quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

9 de agosto

Nevoeiro. Denso, cinzento, húmido. Cola-se ao corpo e ao carro, enquanto carregamos de novo a tralha de viajante no porta-bagagens.

Tínhamos pensado ontem que, se nos levantássemos cedo, ainda poderíamos fazer uma caminhada pela encosta do Pas de la Casa, até uma pequena lagoa que se avista da curva da estrada, mas não vai ser possível. Não se vê literalmente um boi, bem, digamos, uma vaca, porque sei que elas, como habitualmente por estes lados, não andam longe, que lhes ouço os chocalhos; mas também as simpáticas e pachorrentas ruminantes estão guardadas pela mortalha cinza que tudo abraça.

Partimos estrada acima até à estação de serviço. Devagar, com ainda maior atenção nas curvas, que a visibilidade  é quase nula e o piso está escorregadio.

Depois de abastecer, começa a descida e poucos quilómetros à frente saímos finalmente do nevoeiro, para um dia que se adivinha não tardar muito a limpar.

Paramos em Canillo. Quero ver a pequena igreja românica de Sant Joan de Caselles. É impossível não reparar nela, colada que está à estrada e tão cuidadas que estão as pedras erguidas no séc. XII. Pena que está fechada. Gostava de ter subido ao campanário. Pontos altos, por estes lados, são sempre garantia de vistas interessantes para quem gosta de andar com uma máquina fotográfica pendurada do ombro.

Canillo, Igreja Românica de Sant Joan de Caselles
Retomamos a estrada, a tirada é comprida, mais em tempo que em distância: muita curva nos espera pelo caminho e não queria chegar tarde, para aproveitar ainda a tarde, lá para os lados de Sandiniés, onde temos apartamento reservado.
 
A descida até Andorra a Velha é relativamente lenta. É domingo e está a ter lugar uma prova de ciclismo;  seguimos atrás de um pequeno pelotão que desce a estrada principal a  velocidade suficiente para não se querer pensar no que poderia suceder se…; do outro lado da estrada, outros valentes, esforçam-se no íngreme percurso de subida… seguimos pois a ritmo de pedal até que, numa rotunda, os nossos caminhos por fim se separam. Já posso carregar um pouco mais no acelerador e em pouco tempo chegamos ao posto de alfândega, que atravessamos sem outra demora que passar devagar pelos corredores onde alguns guardas fazem controlos a este ou aquele viajante.

São mais de 300 quilómetros que temos pela frente. Algures já em Espanha, a estrada larga entra montanha adentro e passa a contar apenas com duas vias.  À entrada de uma curva um enorme placard avisa: atenção 115 quilómetros de curvas… não sei se li bem… devem ser quinze, lemos mal, seguramente….

Nunca devemos menosprezar a nossa capacidade de  leitura, mesmo que de tabuletas na berma da estrada, que se leem em fração de segundo: passados os primeiros quinze quilómetros, muitos mais se lhes seguem e sim, são curvas umas atrás das outras, de tal forma que tornam o exercício de ultrapassagem um enorme problema. O que vale é  a compreensão de quem vai à frente, em passo mais lento, e se chega para a berma para dar passagem.

O mal é que quem guia não pode sequer distrair-se um momento para gozar dos soberbos panoramas que se desenrolam com cada curva que se contorna.

Por fim, um desvio e a possibilidade de paragem: “Sort.”, diz-nos alguém que passeia o cão pela estrada onde encostamos o carro.

Sort
É realmente uma sorte, penso eu, poder ter o prazer de fruir de tamanha vista: os cumes curvos de velhos e carecas da usura de muitos invernos, a espuma branca das nuvens, o verde tímido das encostas, e lá em baixo o rio e o recorte da cidade. Cena de bilhete postal, fotografia de turista, cliché, etc. é seguramente isso tudo, mas é também tudo o resto que cabe em palavras de sentido superlativo, tantas vezes gastas por uso abusivo.

Seguimos o rio.  Alguns quilómetros depois, uma povoação convida de novo à paragem. Há uma ponte, com ar medievo, e casas antigas e inusitados “tabuleiros” ao lado da estrada… lembram salinas … são salinas…Guerri de la Sal, chama-se a localidade. Fotografo rápido e anoto o nome para mais tarde procurar alguma informação.


Guerride la sal

Sei agora que o sal é explorado aqui desde o séc. VII, a partir de uma nascente de água salina, coisa sumamente estranha se pensarmos que estamos nos Pirenéus e que se bem que água seja coisa que por aqui não costuma faltar, costuma ser da outra que por aqui brota em tanta fonte e nascente de borda de estrada.

A estrada segue agora um desfiladeiro, paredes direitas de rocha dura, cortada à faca pelo tempo, parece, que nos corta também a respiração. Fico imensamente triste de não poder parar, tamanho o deslumbramento de quem nunca viu nada assim… quando a estrada, por fim, se abre o suficiente para encostar já as paredes se alargam e a oportunidade de uma boa fotografia fica decididamente para trás… é pena!

Estou cansado de guiar. Deve ser de tanta curva, quilómetro após quilómetro, localidade após localidade. Por fim chegamos ao destino: Sandiniés e um apartamento que depressa nos faz esquecer o alojamento de Pas de la Casa. Aqui tudo é novo, limpo, confortável, funcional e amplo.

Sandiniés é pouco mais que um aglomerado de casas velhas, muitas delas recuperadas para turismo de habitação, como é o caso do nosso apartamento. As ruas são estreitas e inclinadas e quase não há estacionamento, muito embora a 100 m da entrada do povoado haja sempre sítio para deixar o carro.
Instalamo-nos rapidamente e saímos que ainda há muito tempo para gozar o dia e tudo por aqui convida ao passeio, com montanhas, lagos, vales, encostas, povoados a incitar à descoberta e fruição.

panorâmica a partir de Sandiniés

Panticosa. É para lá que nos dirigimos e para o serviço de informação turística. Queremos saber de percursos pedestres. Dão-nos um mapa com uma razoável quantidade de opções em extensão e grau de dificuldade: perfeito!

Visitamos a vila. O enorme parque de estacionamento das pistas de ski não tem quase carros. Por estes dias são usadas por algumas pessoas que as descem em passeio após subirem ao topo no teleférico, que já não aceita mais passageiros na viagem de subida.

Amanhã há concerto na igreja, entrada livre, tomo nota.

Baños de Panticosa, diz a tabuleta que entendemos seguir por uma estrada que acompanha um pequeno curso de água no fundo de um vale. É impossível não deixarmos  de admirar a beleza da paisagem que nos acompanha, com pequenas cascatas descendo do topo da montanha, por entre bosques cerrados de coníferas.

De repente um grande lago: um íbon. Diz-me a wikipedia que este é um termo aragonês que designa um lago formado por degelo, na zona dos Pirinéus.

Íbon de los Baños de Panticosa

Ao lado da estrada a ruína de uma antiga estação de engarrafamento de águas minerais e um pouco mais à frente os edifícios da estância termal.

Paramos o carro e retiro, entusiasmado, a mochila e o tripé. Já vai ficando tarde, a luz, ou o que dela resta, porque todo o vale está já imerso em sombra, não é a melhor, mas há tanto para ver e fotografar.

Uma cascata desce para o lago. Fotografo sem parar. Ficava aqui umas boas horas. procuro composições que não incluam os (poucos) visitantes que, tal como eu, se admiram com a cascata e insistem em tirar todo o tipo de selfies e fotos de grupo.





Cascata nos Baños de panticosa

Fotografo também o lago, mas o contraste entre a sombra e o céu limpo é excessivo. Devia vir aqui noutra hora... mas sei que não virei mais... pelo menos desta vez. Quem sabe se algum dia... toda a imensa beleza dos Pirinéus  se me entranhou - a falta de melhor verbo, porque não conheço palavra que melhor descreva o estado de completa submissão em que me encontro - nestes poucos dias que levo de estar mais perto do céu. 

No regresso ainda paro para fotografar uma das muitas pequenas cascatas que aqui e ali se vêm na berma da estrada.


Cai a noite. 

Caio eu também na cama, quando chego ao apartamento, dobradiças doridas, das muitas horas a guiar, de acocorar para sacar mais uma fotografia, dos quilómetros de passeio que também já vamos acomodando nos músculos...

Vista sobre o Embalse de Bubal

E será por aqui que amanhã começaremos: uma boa caminhada, pela fresca, que o percurso promete.





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