terça-feira, 1 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

6 de agosto

Lérida é a segunda maior cidade da Catalunha, leio algures. Temos um dia inteiro para a visitar e começamos cedo, percorrendo a rua paralela à estrada que bordeja o Segre.

Lérida a partir do campanário da catedral


Em contraste com o bairro antigo onde ontem nos embrenhámos à procura de repasto, nada aqui diferencia a urbe de uma moderna metrópole Europeia, cosmopolita e respeitadora da mobilidade dos seus visitantes e moradores.

Arc del Pont - as balas da guerra civil deixaram marcas na pedra...

De facto, o núcleo histórico principal da cidade, que alberga a imensa catedral e o castelo, implanta-se sobre uma colina sobranceira ao casario. Não fora o engenho e a visão preocupada de algum urbanista, e chegar lá acima, em particular em dias como estes, feitos de inquebrantável calor, seria coisa para máquinas, que não para as pessoas.

A solução encontrada pareceu-me perfeitamente enquadrada e em muito deve contribuir para a satisfação de quem necessita aceder a alguns serviços públicos que, noto, se inscrevem a meia colina, sem que se corra o risco de chegar ao cartório sem fôlego e com a camisa encharcada de suor: elevadores e escadas rolantes, em perfeito conluio mecânico, asseguram então a transição perfeita entre os 50 metros de aprumado desnível que separam o rio da base da catedral, tudo perfeitamente funcional,  gratuito e acessível, como é o nosso Elevador do castelo, em Lisboa.

Elevador

Começamos, então, por cima, para escaparmos às horas de maior calor. Visitamos a imensa catedral e galgo os 268 degraus em caracol que me levam ao topo do campanário, onde por fim consigo apanhar algum ar que me cola a camisola encharcada ao corpo. O dia está mau para fotografar: há neblina no ar e o sol está onde não devia. Volto a descer e seguimos a visita no conforto da sombra das imensas paredes de pedra que abrigam uma mistura de estilos românico e gótico e que, no sec. XVIII foram quartel militar, conforme nos deixam também perceber alguns dos grafitos inscritos sobre a pedra, que mostra também, ainda, vestígios de alguns frescos medievos.




Sé de Lérida

No posto de turismo aqui instalado, pergunto o que há para ver num raio de 30 km de Lerida e recomendam-me uma visita a Balaguer e Os de Balaguer.  Boa! Já temos programa para a tarde, que a cidade, por aqui, esgota-se depressa.

Já ao nível do rio, de novo, procuramos os pontos de interesse assinalados na planta da cidade, que, em mais uma assinalável ajuda ao visitante, têm todos, ao pé da porta, uma pequena placa com a informação sobre o que os torna particularmente relevantes sendo de destacar alguns exemplares de arquitetura modernista, quase todos concentrados beira rio.

Recolhemos o carro e una fatura choruda de estacionamento e partimos para a estrada, na direção de Balaguer.

A cidade parece deserta. O calor é muito; é hora da sesta. Decidimos continuar até Os de Balaguer, que agora é impossível visitar a cidade, tamanha a canícula.

Procuramos a estrada para as Cuevas de Els Vilars, gruta com pinturas rupestres, um dos pontos de interesse assinalados nos mapas. Encontra-mo-la e segui-mo-la. Em breve o alcatrão dá lugar a terra batida e pedra solta. Continuamos até ao fim do trilho. Nada. Apenas um carro estacionado. Se mais alguém aqui está então deve ser ali à frente, penso. E vou lá à frente: nada nem ninguém.

Vista perto das Cuevas de Els Vilars
Voltamos para o carro e perscruto o horizonte: lá ao fundo… sim, lá ao fundo há um caminho, até tem corrimão na subida… e um portão em frente a uma gruta. É ali. Mas não vamos. Está fechado e não vale apena a caminhada ao sol abrasador para chegar lá e não ver senão o portão.

Voltamos a Os de Balaguer, povoado feito para testar os dotes de condução de motoristas e viaturas, tamanhas as inclinações, as curvas e a estreiteza das ruas.

Morro por alguma coisa fresca. Mas primeiro está o castelo. Subimos, a esforço… está fechado.
Ali mesmo, ao pé do estacionamento: uma esplanada de um restaurante, montada ao sol. Pedimos duas cervejas. A simpática dona pergunta preferência; respondo-lhe a melhor e a mais estupidamente gelada.

Diz-nos que tiremos uma mesa e duas cadeiras e as coloquemos do lado de lá da rua, num pátio à sombra. Assim fazemos enquanto os copos inda agora retirados do congelador e brancos de gelo, se desfazem em orvalho. Alhambra reserva 1925. Garrafa verde, sem rótulo. A reter e a beber, que esta, inclementemente gelada, nos soube como nenhuma.

“coman que es fersquito” diz-nos a senhora do restaurante enquanto nos coloca na mesa um pires de salada envinagrada como por estas bandas se faz. Envinagrada e … enfim… boa o suficiente para desaparecer em três garfadas.. que não somos pessoas de deixarmos na mesa o que nos oferecem de bom grado.

Mosteiro de Avellanes
Consultado o mapa, seguimos em demanda. De repente uma luz branca no alto da montanha chama, como náufrago agarrado a espelho.
 
Uma serpenteante cicatriz castanha parece correr a encosta, embora se não veja onde irá acabar. É o suficiente para me decidir, que a vista, lá de cima, deve ser de tirar o fôlego. Saímos para a terra batida ainda com a alma dorida de uma recente procura em terras do Gerês por uma lagoa perdida na serra, que testou os limites do nosso fiel Skoda, feito Land Rover, obrigado a resistir a constantes ressaltos de pedras que pareceram “magoar-nos” mais a nós que a ele, valente e leal papa-léguas. Não obstante, a estrada que agora tomamos, em comparação com a trilha de então, revela-se fácil e relativamente lisa de piso, apenas com o desconforto de algumas viragens mais abruptas pelo efeito do declive.
Ermida de la Mare de Déu de Montalegre

Devagar, que não quero arriscar um furo, vamos subindo os mais de 500 metros de cota, que nos levam até ao topo da serra de Mont-roig,  onde alguém decidiu erigir uma pequena ermida  em honra de la Mare de Déu de Montalegre. Paramos o carro ao lado da ermida e deixamo-nos tomar pela deslumbrante vista que nos premeia a decisão de subir.

O vento sopra quente, mas ainda assim sabe bem sentir o ar com o cheiro doce que a o calor arranca às arvores e arbustos que cobrem a encosta. Lá em baixo um enorme lago de uma represa insinua-se verde também…é o nosso próximo destino, tão só acabemos de nos empanturrar com o a vista e a imensa felicidade de dela disfrutar.


Sant Llorenç de Montgai é o nome da pequena povoação, à borda da estrada e à borda do lago, onde parqueamos à sombra de uma árvore, bem atrás de uma auto-caravana, daquelas que me enchem de inveja.

Como me sabe bem toda esta água que partilho apenas com um casal entretido em alegre e adolescente namoriscar. Tento não pisar o fundo, para fugir ao desconforto dos limos que o cobrem e que a água turva não deixa ver e mergulho várias vezes, como que para absorver o máximo de frescura possível, porque sei que, a seguir, me vai fazer falta….

Albufeira de Sant Llornç de Montgai

Seco-me e mudo-me, de novo, no carro; retomamos a estrada,  rumo a Balaguer, que agora já a poderemos visitar sem nos derretermos pelo caminho.

Demoramo-nos sobre a muralha, que abriga postos de vigia que ficaram da guerra civil,  e o longo passadiço que conduz à grande Igreja de Santa Maria.

Balaguer - a muralha e a Igreja de Santa Maria

O resto da cidade percorremos de carro, que o dia já vai longo e, lá para o fundo, os primeiros sinais de eminente borrasca se começam a adensar.

Balaguer

Chegamos a Lérida a coberto de um céu cinzento chumbo,  sufocante de húmido  a anunciar uma trovoada que, no entanto, acaba por não acontecer.

Fecho o dia contente por pensar que hoje já cheirou a montanha; afinal o objetivo da nossa viajem… amanhã, no entanto, é a sério. Vamos mesmo entrar Pirinéus adentro!

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