quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

26 de dezembro

Não tenho o conforto de uma religião. Nem sequer o procuro. Sou, por convicção e feitio, agnóstico. Viver é tarefa suficiente para me preocupar sem que tenha de me questionar sobre os quês e porquês de algo infinitamente superior, infinitamente capaz, infinitamente obscuro. Sou decididamente de agora e não do futuro, das promessas de vida eterna e ressurreição e de dar por mim sentado ao pé de outros que não conheço, à direita deste ou daquele, cujus regni non erit finis.

Não sinto o Natal (e já agora a Páscoa, por uma questão de contexto….) como celebração de crença. Até porque acredito que na religião, como em tantas outras coisas, somos pouco mais que produto de mera casuística. Afinal, nada na crença é genético e, não fora a imposição de condicionamento sociocultural e a roleta da geografia, todo o ser humano teria, no limite, pelo menos,  liberdade de escolha…, a sempiterna questão do livre arbítrio…

Resta-me pois do Natal, aquilo que ele não é, mas em que o fomos transformando: o horror das prendas, as insuportáveis versões de canções que poderão, uma vez, ter sido engraçadas, a Julie Andrews e a  Música no Coração, as renas, o pai natal e o festival de circo de Monte Carlo, as entediantes e deprimentes perguntas do costume com as mesmas respostas de sempre na TV… a feroz consciência sem abrigo (que no resto do ano, é acintosamente míope – apesar das comprometidas, militantes  e respeitáveis exceções, é claro…) que toma, por um ou dois dias, conta dos pobrezinhos, a solidariedade catártica de um quilo de arroz que se troca pelo arrependimento de um voto, e, apesar de tudo, alguma alegria, essa sim verdadeiramente sincera, da companhia daqueles de quem mais gostamos, .. ah, e as rabanadas, também…

e Bach e Händel, sempre!

And they shall reign for ever and ever porque, na verdade, apesar do Natal, Bach e Händel  é mesmo sempre que um homem quiser!



I don’t have the comfort of a religion. And I don’t even look for it. I am an agnostic, by conviction and nature. To live is enough of a chore for me to worry about the whys and whats of something infinitely superior, infinitely able, infinitely obscure.   I am decidedly of now and not of the future, of the promises of eternal life and resurrection and of finding myself sitting by others whom I don’t know, to the right of this or that someone, 'cujus regni non erit finis'.

I don’t look at Christmas (or at Easter, to put it into context…) as a celebration of a belief.  The more so since I believe that as far as religion is concerned, as in so many other instances, we are but the result of mere casuistics.  After all, there is nothing genetic in beliefs and were it not for the imposition of sociocultiural conditioning and the roulette of geography, every human being would  at the very least, have freedom of choice.. the everlasting question of 'liberum arbitrium'.

So I’m left with not what Christmas is but with what we’ve been transforming  it into: the horror of imposed gifts, the unbearable versions of  songs that may have once been nice, Julie Andrews and the Sound of Music, reindeer, Santa Claus and Monte Carlo’s circus festival, the usual boring and depressing questions with the same usual answers  on TV... the deep-rooted  homeless conscience  (spitefully shortsighted throughout the rest of the year – in spite of some truly engaged, militant and respectable exceptions..) that, for a day or two, looks after the dispossessed, the cathartic solidarity of a packet of rice exchanged by the regret of a vote and, in spite of all this, some truly sincere joy, for being in the company of those we hold dear… all that and , of course,  the mouth watering Rabanadas...

And Bach and Händel, always!

'And they shall reign for ever and ever' for, in all truth, Christmas notwithstanding, as it is said of the Season,  Bach and Händel is... whenever a man wants them to be!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - IV

Passeamos à noite pelo De Wallen. Ao lado de canais, ao lado das igrejas, ao lado do quotidiano, ao lado de pessoas que por aqui passam, porque aqui moram;  porque aqui querem passar;  porque aqui querem comprar o prazer que lhes descansa o corpo;  a que se obrigam em rito de passagem;  que procuram por insalubre afirmação.


Nas estreitas vielas iluminadas pela fluorescência vermelha das largas janelas apinham-se passeantes, clientes, curiosos, empurrados pelo constante bruaá envolto no cheiro doce da erva que por todo o lado paira.

E no entanto, ali mesmo ao fim da rua, há uma calma deserta que se estende na curva do canal, em paleta de cores de quadro barroco.

Evening. We stroll in De Wallen along  canals, churches, the day-to-day ,  dwellers, strollers; those looking to buy the pleasure that will ease their bodies;  that they force upon themselves as a rite of passage; that they seek as a measure of unwholesome affirmation.    

The narrow streets illuminated by the red fluorescence of the large windows are packed with onlookers, clients, the curious,  all bound together in the never diming background noise that shares the air with the omnipresent sweet smell of grass.

And yet, down there, by the end of the street, a desert calm looms in the canal bend, as if painted with the palette of some baroque painting.


É já outro dia, o último.

Gastamos o que resta das horas da cidade em passeio descomprometido. Chove a espaços e faz frio.
É domingo, de manhã. Quase não há gente na rua. Aqui e ali  pequenas língua de fumo denunciam  gente nos barcos atracados à margem do grande canal.

Another day. The last one.

We spend what few hours we still have in an uncompromised walk. it rains now and then and the day is cold.
Sunday morning. The streets are practically empty. Here and there, narrow tongues of smoke bear witness to life inside the boats moored in the banks of the large canal.


Passamos de novo pelo De Wallen a caminho da estação central. As luzes vermelhas nunca se apagam, parece.  No cimo da rua, na Basílica de S. Nicolau, uma missa para a comunidade de língua hispânica enche a longa nave que aguarda o início da celebração enquanto um sacerdote despacha batismos pontuados por palmas e choros infantis.

Tomamos o elétrico rápido. Olho pela janela larga,  uma última vez, para o canal.  Imortal,  Brel senta-se a meu lado e dita-me a  beleza crua, sublime, das  palavras que declina na magnífica ironia de um tempo de valsa : dans le port d’Amesterdam il y a de marins qui chantent…

We pass by De Wallen again on our way to the central station. The red lights do not seem to go out ever. On top of the street, inside St. Nicolas Basilica , a mass for the Spanish speaking community fills in the long nave that awaits the beginning of the celebration while a priest, punctuated by applause and youthful cries,  dispatches  baptisms.


We climb on the tram. I look through the large window, one last time, towards the canal. Immortal, Brel seats by my side and dictates me the harsh, sublime, beauty of the words he declines in the magnificent irony of a waltz tempo: dans le port d’Amesterdam il y a de marins qui chantent…







quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - III

Gosto de museus e de tudo o que servem. Mais que depósito são livro, mais que texto são coisas e, não raro, arte, que só assim podemos ver, que só assim são também nossas. É por isso que são pedra de toque de conhecimento, que fundamentam a perceção que temos do mundo, que sustentam a democracia, a verdadeira, a do acesso livre e público à educação, a que se ampara em saber e não apenas em folhas de balanço e anuários estatísticos.

 Nada mais os povos deixam que cultura. Em pedra, em tinta, em letra,... em eletricidade, hoje.

I like museums and the purpose they serve.  More than depository, they are book, more than text they are things - art, more often than not -  that one can actually see, that as such are also ours. That is why they play cornerstone to wisdom, they support what perception we have of the world, they sustain true democracy, that of  free and public access to education; that which is anchored in knowledge and not in balance sheets and annual statistics reports.

When a civilization disappears it  leaves nothing but culture. Etched in stone, in paint, in characters,… in electricity, nowadays.



É isso que os distingue, é isso que todos têm para oferecer uns aos outros. E os museus servem abnegadamente este propósito. Independentemente de velhas querelas (indiscutivelmente justificadas) que possam pairar sobre a origem e a posse deste ou daquele artefacto, deste ou daquele pedaço de história, a verdade é que os museus, mais que donos, são guardiões de um património que transcende os limites da geografia política, do mapa das nações.

Arquivo de tempo, livro de obra, memória para futuro, de uma espécie que tem de diverso o ser única, e na etimologia da designação a tradução do que tantas vezes a move:…sapiens, sapiens… sapiens…

Foi esta a razão porque fomos à Holanda, foi esta a razão porque fomos a qualquer outro lugar: …sapiens…sapiens…sapiens

Nas salas do Rijksmuseum a luz faz-se nas telas e no brilho dos nossos olhos, a princípio desconcertados pela arrojada mistura de um século que se fez de asas – ou não fosse a engenharia também uma forma de arte – com as galerias pejadas de magníficas telas percorrendo a história da arte ocidental, principalmente no que ela deve aos artistas dos países que se dizem baixos, por falsa modéstia, certamente, porque basta olhar para qualquer uma das telas cuidadosamente expostas para se ser convidado às alturas. 

This is what tells one from another, what they have to offer each other. And museums unselfishly serve this intent. Notwithstanding  old (and undoubtedly justified) disputes that might hover on the origin and possession of this or that artifact , of this or that piece of history, truth is that museums, more than owners, are keepers of a patrimony that transcends the boundaries of political geography, of the map of nations.

Archive of time, log and memory for the future of a species that is diverse for being unique, and that carries in the etymology of its designation the translation of what so many times moves it: sapiens… sapiens….sapiens…

This was why we went to Holland, this was why we went to all those other  places: …sapiens…sapiens…sapiens

The light inside the rooms of the Rijksmuseum is made of the paintings and the glow in our eyes, at first bewildered by the daring matching of a winged century – would not engineering also be a form of art – to galleries filled with magnificent paintings that illustrate all the history of western art, particularly that of the artists from countries said to be low…, a measure of false modesty, though, since it takes only a glimpse at one of the carefully exhibited canvases to be invited to the heights.

Bat Bantam


Rembrandt e Vermeer serão aqui as estrelas da companhia, repartindo o corredor principal do museu, onde, ao fundo, os soldados atentos da magnífica Nachtwacht parecem mirar desconfiados os inquiridores olhares ávidos de visitantes, que os fotografam despudoradamente com os ubíquos telemóveis.

Rembrandt and Vermeer are the stars of the company here, sharing the main nave of the museum where on the end wall the soldiers of the magnificent nachtwacht seem to distrustfully gaze at the inquiring glances of the visitors shamelessly snapshooting them with the ubiquous mobile phone.

Nachtwacht, Rembrandt


Ali ao lado, outro dos filhos insignes da terra que, como tantas vezes acontece com os insignes até que a morte os separe do comum resto, foi nada, van Gogh tem hoje um magnífico museu dedicado à sua ímpar obra.

Moderno, pedagógico, claro na exposição, informativo…sapiens…sapiens….sapiens….


Close by, another of the country’s most notable sons ( who, as so often happens with most notable people, until death do them apart from the common rest, was naught),  Van Gogh,  now has a magnificent museum, totally dedicated to his unique works.

Modern, pedagogic, clear in the explanations, informing… sapiens…sapiens..sapiens…

A paleta de Van Gogh


 Delírio de cor em pinceladas fartas, rudes, rápidas, de absoluto espanto. Bastava uma tela (tantas quantas terá vendido em vida) - “Campo de trigo com corvos” – para sermos todos melhores porque um de nós a pintou. Foram muitas.

Saímos e é já noite. Ao fundo da larga alameda brilham as luzes do Concertgebouw. No reclamo luminoso que encima a portaria a Cecilia Bartoli sorri para mim. Se eu soubesse que ela aqui estava, tinha roubado um malmequer à jarra do Vincent , só para lhe oferecer….


A delirium of colour in generous, harsh, fast, absolutely amazing brush strokes. One single painting (as many as he actually sold in life) – “wheatfield with crows” would have been enough. There were many.

We go out and night is already looming. By the end of the large avenue, the lights of the Concertgebouw shine in the cold evening. In the  luminous electronic billboard over the front door, Cecilia Bartoli smiles at me. Had I known that she was here, I’d have pinched one of Vincent’s sunflowers for her…..









quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - II


Amsterdão sabe a água. Nunca se está muito longe dela, tantos os canais que a atravessam. Porém, ao invés de Veneza, esse quintessencial termo de comparação para todas as atlântidas emersas, a cidade coabita  na ordem geométrica de canais que se entendem entre si, em perfeito e concêntrico paralelismo. 
Percorremos ruas calmas, (na verdade andamos sobre a água, porque a maior parte das vezes, as ruas delimitam canais, não raro de ambos os lados), por agora quase desertas,  pelo frio, pelo inverno que ainda não é, mas quase parece.


Nas  características fachadas dos também inconfundíveis prédios, onde por vezes se exibem datas de edificação que nos conduzem ao sec. XVII (e, provavelmente, anteriores ainda… ) ,  reflete-se o cuidado com a ordenação que se espelha nos canais. De facto, todos os prédios parecem guindar-se por uma mesma bitola em altura, num alinhamento amiúde perfeito de cornijas, encimado pelos suaves recortes  dos sótãos.



Mas se a altura é a mesma, a largura é multíplice, parecendo até que, por vezes, a arquitetura se faz de preenchimento e não de enchimento do espaço, ou não se vissem por vezes  prédios elegantemente estreitos,  a ampararem a vizinhança de edifícios que os triplicam em frente.

E amparar é, em muitos casos, uma questão verdadeiramente literal.  Velhos os prédios e as fundações, provavelmente assentes  em solos pouco estáveis (a água….sempre a água…), aqui e ali, alguns edifícios parecem subtrair-se ao  rígido alinhamento, como cadete que desmaia nem qualquer alinhada parada de dia de juramento de bandeira. Alguns abrem frestas que se alargam para o alto na junta que os une ao vizinho, outros parecem querer tombar para a frente, para o canal…



Em todos, no entanto, algo há de constante: o mundo que por eles entra, coado na transparência das enormes janelas que tanto deixam olhar de um lado, como do outro, porque, amantes da luz, os que por aqui moram evitam as cortinas...



Amsterdam tastes of water. You’re never too far from it, so many are the canals that crisscross the town. Albeit, contrary to Venice, that quintessential yardstick for comparing all  floating Atlantises, the city cohabitates in the geometric order of canals that socialize with each other in perfect and concentric parallelism. We stroll through calm streets, (in truth we walk on water, given that most of the times, the streets define the canals, often on both sides) almost deserted by the cold;  by a winter that isn’t yet but that does seem to be.
The attention  and care given to laying out of the canals can also be  grasped in the characteristic facades of the also unmistakable buildings where, at times, edification dates take us back to the 17th century (if not to even older times…) . As a matter of fact, all buildings seems to respect a single height standard, with often perfectly aligned cornices, topped by the soft  outline of the lofts.
But if height is the same, width is multiple, and often  it does seem that all the architecture was meant to fill in, as opposed to occupy, space, judging from the elegantly narrow buildings, siding others that are thrice as wide.


Often they literally support the edifications on their side. Erected on foundations that are now old and probably encased in unstable soil (water.. always the water…. ), here and there some buildings seem to miss the rigid alignment, as if a fainting  soldier in a pledge of allegiance parade. In some, slits widening skywards grace the joins that once tied them to their neighbors, while others seem to be on the edge of falling forward , into the canal…
And yet, on each and every one of them, something remains constant: the world that penetrates them, filtered by the huge windows that make it possible to look and see from both their sides for lovers of light that the ones dwelling here are, curtains have been mostly forsaken.





sexta-feira, 29 de novembro de 2013


Amesterdão, 21- 24 de novembro - I

Anne Frank

é na memória que se guarda de um tempo que não vivi que começo a visita à cidade que nos acolhe na quase penumbra de um  frio denso, nevoento.

Percorro a pouca distância que me leva de casa ao 263 da Prinsengracht, estonteado pela contínua cortina de bicicletas que parece correr e descorrer pelas ruas. Maravilha-me o quase silêncio que me confunde o comportamento de peão... ao ponto de quase ser atropelado uma ou duas vezes por ciclistas...por mea culpa, mea maxima culpa, que não olho para onde devo, porque aqui a estrada é das pessoas e não dos carros.



Compramos o bilhete e entramos, sem filas, com a calma que novembro nos permite, isentos da congestiva barafunda que habita os museus nos meses de sol.

Os espaços  da casa estão praticamente nus. Mas sente-se o recheio pútrido da história, no soalho, nas paredes, nas escadas. Em cada sala um curto filme narra a infâmia. No último andar, os cadernos: a escrita de uma mão menina que não chegou ao fim, quando o fim estava tão próximo.

Todos sabemos, todos lemos, todos ouvimos, vezes sem conta. Tantas que aprendemos a conviver com a nojenta barbárie como se mais não fosse que  um episódio que se capitula em compêndio de escola e se encerra na cronologia das curiosidades.

Não aqui. É por isso que estas paredes me pesam agora mais; que estas escadas, íngremes, me custam ainda mais a subir; que estes cadernos me obrigam a pensar nas crianças, que já fui, que já criei.


Saio para a rua e para o conforto de um sol que, afinal, apareceu, ainda que tímido e já oblíquo o suficiente para dourar a água calma do canal. Respiro o dia. De alguma forma respiro a liberdade.




Anne Frank

The memory of a time that I have not lived is the starting point  for the visit to the city that welcomes us in the half-light of a dense and cloudy cold .

I cover the small distance that takes me from the apartment to n. 263 of Prinsengracht, stunned by the continuous curtain of bicycles that glides along the streets. I am in awe at the near silence, my pedestrian behavior totally bewildered…  to the point of being almost ran over twice by cyclists…  mea culpa, mea maxima culpa.. I should have looked to where it matters, for here the road is for the people, not for the cars.


We buy the tickets and we go in facing no queue at all, in the calm that November allows us, free from the congestive mayhem that inhabits museums during the sunny months.

The spaces within the house are virtually empty. But the putrid presence of the history can be felt on the floor, on the walls, on the steps. In each room a short video narrates the infamy. In the last floor, the notebooks: the writing of a childish hand that could not endure until the end, when the end was so very near.

We all know, we’ve all read, we’ve all heard, time and time again. So many times that we have learned to live with the filthy barbarity as if it were nothing more than a chapter of a school manual, a dot in the timeline of all the world’s great curiosities.

Not here. That is why these walls are falling down on me; that these steep stairs are even harder to climb, that these notebooks force me to think about the children.. the one that I was, those that I’ve raised.

I go out on the street to the comfort of a sun that, nonetheless, has appeared though timid and already oblique enough to gild the calm waters of the canal. I breathe the day. Somehow, I breathe freedom.





terça-feira, 19 de novembro de 2013



Da ponta alta da escarpa, moldada pela água e pelo vento, viro costas à invernia que sopra leve sobre o rosmaninho seco e os cachos vermelhos das aroeiras:

Tanto e tão belo azul. Até onde o mundo, por agora,  acaba. Azul de mar e ar. Como se um só fosse, como se mais cor não houvesse.

Dos enormes rasgões sobra a espuma branca das nuvens. É ela que faz o azul vibrar e dá forma à composição. E no entanto é nada, apenas branco, o valor circunspecto de uma pausa na grande música do ar.

Por certo o mar terá também engolido uma nuvem: resignada assoma ainda uma última vez por sobre o suave trilo das ondas.


Cá de cima, da escarpa, olho o mar e o ar: não é preciso bilhete e a sala nunca esgota. A programação, essa, é sempre a melhor.




Standing on the high tip of the cliff moulded by wind and water, I turn my back on the winter breeze that lightly blows over the dried rosemary and the red bunches of the mastic shrubs:

So much blue, such a beautiful blue. Extending to where the world for now ends. Blue of sea and air. As if only one, as if there was no other.

The white foam of the clouds bursts out of the outsized cuts. It is it that makes the blue vibrate and balances the composition. And yet it is naught, just white, the circumspect value of a pause in the great music of the air.

The sea must have swallowed a cloud too, I'm sure: though resigned it emerges one last time over the soft trill of the waves.

From up here, on the cliff, I look at sea and air: no admission ticket needed and the venue is never sold out. 

The program is always the best, though!
.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Monsaraz
Há água, muita água, no ar, roubada ao enorme lago em que se metamorfoseou o rio que o alimenta, desde que o gigantesco garrote de betão precintou, mais a sul, as encostas bordadas de estevas e pedra escura, xistosa.



Tanta que se não vê o sol. Tudo na volta do olhar parece rendido à palidez de uma inesperada escala de cinzentos, de onde sobressai, aqui e ali, um esbracejar aflito de verde ou castanho, logo engolido pela enorme onda da névoa densa que alastra, varrendo chão e ar.




Na imobilidade das árvores, cobrem-se também elas de água, em minúsculas gotas que lhes vestem a fina pele, em algumas ainda verde, noutras já luzidio breu e noutras ainda misturando matizes de ambos, conforme a maturação as pinta.




Dentro guardam o que agora se não vê: a luz dourada que meses a fio foram acumulando na densa e acre polpa e que, a custo e contra vontade, libertarão mais tarde, esmagadas na força bruta das prensas.

Luz que me adoça o pão que, de quente ainda, se não consegue cortar e se parte com as mãos. Sai dele fumo que cheira a milagre, a fermento, a farinha. Prazeres de essência que fundem a terra com as coisas e nos lembram que também nós temos lugar aqui, mas que, para o termos, precisamos conquistá-lo, a pulso, com o esforço a que a terra obriga, mas que generosamente retorna em fruto, como as azeitonas que me empenho em arrancar às oliveiras do pequeno pomar.



Não é ainda o tempo dos frios e se tenho o corpo molhado não é só da água que anda no ar, mas também da água que me sai pelos poros. Empenho-me com vigor na tarefa. Sabe-me bem o esforço. Por certo o saber bem que deslumbra os citadinos, bem sei, que olham o trabalho árduo do campo com um misto de curiosidade e cautela (senão mesmo de puro  desdém) por o saberem, para eles, episódico e… exótico.

Tão diferente o é para quem da terra faz sustento…

A manhã vai já  a meio, e o dia segue escuro, à míngua da estrela que teima em não sair por detrás da cortina cinzenta que tudo tapa. Temo mesmo que hoje não chegue a mostrar-se se, depois da névoa, as nuvens não se arredarem também.

E, ainda assim, ao fundo do pomar há luz e cor: vaidoso, soberbo, o diospireiro olha o pálido dia e, orgulhoso, mostra o lume que, por estes dias, lhe aquece as folhas e me doura a alma.


There is water in the air, lots of it, stolen from the vast lake that its feeding river has become ever since the huge concrete garrote has strapped up, further downstream, the slopes of the banks, laced with rock roses and dark schistose stones.

So much water that the sun is nowhere to be seen. Everything within eyesight seems to have yielded to the paleness of an unexpected palette of greys, from where, here and there, distressed notes of green or brown emerge, only to be fast engulfed by the spreading mist wave that sweeps both soil and air.

In the stillness of the trees they too are covered in water: tiny droplets that coat their thin skin, still green in some of them, pitch black already for some other, or exhibiting varying mixes of both colours, for yet some other,  as ripeness will have it.

Inside they harbour what cannot now be seen: the golden light that for months they have been accumulating in their dense and sour pulp  and which they will later reluctantly  liberate under the crushing force of the press. 

Light that sweetens the still warm bread that cannot be cut and has to be hand broken. It exhales smoke, and it smells of miracle, of yeast, of flour. Pleasures of essence that blend soil and things and remind us that we too have our place in here, but also that we will have to conquer it, by hand, with the effort that the land demands and which it so generously returns in fruit, like these olives that I so hard try to strip from the trees in the small orchard.

It is not the time of the colds yet and if my body is wet it is not only from the water that hangs in the air but also from the water that spurts from my pores. I take to the task with vigorous commitment and I find pleasure in the effort. Most certainly the type of pleasure that awes city people - I know  it well - who look down on the hard work in the fields with a mix of curiosity and cautiousness (if not with pure contempt…) knowing that for them it is but  episodic and… exotic.

So different from what it really is like for those that take their sustenance from the land…

The morning is already half gone and the day is still dark, lacking the star that persists in hiding behind the grey curtain that, for now, shadows everything. I fear it might  not show itself today, if after the mist has cleared, the clouds themselves will not get out of its way.

And yet, by the end of the orchard there is light and colour: vain and arrogant, a persimmon tree stands up to the pale day and proudly exhibits the fire that these days warms its leaves and gilds my soul.




domingo, 27 de outubro de 2013

A manhã teima em não acordar e esconde-se cinzenta no nevoeiro que lhe ocupa o lugar.
The morning refrains from awakening,  hiding in grey in the mist that has taken its place.



Ainda assim satisfaz-me o caminho, que faço sozinho. Tudo aqui me é familiar de tão repetido e, no entanto, a beleza da geometria que se agita à mínima briza, ainda deslumbra. 

São perfeitas as teias que refulgem num brilho de fio argênteo, desenhadas em espiral sobre os raios da armação que as sustem.

Still, walking along the path, alone,  as I always do, is a pleasant exercise. Everything is familiar, from having been here time and time again, and yet, the beauty of a geometry that flutters in the slightest breeze still dazzles. 

They are perfect, the shinning silver threaded webs, drawn in a spiral against the  spokes of the framework that bears them.


Elas, as aranhas tecedeiras,  aguardam imóveis ao centro, com paciência e certeza de pescador, na humidade que prenuncia o dia  e que, gota a gota, faz da armadilha colar de pérolas.

Their masters, the weaver spiders, wait motionless at the centre, with a fisherman’s certainty and  patience, in the moistness that foretells the day and that, drop by drop, turns the traps into  pearl necklaces.

                                                                         Araneus palidus

Com o sol e a brisa, os pequenos casulos de luz acabarão por secar e as armadinhas tornar-se-ão ainda menos visíveis, como compete à caça.

With the sun and the breeze, the little light cocoons will eventually dry out and the traps will become even less visible, as befits their hunting purpose.

 Argiope Trifasciata

As pessoas não gostam delas, regra geral:  que são venenosas; que mordem; que causam irritações; que são nojentas e peludas.

Ao fim ao cabo, os mesmos adjetivos que tantas delas tentam de si sacudir, mas que se lhes colam como se de teias se tratasse…ou de chuva... que o digam as libelinhas!

People usually do not like them: they are venomous; they byte; the cause irritation; they are disgusting and hairy… 

All in all the same adjectives that so many of them try to shake off from their own selves, but that keep clinging hard unto their skins, as if…. cobwebs… or rain drops… go ask the dragonflies…

Sympetrum fonscolombii


domingo, 20 de outubro de 2013


Choveu de noite e a manhã ainda escura não treme no sopro de qualquer brisa. Condições ideais para o que procuro, agora que o clarear do dia me ajuda a tentar encontrar nos talos secos das plantas que há uns meses enchiam de verde e flor o baldio onde tantas vezes passeio, alguma libelinha que ainda não tenha “acordado” e, entorpecida pelo frio da água e da noite, se deixe fotografar.



Quando chove, ou nos dias de acentuado arrefecimento noturno que por estas alturas do ano começam a ser comuns, encontro-as, por vezes, absolutamente imóveis, cobertas de minúsculas e fotogénicas gotas de água, da chuva ou da condensação, presas aos caules das plantas  pelos ganchos em que terminam as patas, aguardando pelo sol para começarem a secar os corpos e a asas que aquecem com uma frenética tremedeira, até que, refeitas para o dia, se erguem de novo no ar.


São Simpétrum de nervuras vermelhas (Sympetrum fonscolombii). Espécie muito comum, dizem os livros e a observação que tenho vindo a fazer. Até ao final do outono por aí andam. Os machos, vermelhos, quando maduros, mais irrequietos e difíceis de aproximar;  elas, amareladas, mais calmas e mais dadas a posar para a fotografia, desde que as abordemos com paciência e suavidade de movimentos.


A procura compensa, e com os primeiros alvores do sol descubro dois machos e ali, dois metros adiante, uma fêmea. Todos cobertos de gotas de água. Tal como eu queria.



Até que a brisa da manhã se levante, e com ela a impossibilidade de continuar a fotografar, resta-me cerca de uma hora de luz tímida e difusa pelas muitas nuvens. Aproveito-a contente. Ainda há boas maneiras de começar o dia....



It has rained during the night and the still dark morning does not flutter in any sort of breeze. Ideal conditions for what I’m after, now that dawn helps me in trying to find amidst the dry twigs  that a couple of months ago filled the  waste land I often visit with green and flowers, any dragonflies that haven’t yet awaken and, numbed by the cold of the water and the night , will let themselves be photographed.




When it rains, or in the mornings following the deep cooling nights that are now getting to be common this time of the year, I  find them now and them, absolutely still, all covered in minuscule and photogenic water droplets, from rain or condensation, hanging from the plant stems by the hooks that terminate their legs, waiting for the sun to dry their bodies and wings that they warm up in a frenetic flapping until, once again ready for the day, they take to the air.


They are red veined darters (Sympetrum fonscolombii). A very common species, so say the books and my observation. They will be around until the end of autumn. The males, red when mature, are more restless and hard to get close to; the females, yellowish, are more calm and prone to pose for a nice photograph, provided we stalk them patiently and without brisk movements.


The hunting delivers and with the first light of day I discover two males and,  a couple of meters further up, a female. All covered in water droplets. Just the way I wanted it!


I have about an hour of timid and cloud diffused light until the early morning breeze starts to blow, making it impossible to continue to photograph. I happily make the most of it. There are still nice ways to start a day...





quinta-feira, 17 de outubro de 2013

A propósito de um excerto de uma carta de Ramos Rosa, publicada no Jornal de Letras:
On reading an excerpt of a letter by Ramos Rosa, in Jornal de Letras


Farei como o poeta triste
que manchava as manhãs de tinta
porque a tarde, dava-a à leitura.
Tento o verso:  não existe,
mesmo que  me esforce e minta.
Resta-me a  tarde e a literatura
para igualar o triste vate.
Toma lá, Ramos Rosa: Xeque-mate!

I'll do like the sad poet
who would stain the mornings in ink
for he kept the afternoon for reading.
I try the verse: it’s absent 
even if I try hard and lie.
I'm left with the afternoon and literature 
to emulate the sad bard.
There you have it, Ramos Rosa: Checkmate!


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Maratona!

Não, não corro. Embora adore andar a pé e o pratique com regularidade e apego, detesto correr: tudo na corrida para mim é sofrimento; cansaço sem  a justificação do motivo; esforço sem a cereja de prazer que compensa o afinco e o sacrifício do corpo.

O desafio é outro e de corrida apenas toma o nome que aqui se não mede em 42 km, mas sim em 12 horas de clics feitos de luz, ou da falta dela, nas suas mais íntimas gradações:

Maratona fotográfica 2013 FNAC Almada, dizia o anúncio há uns tempos. Porque não?

Nunca participei e o regulamento não me diz tudo. Apenas que no próprio dia serão dados aos participantes os  temas  e que, em cada um, terão  meia hora  para  comprovarem a sua presença no ponto de controlo indicado.

Em tudo um jogo, que não um desafio fotográfico. Na verdade, a fotografia de que gosto, que pratico,  faz-se  do correr do tempo - que determina o que se vê - e da  vontade de o fixar,  que não de relógio e controlos.

Mas aceito. Porque não? O número de participantes, a julgar pelas fotos que vi de edições anteriores, não deverá ser enorme, o que me promete o relativo isolamento que me é essencial , misantropo que sem o exageradamente ser, conheço que sou.

Na verdade, o grande prazer da fotografia (como da grande maioria dos meus vários e variados interesses, de resto), reside, para mim,  no facto de ser um ato profundamente íntimo.  Eu elevado a demiurgo por interposição tecnológica. E não interessa que este Eu não seja sinónimo de Ansel Adams ou Augusto Cabrita, para citar dois. Como é habitual dizer… faz-se o que se pode, e primeiro está sempre a vontade de ver: o que escrevi na imagem e o que a imagem me deixa ler. Por vezes é quase uma epifania, uma enorme revelação. Muitas outras é a constatação do banal. Tal qual como nos acontece com os dias, que ordenadamente se sobrepõem, sem que façamos grande coisa por isso (se excluirmos a dialética cadência sistólica/diastólica , que, apesar de não controlarmos diretamente, nos é  também intimamente “nossa”) .

9 às 9, 12 horas e 6 temas, dizem-me no ponto de partida.

Como numa verdadeira corrida, o dia faz-se de oscilações de motivação e alguns intervalos entre temas parecem não passar enquanto outros se apresentam curtos. Chego mesmo a desinteressar-me a meio quando me é dado um tema que se me afigura impossível nos locais recomendados. A inexperiência não me lembra que posso usar tempo sobrante de outros temas para voltar ao tema que me pareceu impossível.

No fim, com maior ou menor dificuldade, cumpri.   Tenho fotos para os 6 temas e para  alguns tenho até opções múltiplas.  Por certo não ganharei qualquer prémio, mas  ainda assim consegui  cartas suficientes para mostrar o jogo.

Amanhã, pego na mochila outra vez e volto à mata. Sem tema, nem ponto de controlo!

Afinal esta é a minha maratona, que  venho correndo há anos, e que acho continuarei a correr, enquanto o sol se me não puser!


Tema 1 - Artes de pesca
Theme 1 - fishing implements


Barcos de pesca - Trafaria


Tema 2 - Paz Franciscana
Theme 2 - Franciscan peace

Convento dos Capuchos - Capuchos

Tema 3 - Arquitetura rural
Theme 3 - Rural arquitechture

Solar dos Zagalos - Sobreda da Caparica

Tema 4 - Arqueologia industrial
Theme 4 - Industrial archeology

Lisnave - Margueira

Tema 5 - Portas e janelas
Theme 5 - Doors and windows

Almada velha

Tema 6 - Livre
Theme 6 - Free
Metro - Almada


Marathon!

No, I don’t like running. Even though I absolutely adore to walk, something I  regularly and dedicatedly do, I detest running: for me running is all about suffering; exhaustion without the justification of a purpose; effort without the cherry of pleasure that compensates for the commitment and the sacrifice of the body.

The challenge is of a different nature, the only relation to running being  the name it takes, even if it is now not measured in 42 km but in 12 hours of clicks made out of light, or of its absence, in its most intimate gradations:

FNAC Almada Photo Marathon 2013, proclaimed the ad some time ago. And why not?

This is the first time I take part in it and the rules don’t tell me all there is to know. Only that on the very day, six themes will be disclosed to the participants and that for each of the themes there will be an half an hour window for them to control at the given check point.

More of a game than of a photographic challenge. In truth, the photography I like, and practice, is made out of the flow of time – that establishes what is there to be seen -  and of the will to capture it, and not of watches and controls.

But I acept it. Why not? The number of participants, judging from the photos I’ve seen of previous editions, should not be exaggerated, what promises me the relative isolation  that the  slight misanthrope in me demands.

In truth,  the ultimate pleasure of photography (as well of the vast majority of my  multiple and varied interests) resides, for me , in the fact that it is a deeply intimate deed. “I” elevated to demiurge status through technological interpolation. And it doesn’t matter that  “I” isn’t a synonym for Ansel Adams or Augusto Cabrita, to name but two. As it is said, one does what one can do, and the longing for seeing always comes first: what I have written on the image, and what the image lets me read. Sometimes it comes as an epiphany, a tremendous revelation. Many others it is but the realization of the trivial. Same as happens with the days, neatly overlapping each other without us doing much for it (is we exclude the dialectic systolic/diastolic cadenza, that although not being directly controlled by us, is also very profoundly “ours”). 

9 to 9, 12 hours, 6 themes, they tell me at the departure point.

As in a real race, the day is made of motivation oscillations and some periods in between themes seem to be everlasting while others appear to be too short. At some point midway, I even loose all interest, when a theme is given that I find impossible to capture in the recommended locations. The lack of experience does not remind me that I could use the leftover time from other themes to go back to the theme that seemed impossible at first.

In the end, with more or less difficulty, I managed to deliver. I have six shots for the six themes and for some of them I even have multiple options. I am sure I will not win any prizes, bus still I have enough cards to show my hand. 

Tomorrow, I’ll grab my backpack again and go back to the woods. Without a theme, or a checkpoint!

After all, this is my real marathon, the one I have been running for several years and which I think I will keep on running, until the sun goes down on me!