Rota Vicentina
2ª parte
Almograve - Zambujeira do Mar - 3 de outubro 2024
Um luxo, o pequeno almoço. Habituado que estava a uma dieta invariável de pão com queijo e iogurte como quebra de jejum antes de sair para a rua à procura do café que me põe por fim num preparo razoável para encarar o dia, poder contar com cappuccino, torradas, bolo, fruta, doce, queijo e fiambre, sabe a coisa de cinco estrelas.... e eu aproveitei-as todas, terminando com um muito passável café da máquina que já antes me tinha dado dois cappuccinos também eles muito razoáveis.
Deixei a pousada da juventude do Almograve, onde passei a noite, por volta das 8h15. Na rua, o dia mostrava-se tímido de luz, mas farto de humidade, enquanto percorri a pequena vila.
A pequena igreja ombreia, do outro lado da rua, com um estranho complexo de casas de banho públicas, com portas a lembrar as mil e um noites e um formato global de tanque que me leva a pensar que não terá sido o uso atual que esteve na sua concepção inicial.... gostava de esclarecer tal mistério....
Intrigado, segui caminho direito à arriba esquerda da praia da foz dos ouriços que, na véspera, tinha cruzado pelo outro lado. Agora era-me possível vê-la, coisa que na véspera fora impossível, tamanho o nevoeiro. Aqui a trilha finalmente retomava o caminho da arriba, que é como quem diz, o caminho da perdição para o piso de areia solta que, mais uma vez, iria ser uma constante de muito do dia.
A forma como avançava agora, no entanto, fez-me reparar na diferença, grande, que há entre palmilhar areia solta ainda fresco ou já depois de vários quilómetros de caminhada. Sabia no entanto que seria sol de pouca dura a quase facilidade com que galguei o caminho arriba acima e os primeiros metros do trilho e que dentro em pouco voltaria à passada pesada e difícil que me cansa para lá do limiar do prazer que o simples facto de andar me proporciona.
A praia do Almograve espreitava lá em baixo e, mais uma vez, como a maré estava vazia, decidi descer a escadaria que levava ao areal e por ele seguir, tanto quanto me fosse possível. Reparei depois que, em termos de facilidade de trajeto, não ganhei nada com a manobra, já que, a partir da mesma escadaria por onde desci, a pista seguia por um largo estradão de terra batida, a direito, sem qualquer dificuldade a vencer. Não obstante, o caminho ao lado da água é-me particularmente prazenteiro, e este iria ainda revelar uma surpresa no final que me fez ficar muito contente por o ter preferido. De facto, à medida que me ia aproximando da parede de pedra escura que limita a praia no seu lado sul, comecei a divisar uma estranha quadrícula branca nela encrustada. Nunca vi uma afloramento de quartzo tão geométrico como este, acho. Parecia feito a régua e esquadro, matéria de fábula ou conto fantástico, um tabuleiro de jogo para gigantes e duendes, ou sereias e tritões.... uma amiga que viu a fotografia que enviei esclareceu-me que este tipo de formações resulta de um processo designado Boudinage (Obrigado, Rosária) nome que deriva da famosa salsicha francesa com que os veios de quartzo se assemelham e que, se bem percebi, resultam do depósito na falhas originadas pelos movimentos tectónicos de fluidos ricos em sílica que se transformam depois em quartzo.
A natureza, por estes lados, é verdadeiramente generosa para todos aqueles com inclinação por questões geológicas. De facto, há por aqui relevos para todos os gostos: dobras, fraturas, rochas de sedimentos, lajes, que se percebe claramente terem sido movidas pela força dos movimentos tectónicos em rotações de 90 ou mais graus, para não falar das cores da pedra, que vão desde o amarelo clássico do arenito ao mais escuro basalto (?), passando por uma infinidade de ocres, cinzentos e castanhos.
Subida a escadaria do fim da praia, segui ainda por um bom quilómetro pelo estradão de terra batida que termina por altura do pequeno porto de pesca da Lapa das Pombas, após o que a areia solta volta a reinar até se entrar num pinhal que nos trás o conforto de um piso mais duro e fácil. É fácil perceber por aqui a ameaça que as acácias representam, ao vê-las tomar as clareiras entre os velhos pinheiros. Passarei por muitos bosques delas, cerrados tanto que é impossível neles entrar. E ali, onde elas crescem, nada mais o faz!
Uma extensa clareira na paisagem apenas polvilhada de plantas rasteiras que lhe emprestam matizes vibrantes de verdes, salpicados pela paleta infinita dos tons da própria terra e da pedras que nela afloram, abre-se à vista, enquanto lá ao fundo, o chapéu vermelho da lanterna do farol do Cabo Sardão se deixa também perceber por sobre a linha do horizonte.
Paro um pouco, em pura contemplação. Só por uma vista destas tinha já valido a pena o suor largado na areia.
O caminho passa agora por campos agrícolas, e diviso à frente as primeiras casa da aldeia de Cavaleiro, mesmo em frente ao Cabo Sardão. Metade da etapa concluída, não poderia haver melhor para uma paragem e algum descanso.
No principal café da vila, tomo assento na esplanada. Sou apenas mais um dos muitos caminhantes que ali retemperam forças também. Uma vez mais concluo ser o único que fala a língua local, e que me serve para pedir uma garrafa de litro e meio de água, uma café cheio e um bolo qualquer, porque o açúcar é fonte de energia (pelo menos esta a desculpa para ver a atacar num croissant a exsudar chocolate por todos os poros... ).
Litro e meio de água é muito líquido realmente, mas tanta é a que se perde nas condições em que tenho caminhado, com relativo calor e uma humidade sempre muitíssimo elevada, por vezes mesmo no ponto de saturação, que não me é difícil escorropichar o conteúdo quase integral de uma garrafa para dentro do sistema, sem que daí resulte qualquer peso ou desconforto no estômago... para mais, em breve, grande parte dele recomeçará a brotar-me da pele, basta retomar o caminho.
Que é o que faço algum tempo depois.
O percurso oficial manda infletir de novo para norte, para ir reganhar o trilho sobre a falésia, um pouco a montante do Cabo Sardão, seguindo depois para sul até o cruzar.
Opto, no entanto, por seguir em frente logo, direito ao cabo, pela estrada que o liga à Vila. Com efeito, conheço relativamente bem esta área e já por ali passei várias vezes, pelo que decido seguir em frente fazendo um pequeno corte de caminho, que não passa de duas ou três centenas de metros.
Com o Cabo para trás, estamos agora no domínio das acácias... bosque atrás de bosque delas. Reparo que muitas estão cheias de estranhas galhas verdes. Leio mais tarde que são o resultado de uma infeção por uma pequeno inseto australiano, com que se pretende combater a propagação desta invasora. O inseto (Trichilogaster acaciaelongifoliae) inofensivo para qualquer outra espécie, põe os seus ovos nas gemas que originam as flores das acácias, o que faz que, em vez de flores, a planta, como reação, produza uma galha, não sendo assim produzido fruto e, consequentemente sementes. Levará tempo, por certo, mas parece eficaz.
Deixadas as acácias para trás volto à companhia de campos agrícolas até deparar inesperadamente com uma íngreme descida, apoiada em parte por vários lances de degraus, que me conduz até ao Porto das Barcas, já só a uns quatro quilómetros do fim da etapa.
Do outro lado do Porto, no topo da falésia diviso um pequeno santuário com uma imagem de Nossa Senhora. Sento-me por ali a almoçar, que já vão sendo horas de o fazer e é pretexto para descansar um pouco mais. Uma vez mais, uma lata de conserva (creio que sardinhas, desta feita, que nunca repeti um prato :-)) um pouco de pão e um iogurte líquido sabem-me ao mais rico manjar, não fosse a vista de que desfrutava melhor que a do mais luxuoso restaurante... que o digam os simpáticos asiáticos que chegaram em grupo e, enquanto almoçava, por ali ficaram também a tirar fotos nas mais diferentes poses para, por certo, encherem os respetivos instagrams ou facebooks ou ambos e outros ainda.
Não trocámos palavras, mas trocámos olhares, sorrisos e acenos. Mais não é preciso, quando se vem por bem.
O dia, à medida que avançava, acinzentava-se também e soprava agora um vento fresco que, pelas costas, me impelia pela estrada que me levaria à Zambujeira do Mar, destino final. Umas centenas de metros antes de lá chegar, no entanto, o trilho faz uma última inflexão para a arriba, possibilitando a quem o percorre mais algumas vistas sobre praias e recortes de costa verdadeiramente deslumbrantes.
Por fim o casario, e com ele a chuva. Não poderia ter coordenado o tempo de melhor forma. Dirigi-me de pronto para o hostel onde, como habitualmente, fui o primeiro a chegar e onde iria mais tarde encontrar duas caras repetidas de dias anteriores.
Uma vez mais não haveria qualquer possibilidade de secar roupa, mas como esse problema não me afetava, não estava nada preocupado. Queria sim o conforto de um banho, que tomei logo que desfiz a mochila para dela retirar os chinelos e o último suprimento de roupa lavada que comigo trazia.
A tarde, passei-a a descansar como seria de esperar, que a etapa tinha sido algo pesada. A passagem pela papelaria para o postal da ordem e pelos Correios/Junta de freguesia, para o expedir e para carimbar o meu caderno de viagem, bem como uma ida ao supermercado para comparar algo para o jantar foram motivo para uma última saída, sob uma chuva miudinha que só pararia noite feita.
"Esperemos que amanhã não chova o dia todo", lembro-me de ter pensar antes de finalmente fechar os olhos.... e não me lembro de mais nada....
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Podia ter seguido em frente e poupava uns quantos quilómetros, assim diziam as notas oficiais do percurso, mas não teria passado...
...pela pequena igreja...
...nem pelos desconcertantes (na forma) balneários...
A geologia, por estas bandas, é deveras interessante, mesmo para quem dela não percebe patavina, como eu.
Praia do Almograve
Como não ficar surpreendido com tamanha desconcerto de certeza geométrica?
Ou com os vibrantes arranjos de flores, mesmo que das mais simples e singelas de cor como chorões e funcho do mar?
Mesmo onde se não espera, há composições, cores, texturas que chamam pelo dedo no botão do obturador.
Não, não é peregrinação, e Santiago fica para o outro lado, mas quase parece.....
Que forças ergueram lajes ou as dobraram?
Porto da Lapa das Pombas
Não era o caso, mas imagino que, nos dias de sol, a sombra que o pinhal oferece ao longo da sua travessia deve vir mesmo a calhar...
Ao fundo já se vislumbra o farol
por aqui, a urze faz de farol também com os belíssimos tufos lilases com que começa a polvilhar a paisagem
Neste hotel, os mais precavidos têm direito a quarto com vista para o mar
Como não gostar?
O caminhante , no entanto, tem de estar sempre alerta... há perigos com que se não conta muitas vezes e os animais selvagens podem saltar ao caminho....
O edifício do farol do Cabo Sardão, inaugurado em 1915.
As cegonhas partiram de férias. Não tarda, voltam a ocupar os ninhos que salpicam os cumes das rochas.
Porto das Barcas
A vista para o porto, desde o local onde me sentei a comer e repousar.
Os últimos recortes de costa antes de entrar na...
...Zambujeira do Mar, fim de etapa.
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