Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
9 de agosto
Nevoeiro. Denso, cinzento, húmido. Cola-se ao corpo e ao carro, enquanto carregamos de novo a tralha de viajante no porta-bagagens.
Tínhamos pensado ontem que, se nos levantássemos cedo, ainda
poderíamos fazer uma caminhada pela encosta do Pas de la Casa, até uma pequena
lagoa que se avista da curva da estrada, mas não vai ser possível. Não se vê
literalmente um boi, bem, digamos, uma vaca, porque sei que elas, como
habitualmente por estes lados, não andam longe, que lhes ouço os chocalhos; mas
também as simpáticas e pachorrentas ruminantes estão guardadas pela mortalha
cinza que tudo abraça.
Partimos estrada acima até à estação de serviço. Devagar,
com ainda maior atenção nas curvas, que a visibilidade é quase nula e o piso está escorregadio.
Depois de abastecer, começa a descida e poucos quilómetros à
frente saímos finalmente do nevoeiro, para um dia que se adivinha não tardar
muito a limpar.
Paramos em Canillo. Quero ver a pequena igreja românica de
Sant Joan de Caselles. É impossível não reparar nela, colada que está à estrada
e tão cuidadas que estão as pedras erguidas no séc. XII. Pena que está fechada.
Gostava de ter subido ao campanário. Pontos altos, por estes lados, são sempre
garantia de vistas interessantes para quem gosta de andar com uma máquina
fotográfica pendurada do ombro.
Canillo, Igreja Românica de Sant Joan de Caselles |
A descida até Andorra a Velha é relativamente lenta. É
domingo e está a ter lugar uma prova de ciclismo; seguimos atrás de um pequeno pelotão que
desce a estrada principal a velocidade suficiente
para não se querer pensar no que poderia suceder se…; do outro lado da estrada,
outros valentes, esforçam-se no íngreme percurso de subida… seguimos pois a
ritmo de pedal até que, numa rotunda, os nossos caminhos por fim se separam. Já
posso carregar um pouco mais no acelerador e em pouco tempo chegamos ao posto
de alfândega, que atravessamos sem outra demora que passar devagar pelos
corredores onde alguns guardas fazem controlos a este ou aquele viajante.
São mais de 300 quilómetros que temos pela frente. Algures
já em Espanha, a estrada larga entra montanha adentro e passa a contar apenas
com duas vias. À entrada de uma curva um
enorme placard avisa: atenção 115 quilómetros de curvas… não sei se li bem…
devem ser quinze, lemos mal, seguramente….
Nunca devemos menosprezar a nossa capacidade de leitura, mesmo que de tabuletas na berma da
estrada, que se leem em fração de segundo: passados os primeiros quinze
quilómetros, muitos mais se lhes seguem e sim, são curvas umas atrás das
outras, de tal forma que tornam o exercício de ultrapassagem um enorme
problema. O que vale é a compreensão de
quem vai à frente, em passo mais lento, e se chega para a berma para dar
passagem.
O mal é que quem guia não pode sequer distrair-se um momento
para gozar dos soberbos panoramas que se desenrolam com cada curva que se
contorna.
Por fim, um desvio e a possibilidade de paragem: “Sort.”,
diz-nos alguém que passeia o cão pela estrada onde encostamos o carro.
Sort |
Seguimos o rio.
Alguns quilómetros depois, uma povoação convida de novo à paragem. Há
uma ponte, com ar medievo, e casas antigas e inusitados “tabuleiros” ao lado da
estrada… lembram salinas … são salinas…Guerri de la Sal, chama-se a localidade.
Fotografo rápido e anoto o nome para mais tarde procurar alguma informação.
Guerride la sal |
A estrada segue agora um desfiladeiro, paredes direitas de
rocha dura, cortada à faca pelo tempo, parece, que nos corta também a
respiração. Fico imensamente triste de não poder parar, tamanho o
deslumbramento de quem nunca viu nada assim… quando a estrada, por fim, se abre
o suficiente para encostar já as paredes se alargam e a oportunidade de uma boa
fotografia fica decididamente para trás… é pena!
Estou cansado de guiar. Deve ser de tanta curva, quilómetro
após quilómetro, localidade após localidade. Por fim chegamos ao destino:
Sandiniés e um apartamento que depressa nos faz esquecer o alojamento de Pas de
la Casa. Aqui tudo é novo, limpo, confortável, funcional e amplo.
Sandiniés é pouco mais que um aglomerado de casas velhas,
muitas delas recuperadas para turismo de habitação, como é o caso do nosso apartamento.
As ruas são estreitas e inclinadas e quase não há estacionamento, muito embora
a 100 m da entrada do povoado haja sempre sítio para deixar o carro.
Instalamo-nos rapidamente e saímos que ainda há muito tempo
para gozar o dia e tudo por aqui convida ao passeio, com montanhas, lagos,
vales, encostas, povoados a incitar à descoberta e fruição.
panorâmica a partir de Sandiniés |
Panticosa. É para lá que nos dirigimos e para o serviço de informação turística. Queremos saber de percursos pedestres. Dão-nos um mapa com uma razoável quantidade de opções em extensão e grau de dificuldade: perfeito!
Visitamos a vila. O enorme parque de estacionamento das
pistas de ski não tem quase carros. Por estes dias são usadas por algumas
pessoas que as descem em passeio após subirem ao topo no teleférico, que já não
aceita mais passageiros na viagem de subida.
Amanhã há concerto na igreja, entrada livre, tomo nota.
Baños de Panticosa, diz a tabuleta que entendemos seguir por
uma estrada que acompanha um pequeno curso de água no fundo de um vale. É
impossível não deixarmos de admirar a
beleza da paisagem que nos acompanha, com pequenas cascatas descendo do topo
da montanha, por entre bosques cerrados de coníferas.
De repente um grande lago: um íbon. Diz-me a wikipedia que
este é um termo aragonês que designa um lago formado por degelo, na zona dos
Pirinéus.
Íbon de los Baños de Panticosa |
Ao lado da estrada a ruína de uma antiga estação de engarrafamento de águas minerais e um pouco mais à frente os edifícios da estância termal.
Paramos o carro e retiro, entusiasmado, a mochila e o tripé.
Já vai ficando tarde, a luz, ou o que dela resta, porque todo o vale está já
imerso em sombra, não é a melhor, mas há tanto para ver e fotografar.
Uma cascata desce para o lago. Fotografo sem parar. Ficava
aqui umas boas horas. procuro composições que não incluam os (poucos) visitantes que, tal como eu, se admiram com a cascata e insistem em tirar todo o tipo de selfies e fotos de grupo.
Cascata nos Baños de panticosa |
No regresso ainda paro para fotografar uma das muitas pequenas cascatas que aqui e ali se vêm na berma da estrada.
Cai a noite.
Caio eu também na cama, quando chego ao apartamento, dobradiças doridas, das muitas horas a guiar, de acocorar para sacar mais uma fotografia, dos quilómetros de passeio que também já vamos acomodando nos músculos...
Vista sobre o Embalse de Bubal |
E será por aqui que amanhã começaremos: uma boa caminhada, pela fresca, que o percurso promete.
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