terça-feira, 8 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

7 de agosto

O sumo de laranja, fresco e doce, empurra a matinal torrada que mastigo com gosto. “Em Roma, sê romano”; atento à máxima que sempre me pareceu avisada, barrei o pão não com a habitual manteiga, mas antes, como por aqui se faz,  com uma fina camada  de tomate liquefeito, temperado depois com sal e pimenta e adoçado com um fio de azeite.

Talvez por pouca torra no pão; talvez por excesso de líquido na tomatada, o miolo, que queria crocante, ensopou-se do vermelho fruto, a ponto de levar à boca algo que se aparentaria mais em textura com uma açorda que com uma matutina tosta.

Erro de principiante, certamente. A meu lado, no buffet, observo alguém que me ilustra numa seguramente menos húmida variação do costume: torrada pousada sobre o pires, corta um tomate ao meio e esfrega uma metade na crosta do pão, que, depois, humedece igualmente com um fio de azeite.

Já comi o suficiente, por isso experimentar esta sensata variante do Pa amb tomàquet (como por aqui se chama a coisa) ficará para outro dia. Por agora é tempo de um último café, de carregar o carro e tomar a estrada.

Lérida fica rapidamente para trás, que as estradas são excelentes, e o dia está bom para conduzir: mais fresco ainda que solarengo.

Não são muitos os quilómetros que temos pela frente até ao destino final: Pas de la Casa, na extremidade oriental de Andorra.

Tomamos a estrada por caminhos já conhecidos até passar Balaguer. Terras de cultivo, à esquerda e à direita num extenso planalto, antecâmara plana das montanhas que ao fundo se insinuam contra céu, istmo da península e da minha insaciável vontade de percorrer caminho e ver; Pirenéus, nome magnificamente sonoro. Não é preciso sequer saber que, como tantos outros nomes de sonoridade quasi-sinfónica, o devemos ao Grego, língua que, paradoxalmente,  pelo menos na versão moderna, me soa despudoradamente agreste, desconforme, sibilante.

Castelo de Montsonis, 2 km, diz a tabuleta…. Não há que resistir; de resto, a tirada hoje nem é muito grande. Mais que um castelo, Montsonis é uma pequena vila, recuperada para turismo, ainda é cedo e pouco há para ver, que a igreja está fechada e apenas dois turistas tomas o pequeno almoço no restaurante que serve também de sala de venda de alguns produtos locais. Demoramo-nos o suficiente para um café e uma passagem pela casa de banho e voltamos ao caminho, em direção às montanhas que se insinuam no horizonte.

Castelod e Montsonis

Castelo de Montsonis















                                               


Algures à frente a estrada desce de novo em direção ao rio, a nova represa, a barragem de
Rialb, que abandonamos por alturas de Oliana onde tomamos o caminho para a ermida de St. Andreu, erguida no topo de um morro e onde deparo com curiosos pórticos de metal decorados com dragões e flores. Subo à ermida e galgo o topo do morro. Do outro lado do vale,  outra ermida, erguida ainda mais alto, sobressai na perda cinzenta e nua da montanha. É a ermida de  Mare de Deu de Castell-Llebre, leio mais tarde.



St. Andreu de Oliana

Afinal a barragem de há pouco é parte de um sistema de barragens, porque aqui, em Oliana, o rio também está represado numa estreita garganta que ambas as ermidas parecem guardar como permanentes sentinelas.

Mare de Deu de Castell-Llebre
Seguimos em frente sem parar. Combinamos fazê-lo mais à frente, em Seu de Urgel, para almoçar e  passear pela vila, última povoação de relevo antes de se entrar em Andorra, e cujo Bispo é, desde a idade média, um dos seus dois co-príncipes administradores, cargo que partilha com o presidente da República Francesa, numa confusa e inesperada mistura entre regimes, por definição, antagónicos.
Seo de Urgel é um mimo. Uma curta visita, pela hora do calor, permit concluir que por aqui se vive bem, sem pobreza nem indigência, que o turismo muito deve ajudar. O turismo, os desportos de inverno, e a canoagem, em particular o kayak, que tem um campeonato do mundo aqui aprazado, para muito em breve.  .


Seu de Urgel

As ruas cuidadas, com comércio vivo, e as curiosas pinturas das casas com cores fortes e contrastadas, tudo transpira bem-estar…

Seu de Urgel


Uma exposição de pintura de paisagens ocupa a sala de exposições de St Domenech. Outro achado. Hiperrealismo em 2 e 3 dimensões. Paisagens simples, ruas, portas, janelas, tudo com um domínio superior da cor e da composição. Como é bom ser assim surpreendido.

O artista está presente. Desenha em caderno, para passar o tempo, que os visitantes não são muitos, pelo menos por agora. Cumprimento-o e agradeço a oportunidade de privar com tão deslumbrante arte. Peço-lhe um autógrafo num postal da exposição que simpaticamente me deu e que vou emoldurar, para a parede das melhores lembranças.

Andorra. Centros comerciais e um posto de alfândega do outro lado da rua, avisam que já chegámos.

Passamos Andorra a velha e a estrada sobe, sobre sempre; Fazemos contas aos quilómetros que jà andámoss, continuamos a subir, passamos mais povoações toda oferecendo o mesmo:  lojas e hotéis, que o ski não se dá bem com o verde do verão. Desconfiamos que estamos perdidos. Perguntamos num posto de gasolina  e esclarecem-nos que o nosso destino Pas de la Casa fica a quilómetros apenas; depois da curva, já se deve ver.

De repente uma manada de cavalos atravessa-se numa das muitas curvas da estrada. Não posso parar e fico com inveja do motard que, esse sim, parou e faz festas a um cavalo ternamente enrolado no seu pescoço.

O empregado da bomba tinha razão, Pas de la Casa fica já ali, numa saída pela direita da estrada principal. Os apartamentos, onde iremos ficar 3 noites também.

Pas de la Casa

O primeiro contacto com o apartamento não é dos mais animadores. Embora limpo, tudo nele - da tinta das paredes aos utensílios velhos e gastos de cozinha - transpira logística de viagem de finalistas….mas está um dia ótimo e não será  o azul pardacento da parede ou a fechadura com sinais de ter um dia sido arrombada, ou até mesmo a janela que teima em não fechar, que nos vai indispor contra a vida (que não contra  a rececionista a quem comunico o meu desconforto pela janela com o trinco avariado e que me promete que ainda no dia alguém a arranjaria… - aposto que, ainda hoje,  vento e  dia entram por ela, sem pedir qualquer tipo de licença….).

Não nos demoramos no apartamento mais do que o necessário para nos instalarmos. Queremos aproveitar o tempo e dar um pulo a Andorra la Vella. Faz mais de 20 anos que lá estivemos e apenas tenho a memória de uma espelunca infecta, que se oferecia como parque de campismo e que não passava de um lote de estacionamento com um bloco sanitário pouco recomendável, e de uma rua íngreme cheia de lojas de um lado e de outro. Pelo que vi no caminho para aqui, de então para cá, as coisas mudaram em volume, que não em substância… a ver vamos.

Tomamos a longa descida que nos leva do Pas de la casa a Andorra la Vella e, despreocupado agora que já não procuro caminho, absorvo a deslumbrante paisagem que se oferece de ambos os lado da estrada, com montanhas e vales espraiados por uma infindável paleta de verdes, entrecortada pelos castanhos, vermelhos e cinzentos das casas das várias localidades que se desenvolveram ancoradas em estâncias de ski, por estes dias irrevogavelmente vazias dos amantes da neve.


 


Andorra é o que era, já o disse, mas agora em grau superlativo. Por toda o lado lojas e centros comerciais anunciam consumo, em particular álcool, tabaco, mas também medicamentos, tecnologia… marcas, marcas, marcas….

Não obstante, tirando cigarros e copos, produtos de alto tributo acrescentado, nada há que me pareça substancialmente mais barato do que, por estes dias, se oferece a  qualquer consumidor com acesso a um computador e uma ligação à internet.

Duas horas depois de chegará cidade, estamos exaustos. Apesar do esforço, e do tempo perdido calcorreando andares de centros comerciais e ruas e ruas de lojas, não comprámos nada. Não há nada de novo ou suficientemente interessante para justificar a compra. Ficamo-nos pelo bom álcool e por uma cuvette de bifes para o jantar, que já vão sendo horas de voltar para casa e descansar as pernas, que nos sentimos mais cansados que se tivéssemos feito uma boa caminhada pelas montanhas, objetivo que guardamos para o dia que aí vem!


De volta a casa, os cavalos já não estão na estrada, mas ainda se veem um pouco mais acima da encosta. A tarde vai longa e, de França, vêm nuvens que engolem já uma boa parte do vale a seguir a Pas de la Casa…. o tempo vai mudar….


Pas de la Casa

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