morno.
Compartia o espaço do café com trabalhadores asiáticos, uma funcionária brasileira e alguns outros caminhantes que tomavam o pequeno almoço.... uma vez mais, creio que era o único Português, coisa que, de resto, não me incomodava nada, mas que assinalo apenas como a constatação de que o mundo hoje em dia é de verdade um cadinho multi-cultural, onde se cruzam histórias, anseios, saberes, crenças, parecenças, diferenças. No poderia haver melhor definição , de resto, para um objeto que, basicamente, é esférico, o que favorece as interceções, já que ao contrário do que afirmam alguns (des)iluminados, não corremos nunca o risco de chegar à borda do planeta e cair no vazio. Parece mesmo que é mais fácil ser o vazio, que cair nele....
Estrada abaixo, na direção da praia, para depois galgar a primeira subida do dia e ganhar o caminho pelo topo da falésia.
Várias são as praias que se passam e cujas formas dificilmente se vislumbravam atrás do nevoeiro. Todas elas, no entanto, serão tão bonitas como difíceis de atingir, já que os carreiros que a elas conduzem serão, por certo, íngremes.
As acácias saltam ao caminho. E acho que uma palavra de grande apreço devo deixar aqui à entidade que zela pela manutenção dos trilhos e aos voluntários que a isso ajudam. O Trilho dos Pescadores está impecavelmente sinalizado em todo o seu trajeto e nota-se que os locais onde a densidade da vegetação poderia criar alguma dificuldade de passagem são regularmente mantidos, por forma a garantir uma fruição segura do caminho.
Um grande terreno agrícola, vedado, ombreia com um corredor paralelo à parede de acácias que o confronta. Um vulto deitado no chão mais à frente... uma enorme avestruz. Estou nos domínios da Herdade do Carvalhal, creio, que naqueles terrenos tem um verdadeiro jardim zoológico com bisontes, zebras, lamas, avestruzes, cabras montesas e eu sei lá que mais.
A avestruz está imóvel no chão e olha-me fixamente. depois, deixa cair o longo pescoço sobre a areia e assim se mantém, imóvel, com ar de doente, agonizante mesmo. Não acredito que esteja doente, porque os animais pelo menos devem ali ser bem tratados, apesar de tudo, mas o quadro é desconcertante, no mínimo. Será que está a chocar? nunca vi uma avestruz no ninho, mas sigo em frente, procurando assim racionalizar o ar triste e dolente com que D. avestruz me olhou.
Gosto muito de animais; de tanto deles gostar, nunca quis ter nenhum. Não creio que os animais devam ter donos. Generalizo, é verdade. Sei da importância que alguns animais podem ter como auxiliares terapêuticos, companhia, adjuvantes do homem para uma quantidade de fins específicos e necessários. Mas esta mania, de século XIX, de colecionar animais exóticos fora do seu habitat, faz-me uma confusão danada. Compreendo a importância dos zoológicos em termos de proteção de espécies fortemente ameaçadas, mas ter um bisonte no meio do Alentejo, ou uma zebra, ou um hipopótamo ou seja lá o que for, por mais bem tratados que sejam, parece-me totalmente desajustado, cruel mesmo...
Mais à frente o caminho vira para o interior, e prossegue ladeando estufas e plantações de frescos, das muitas que enxameiam a zona.
Reparo dias depois que passei à porta da "Herdade da Amália" , hoje um espaço alojamento turístico. Concluo também que o Caminho sofreu aqui alterações. Admito que nunca tenha passado diretamente por dentro da herdade , para evitar um espaço privado com utilização turística específica, mas originalmente terá descido à "Praia da Amália" que lhe é contígua, pelo menos as marcações de caminho originais que ainda são possíveis de vislumbrar, pintadas por cima, no acesso à referida praia, assim me levam a acreditar.
Talvez que a razão da alteração fosse poupar os caminhantes à forte e muito pouco resguarda subida que marca a arriba no lado sul da praia... a segurança, acima de tudo.
De novo regressado à arriba, após atravessar um longo espaço agrícola, domínio da Vitacress, prossigo por sobre os alcantilados que continuam a presentear o caminhante com recortes, praias, formações rochosas de singular beleza, apesar da capa de nevoeiro que aqui e ali teima em as cobrir.
Uma povoação, por fim: Azenha do Mar, e um café para me resguardar um pouco do chuvisco que entretanto caía, descansar um pouco e comer alguma coisa.
Peço um café, um bolo e uma garrafa de água de litro e meio. No momento de pagar são-me pedidos 5 euros. Pago, sem questionar. Arrependo-me de o ter feito. Deveria ter dito que sim, era turista, mas português e não parvo.
Deixo-me por ali estar até que o chuvisco para e o sol rompe, com calor de forno. Retomo depois o caminho, que me leva sempre por cima da arriba e pela areia até à orla norte da praia de Odeceixe, para onde desço por uma larga estrada de terra batida. O fim da etapa está à vista, lá ao fundo, do outro lado da ponte que se adivinha sobre a ribeira de Seixe, dali a uns quatro quilómetros. Telefono à minha mulher. Está a chegar também. Vou ter com ela à entrada da vila, que é como quem diz, ao Algarve, já que depois de passar o meio da ponte se passa também de província, deixando de vez o Alentejo para se entrar na nossa província mais meridional. Um muito bonito mural que está ainda a ser finalizado pelo autor, o artista urbano OzeArv, dá-me as boas-vindas
Recolhemos de pronto ao alojamento para um banho e muda de roupa e saímos de carro para ir dar uma volta e almoçar, o que fazemos num restaurante de beira de estrada numa localidade de que não retive o nome, mas onde comemos uns rojões excelentes....
Como é diferente andar de carro.... como os quilómetros são tão mais curtos....
Depois de almoço regressamos ao alojamento, para poder descansar, antes de nova saída para jantar.
Falta um dia, uma etapa, mas é a mais longa do trilho, convém estar descansado!
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Uma manhã muito clara, portanto...
... cinzento clara!
Tal como com os humanos, há quem também faça o caminho no sentido inverso....
Os bosques de acácias sucede-me, nesta etapa, mas é notório o trabalho que é feito para deixar os caminhos desimpedidos.
As galhas nos ramos das acácias que resultam da "infeção" pelo Trichilogaster acaciaelongifoliae e que permitem evitar a floração e frutificação e consequente geração de sementes.
Se não soubesse, diria que aqui houve mão de jardineiro.....
Praia do carvalhal.
Mãe Avestruz
e seu comparsa...
Praia dos Machados
Uma passagem um pouco mais complicada, mas com uns curiosos relevos antes de entrar...
... numa galeria de acácias...
...que ladeia campos de estufas e frescos...
... ao pé da "Herdade da Amália".
Porto de Azenha do Mar
Para onde quer que se olhe a vista é sempre de tirar o folego....
Podia ser uma curiosa árvore de natal, com os seus enfeites rendados....
Um pouco mais de verde...
... sobre uma imensa paleta de ocres, rosa, cinza.
A praia de Odeceixe quase se não via, do cimo da arriba que a protege pelo lado Norte.
Mas se tivermos paciência....
... o sol, acaba sempre por romper.
lá ao fundo, a meta,
onde se chega pela ponte que liga o Alentejo ao Algarve
aqui, em Odeceixe.
Não sei se a primeira parte do mural também é do OzeArv, mas é igualmente muito bonita
O artista a trabalhar. Gostava de ter tirado uma fotografia melhor, mas a pilha da máquina acabou com esta fotografia, precisamente.
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