Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes,
tantas quantas me promete a memória
Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise
6 de agosto
Lérida é a segunda maior cidade da Catalunha, leio algures.
Temos um dia inteiro para a visitar e começamos cedo, percorrendo a rua
paralela à estrada que bordeja o Segre.
Lérida a partir do campanário da catedral |
Em contraste com o bairro antigo onde ontem nos embrenhámos
à procura de repasto, nada aqui diferencia a urbe de uma moderna metrópole
Europeia, cosmopolita e respeitadora da mobilidade dos seus visitantes e
moradores.
Arc del Pont - as balas da guerra civil deixaram marcas na pedra... |
De facto, o núcleo histórico principal da cidade, que
alberga a imensa catedral e o castelo, implanta-se sobre uma colina sobranceira
ao casario. Não fora o engenho e a visão preocupada de algum urbanista, e
chegar lá acima, em particular em dias como estes, feitos de inquebrantável
calor, seria coisa para máquinas, que não para as pessoas.
A solução encontrada pareceu-me perfeitamente enquadrada e
em muito deve contribuir para a satisfação de quem necessita aceder a alguns
serviços públicos que, noto, se inscrevem a meia colina, sem que se corra o
risco de chegar ao cartório sem fôlego e com a camisa encharcada de suor:
elevadores e escadas rolantes, em perfeito conluio mecânico, asseguram então a
transição perfeita entre os 50 metros de aprumado desnível que separam o rio da
base da catedral, tudo perfeitamente funcional,
gratuito e acessível, como é o nosso Elevador do castelo, em Lisboa.
Elevador |
Começamos, então, por cima, para escaparmos às horas de
maior calor. Visitamos a imensa catedral e galgo os 268 degraus em caracol que
me levam ao topo do campanário, onde por fim consigo apanhar algum ar que me
cola a camisola encharcada ao corpo. O dia está mau para fotografar: há neblina
no ar e o sol está onde não devia. Volto a descer e seguimos a visita no
conforto da sombra das imensas paredes de pedra que abrigam uma mistura de
estilos românico e gótico e que, no sec. XVIII foram quartel militar, conforme
nos deixam também perceber alguns dos grafitos inscritos sobre a pedra, que
mostra também, ainda, vestígios de alguns frescos medievos.
Sé de Lérida
No posto de turismo aqui instalado, pergunto o que há para
ver num raio de 30 km de Lerida e recomendam-me uma visita a Balaguer e Os de
Balaguer. Boa! Já temos programa para a
tarde, que a cidade, por aqui, esgota-se depressa.
Já ao nível do rio, de novo, procuramos os pontos de
interesse assinalados na planta da cidade, que, em mais uma assinalável ajuda
ao visitante, têm todos, ao pé da porta, uma pequena placa com a informação
sobre o que os torna particularmente relevantes sendo de destacar alguns
exemplares de arquitetura modernista, quase todos concentrados beira rio.
Recolhemos o carro e una fatura choruda de estacionamento e
partimos para a estrada, na direção de Balaguer.
A cidade parece deserta. O calor é muito; é hora da sesta.
Decidimos continuar até Os de Balaguer, que agora é impossível visitar a
cidade, tamanha a canícula.
Procuramos a estrada para as Cuevas de Els Vilars, gruta com
pinturas rupestres, um dos pontos de interesse assinalados nos mapas.
Encontra-mo-la e segui-mo-la. Em breve o alcatrão dá lugar a terra batida e
pedra solta. Continuamos até ao fim do trilho. Nada. Apenas um carro
estacionado. Se mais alguém aqui está então deve ser ali à frente, penso. E vou
lá à frente: nada nem ninguém.
Vista perto das Cuevas de Els Vilars |
Voltamos para o carro e perscruto o horizonte: lá ao fundo…
sim, lá ao fundo há um caminho, até tem corrimão na subida… e um portão em
frente a uma gruta. É ali. Mas não vamos. Está fechado e não vale apena a
caminhada ao sol abrasador para chegar lá e não ver senão o portão.
Voltamos a Os de Balaguer, povoado feito para testar os
dotes de condução de motoristas e viaturas, tamanhas as inclinações, as curvas
e a estreiteza das ruas.
Morro por alguma coisa fresca. Mas primeiro está o castelo.
Subimos, a esforço… está fechado.
Ali mesmo, ao pé do estacionamento: uma esplanada de um
restaurante, montada ao sol. Pedimos duas cervejas. A simpática dona pergunta
preferência; respondo-lhe a melhor e a mais estupidamente gelada.
Diz-nos que tiremos uma mesa e duas cadeiras e as coloquemos
do lado de lá da rua, num pátio à sombra. Assim fazemos enquanto os copos inda
agora retirados do congelador e brancos de gelo, se desfazem em orvalho. Alhambra
reserva 1925. Garrafa verde, sem rótulo. A reter e a beber, que esta,
inclementemente gelada, nos soube como nenhuma.
“coman que es fersquito” diz-nos a senhora do restaurante
enquanto nos coloca na mesa um pires de salada envinagrada como por estas
bandas se faz. Envinagrada e … enfim… boa o suficiente para desaparecer em três
garfadas.. que não somos pessoas de deixarmos na mesa o que nos oferecem de bom
grado.
Mosteiro de Avellanes |
Consultado o mapa, seguimos em demanda. De repente uma luz
branca no alto da montanha chama, como náufrago agarrado a espelho.
Uma serpenteante cicatriz castanha parece correr a encosta,
embora se não veja onde irá acabar. É o suficiente para me decidir, que a
vista, lá de cima, deve ser de tirar o fôlego. Saímos para a terra batida ainda
com a alma dorida de uma recente procura em terras do Gerês por uma lagoa
perdida na serra, que testou os limites do nosso fiel Skoda, feito Land Rover,
obrigado a resistir a constantes ressaltos de pedras que pareceram “magoar-nos”
mais a nós que a ele, valente e leal papa-léguas. Não obstante, a estrada que
agora tomamos, em comparação com a trilha de então, revela-se fácil e relativamente
lisa de piso, apenas com o desconforto de algumas viragens mais abruptas pelo
efeito do declive.
Ermida de la Mare de Déu de Montalegre |
Devagar, que não quero arriscar um furo, vamos subindo os
mais de 500 metros de cota, que nos levam até ao topo da serra de Mont-roig, onde alguém decidiu erigir uma pequena ermida em honra de la Mare de Déu de Montalegre. Paramos
o carro ao lado da ermida e deixamo-nos tomar pela deslumbrante vista que nos
premeia a decisão de subir.
O vento sopra quente, mas ainda assim sabe bem sentir o ar
com o cheiro doce que a o calor arranca às arvores e arbustos que cobrem a
encosta. Lá em baixo um enorme lago de uma represa insinua-se verde também…é o
nosso próximo destino, tão só acabemos de nos empanturrar com o a vista e a
imensa felicidade de dela disfrutar.
Sant Llorenç de Montgai é o nome da pequena povoação, à
borda da estrada e à borda do lago, onde parqueamos à sombra de uma árvore, bem
atrás de uma auto-caravana, daquelas que me enchem de inveja.
Como me sabe bem toda esta água que partilho apenas com um
casal entretido em alegre e adolescente namoriscar. Tento não pisar o fundo,
para fugir ao desconforto dos limos que o cobrem e que a água turva não deixa
ver e mergulho várias vezes, como que para absorver o máximo de frescura possível, porque sei que, a seguir,
me vai fazer falta….
Albufeira de Sant Llornç de Montgai |
Seco-me e mudo-me, de novo, no carro; retomamos a estrada, rumo a Balaguer, que agora já a poderemos visitar
sem nos derretermos pelo caminho.
Demoramo-nos sobre a muralha, que abriga postos de vigia que
ficaram da guerra civil, e o longo
passadiço que conduz à grande Igreja de Santa Maria.
Balaguer - a muralha e a Igreja de Santa Maria |
O resto da cidade percorremos de carro, que o dia já vai
longo e, lá para o fundo, os primeiros sinais de eminente borrasca se começam a
adensar.
Balaguer |
Chegamos a Lérida a coberto de um céu cinzento chumbo, sufocante de húmido a anunciar uma trovoada que, no entanto, acaba
por não acontecer.
Fecho o dia contente por pensar que hoje já cheirou a
montanha; afinal o objetivo da nossa viajem… amanhã, no entanto, é a sério. Vamos mesmo entrar Pirinéus adentro!
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