Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
8 de agosto
O tempo mudou mesmo. O sol de ontem que emprestava brilho ao
verde das encostas e ao intenso azul do imenso pano de fundo, salpicado aqui e
ali pelo branco de uma nuvem, hoje teima em se não mostrar, a coberto de um
mais ou menos espesso filtro cinzento, prenúncio de chuva, ou pelo menos da
desconfortável patina húmida que a névoa deposita em tudo.
Por nós, até nem nos importamos muito. Não está calor e
desde que não chova, são mesmo condições ideais para a caminhada, em particular
para o passeio na montanha, a que iremos dedicar o dia, no Vale de Incles,
designado “Refúgio e lagos de Cabana Sorda”,
feito de desnível acentuado (475 m) numa extensão relativamente curta –
2,5 km a que há que acrescentar mais 1,5 km, de estrada plana até ao desvio
para o início do trilho. No total cerca de 8 km e 3, 5 - 4 horas de caminhada, por vezes bastante
exigente.
Deixamos o carro e procuramos fonte para encher a garrafa de
água, que nunca nos aventuraríamos montanha acima sem cura para a sede. Está
tudo fechado aqui no pequeno aglomerado de casas que marca o início da estrada.
Voltamos ao carro e retomamos a estrada principal um ou dois quilómetros
abaixo, onde uma pequeno estabelecimento nos serve um apetecido café e onde
podemos enfim comprar a água de que tanto necessitamos.
Agora já está tudo: mochilas às costas e bastões nas mãos,
partidos estrada acima até ao depósito de água que marca o início do trilho.
Carretera de la Vall d'Incles vista da encosta |
Os primeiros quinhentos metros de subida são feitos em campo aberto, acompanhando em parte uma pequena linha de água. Não posso deixar de notar as flores de algumas plantas que me são totalmente desconhecidas, embora também encontre algumas, como as pequenas campânulas azuis que estou habituado a ver nos meus passeios em Portugal. Apesar de ser agosto, as plantas aqui devem florescer mais tarde, por isso ainda há outras cores que não o verde e o amarelo pardo a amenizar o passeio.
De repente a trilha leva-nos por um bosque com coníferas velhas, de troncos e raízes retorcidas. O silêncio, apenas quebrado pelo ruido ritmado dos nossos passos e pelo canto de uma ou outra ave; o ar, limpo, fresco, que nos entra pulmões e alma adentro; a paisagem, magnífica em todas as cambiantes - do prado ao bosque e aos topos nus e cinzentos das montanhas que daqui se avistam - tudo nos preenche de uma imenso e intenso contentamento, coisa estranha de definir, a pedir palavras francesas e itálicas… sim, é isso mesmo acho, é um profundo sentimento de joie de vivre aquilo que nos toma, apesar do arfar do peito e do suor que nos escorre cabeça abaixo, que o caminho é, já o disse, exigente.
Não trouxe comigo aminha velha e sempre fiel lente macro
nem, por muito que me custe, o objetivo do passeio me permite despender muito
tempo acocorado à caça de insetos e flores, mas não resisto ao esvoaçar
colorido de duas borboletas que me são estranhas e que, ainda assim, consigo
fotografar sem desatar a rolar encosta abaixo….(mais tarde identifico-as como uma
Lycaena virgaurea e uma Erebia, cuja espécie ainda não descobri).
Lycaena virgaurea |
Erebia sp. |
Saímos do bosque. De novo o caminho percorre vegetação baixa
e pedra nua, estamos cansados, mas prosseguimos, os bastões são uma enorme
ajuda. De repente o chão nivela-se um pouco e a subida já não é tão
pronunciada. Uma pequena lagoa alimentada por uma fina cascata, abrigada entre
as rochas, descobre-se à nossa frente, como recompensa pelo esforço. Descansamos
um pouco, para ganhar folego e prosseguimos. Estamos perto. Já se consegue
vislumbrar o teto da casa abrigo vizinha da lagoa que marca o fim do percurso.
Uns metros mais de subida em caminho de rocha, por vezes solta, e finalmente a Lagoa de Cabana Sorda surge à nossa frente. O caminho agora é plano. O prazer da chegada toma-nos por completo. Sorrimos, cansados mas contentes. Não precisamos dizer nada, ambos sabemos o que o outro sente.
Não posso deixar de pensar que também no dia anterior me
sentia cansado de andar e, no entanto, o cansaço de hoje é daquele que nos retempera
os músculos e a vontade, tão diferente do cansaço inconsequente de outro fim
que o do esgotar por completo a paciência da tarde que passámos às voltas, nos
centros comerciais e ruas formigantes de gente, da velha Andorra.
Estany de Lagoa Sorda |
Alguns rapazes estão acampados na margem da lagoa. A casa abrigo, para onde nos dirigimos, para pousar as mochilas e almoçar, também está ocupada por um grupo de jovens italianos que por aqui vão pernoitar.
O dia por aqui vai carregado de nuvens e faz fresco. Sabe
bem o polar sobre o peito suado.
Mais à frente estão dois cavalos, tento aproximar-me para
fotografar, mas apenas consigo dois disparos porque começa a chover.
Corro para o abrigo, onde nos sentamos envoltos no cheiro a lume que impregna as
paredes. As sandes sabem a manjar de rei, que o corpo estava já a pedir.
Esperamos que a chuva passe, ou que pelo menos abrande; temos
quase duas horas de descida pela frente e como grande parte do caminho é em
campo aberto, a chuva seria certamente dispensável.
Parou! Colocamos as mochilas às costas e partimos de regresso pelo mesmo caminho,
embora me pareça que para nascente do abrigo há outro trilho que deverá conduzir
também ao fundo do vale. Cruzamo-nos com outros grupos de caminhantes,
inclusive famílias com crianças, que ainda vão na subida. Começa de novo a
pingar. Vestimos os impermeáveis e continuamos, na esperança de que a chuva se
não intensifique. Olho para o fundo do vale, uma massa branca começa a subir
encosta acima… chove com cada vez mais intensidade.
Estamos de novo na zona de bosque e por aqui a chuva não se
sente com tanta força, porque as copas dos pinheiros abrigam-nos.
De repente um trovão… e logo outro, os clarões quase se não
vêm, por que é dia e apesar da névoa há muita luz. Chove agora copiosamente, e
o trovão é só um, constante, rolando sobre si próprio e as encostas do vale,
que os amplificam e ecoam. Começo a ficar preocupado: daqui a pouco estaremos a
descoberto de novo, sem nada à nossa volta, encharcados e agarrados a bastões metálicos…
Seguramente
não é esta a melhor forma de enfrentar uma trovoada destas. Um grupo passa por
nós a correr, visivelmente atemorizado pela trovoada. Penso no casal com que
nos cruzámos há pouco e cujo filho se via não estar a ter prazer nenhum na
subida que os pais o estavam a obrigar a fazer…. Com a trovoada, então, a criança
deveria estar em pânico.
Por fim chegamos à placa que marca o início (e o fim) do
trilho. Numa estranha sincronia, a trovoada fenece e morre.
Falta-nos ainda 1,5 km até ao carro e volta a chover com
mais força. Um pequeno café de um parque de campismo à beira da estrada parece
imensamente acolhedor. Sabia-me bem uma cerveja.
Entramos. Está quente, cá
dentro, com uma salamandra a queimar lenha e vários outros caminhantes
recolhidos da chuva. Peço duas cervejas e verifico, envergonhado, que estou a
deixar uma poça de água frente ao balcão, no sítio onde me encontro. O simpático
dono do café diz-nos para ficarmos um pouco, para nos secarmos; eu insisto em
partir. Não termos roupa aqui para nos mudarmos e secar está fora de questão.
Chegamos ao carro pouco depois e partimos direitos ao apartamento
e ao conforto de um banho quente amplificado por aquela que sempre considerei a
melhor das refeições para os dias de passeio: basta sacudir o pacote para
dentro de um litro de água fria, levantar fervura e deixar ferver em lume
brando, mexendo sempre…: o abc da mais alta culinária, o simples e honesto
prazer de uma boa e quente sopa instantânea.
Recompostos, saímos a passear por Pas de la Ccasa, que
amanhã já partimos e o dia está tão escuro que não há muito mais para fazer…
Há dias que nos sabem bem, há dias que nos sabem muito bem e
depois há dias assim!
Pas de la Casa |
Soberbos!
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