Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, tantas quantas me promete a memória...
26 de Julho de 2025 - Lituânia
Kaunas - Siauliai - Monte das Cruzes - Klaipeda
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Kaunas, Ramybè Park, |
Dir-se-á que começar uma viagem visitando um cemitério é, literalmente, começar pelo fim... e, no entanto, foi isso que, inadvertidamente, nos aconteceu, quando iniciámos a nossa visita a Kaunas, a segunda mais importante cidade da lituânia, a seguir à capital, Vilnius.
Procurava um monumento, dei de caras com vários e, lentamente, fui-me apercebendo que o bonito e calmo parque por onde seguia tinha muitas histórias para contar. Milhares, seguramente; tantas quantas as pessoas que, sob os cuidados relvados e à sombra das magníficas árvores, ali se formaram em terra, húmus, seiva, para rebrilharem agora nas faces das folhas, tocadas pelos primeiros raios de sol e agitadas pela suave brisa da manhã.
Nem sempre foi assim, leio. Neste local ficava o cemitério principal de Kaunas, que fora aberto em 1847.
Repartido em quatro grandes talhões - Católico, Luterano, Ortodoxo e Muçulmano (a comunidade Judaica dispunha de cemitérios próprios) - também ele, de alguma forma, um testemunho do grau de convivialidade entre as confissões que o ocupavam, foi encerrado em 1958 e transformado no jardim que hoje o sobremonta pelo ocupante soviético, como forma, leio também, de aplacar as manifestações de resistência cívica que a população ali levava a cabo, consubstanciada numa cada vez maior utilização de simbologia nacional para decoração das campas, em particular no dia de finados, em que, lá como cá, é tradicional visitar os cemitérios.
O monumento que ali me chamou fora construído em 1930. Uma espada, enterrada no solo a prumo, a lembrar uma cruz, honrava os soldados caídos nas guerras da independência da Lituânia.
Foi destruído em 1958, quando o cemitério foi encerrado, e reconstruído em 1994.
Ficara por aqui e este poderia ser apenas mais um dos muitos e bons parques que tiram por estes lados partido da generosidade do clima no que às chuvas e humidade respeita, mas uns passos à frente uma fileira de cruzes fez-me, por fim, perceber que solo os meus pés pisavam.
As cruzes sobriamente engalanadas com fitas das cores nacionais; uma cruz central, maior, com uma coroa de folhas de carvalho, antes verdes, mas já totalmente secas, onde despontavam ainda, viçosos, o amarelo e vermelho de flores provavelmente de papel, a completar a trilogia cromática lituana, permitiam pensar que há não muito tempo teria havido cerimónia evocativa... O dia do Estado, feriado nacional, celebrado a 6 de Julho, talvez....
Leio que o conjunto honra a memória dos participantes no levantamento de Junho de 1941, contra o invasor soviético.
Não muito longe das cruzes, uma fantástica escultura metálica de uma figura alada feminina: a mãe dos que pereceram pela liberdade da Lituânia, assim se designa.
Há muito mais que um parque, aqui; muito mais que a memória de um antigo cemitério... o parque Ramybè, no simbolismo que o local, a sua história e os vários monumentos que nele se erguem naturalmente destilam, dir-se-ia um panteão... a mim, resta-me o respeito de uma visita e da sua descoberta.
O castelo e o centro histórico.... dou por mim a avançar com o carro por uma rua sem trânsito... mas igualmente sem saída....
Nenhum dos poucos transeuntes com quem nos cruzamos, no entanto, se mostra agastado com a presença do carro que conduzo lentamente, sempre em frente, na esperança de encontrar saída...
Fim da rua... impossível dali sair... cruzo os olhos com um peão, homem de meia idade, que, com bonomia, me dirige algumas palavras em letão. Respondo-lhe em inglês com uma pergunta... "Como saio daqui?"; responde-me em alemão fragmentado.. apenas percebo as duas última palavras que articula entre um sorriso franco "Schleste navigation"...
Retribuo-lhe o sorriso, embora, por certo, o meu não esconda o nervosismo que sentia já, preocupado com um eventual encontro do terceiro grau com algum polícia.....
Com cuidado inverto a marcha e lá sigo, devagarinho, pelo mesmo caminho que fizera até ali.... por fim encontro um cruzamento por onde saio para o trânsito normal....
A verdade é que não me dei conta de qualquer sinal indicando proibição de passagem... talvez estivesse escrito em algum sítio, mas o Lituano não é seguramente o meu forte.....
Um mercado de rua propõe várias especialidades aos locais, e não só, que o visitam. Queijos, cogumelos, bagas, pastelaria, enchidos, vegetais... tudo com um ar sumamente fresco e delicioso... aqui, como na minha terra, é a fruta que me surpreende pelo preço que agora atinge... aqui, como na minha terra, pergunto-me como podem muitas pessoas viver com os ordenados que auferem no final do mês....
Uma nova descoberta aguarda-me...; sempre que possível, em viagem, procuro visitar museus de belas artes. Embora não seja especialmente seletivo e me deslumbre com pinturas de todas as épocas, atrai-me em particular o período que vai do final do sec. XIX à primeira metade do sec. XX, o modernismo, declinado nas suas várias e múltiplas correntes.
O Museu de Belas Artes em Kaunas dá pelo nome de Museu Nacional de Belas Artes M. K. Čiurlionis. Confesso que desconhecia o destinatário da homenagem e pensava que este seria um museu como tantos outros, com uma exposição permanente devidamente organizada mas constituída por obras de múltiplos autores.
De facto assim não é. Mikalojus Konstantinas Čiurlionis foi um multifacetado artista lituano que viveu entre 1875 e 1911 e que ao longo dos 35 anos da sua infelizmente curta vida produziu um assinalável e extenso acervo de obras não só no domínio das belas-artes - pintura, desenho, artes gráficas - mas também nos da música, fotografia e literatura.
O museu que leva o seu nome leva também a maioria do seu corpus artístico de pintura. E que belo ele é, repartido por obras em ciclos temáticos, alguns deles de óbvias conotações musicais (Čiurlionis dizia-se sinestésico) e não só, nas mais variadas técnicas e suportes mas com predomínio para o pastel ou a tempera sobre cartão, pelo que me pareceu.
Hoje, muitas das obras parecem mostrar algum desgaste cromático devido à usura do tempo, parece-me, mas as composições deslumbram, escudadas num cuidado uso da cor em figuras que tendem para um abstracionismo ainda incipiente. Uma verdadeira descoberta!
Ao lado do museu de belas artes fica o Museu da Guerra, Vytautas, o Grande, que honra um Grão-Duque da Lituânia que viveu entre 1350 e 1430, hoje reconhecido com um importante símbolo do renascimento da Lituânia enquanto estado.
O belíssimo edifício, de linhas marcadamente modernistas, déco, como aliás várias construções nesta zona da cidade, que dela fazem Património Mundial UNESCO, alberga uma vasta coleção de artefactos ligados à história dos conflitos bélicos em que o país se envolveu. A razão da minha rápida visita, no entanto, prendia-se com a vontade de ver uma peça em particular: os destroços do Lituanica, o Belanca CH300 Pacemaker, modificado, em que Steponas Darius and Stasys Girėnas atravessaram em 1933 o atlântico, num voo de 6000 km desde o aeródromo de Floyd Bennet em Nova Iorque para se despenharem a 600 km do destino final, Kaunas, sobre uma localidade do que era então a Alemanha e é hoje Polónia.
As razões para o desastre continuam obscuras. Mau-tempo? falha mecânica? erro de pilotagem? até mesmo acção humana (partes da fuselagem nunca foram devolvidas da Alemanha, o que adensa a teoria do abate por se ter acreditado tratar-se de um avião espião)?
Para além do monte de chapa laranja retorcida guardada na grande vitrina que alberga os destroços, algumas peças relacionadas com o desastre e itens pessoais dos dois pilotos estão expostas na mesma sala. Entre elas, as suas licenças e algumas peças de correio transportado no fatídico voo...
Seguimos para mais um local marcadamente histórico, já nos arredores da cidade. De novo um grande e bem tratado parque relvado, com bonitas árvores, entre as quais várias macieiras, carregadas de pequenas maçãs verdes e ácidas (que não resisti a provar uma).
De novo, também, o calmo e pacífico verde da relva esconde o horror da perseguição, da violência gratuita, da vil chacina. Um velho forte, o forte número 9 da fortaleza de Kaunas, construído nos finais dos sec. XIX, agora reconstruído como museu, fica no topo da colina, uma centena de metros à frente, um enorme e perturbante conjunto escultórico em frio betão.
Dirijo-me para ele, como que atraído por um estranho magneto... é um monumento às vítimas do nazismo. Um painel esclarece-me que no terreiro entre o painel e o forte, sob a verde e convidativa relva, jazem os restos mortais de dezenas de milhar de pessoas: judeus, comunistas e outros grupos alvo da loucura assassina que ontem ali, como hoje, em Gaza, comprova a fácil falência moral da nossa espécie.
Siauliai é o nosso próximo destino.
Por fim, notas de alegria num dia que hesita entre os pingos de uma chuva que não cai e de uma trovoada que não vai, num céu que alterna entre o cinza carregado e o azul fendido por grandes flocos brancos ... típico tempo de verão...
O quadrante solar mais alto da Lituânia informa-nos que já passa das quatro da tarde. Dirigimo-nos para o rio... ali, mesmo à sua beira um estranho animal recebe-nos não de braços abertos, mas sim com uma enorme boca escancarada.
É a raposa de ferro. Uma gigante escultura do simpático canídeo, criada por Vilius Puronas em 2009, para celebrar o milénio da primeira menção ao nome Lituânia, leio.
Com 15 metros de comprimento e 6,5 de altura é a escultura animal maior do país e uma atração inescapável para as fotografias de família, de namorados, de amigos, de conhecidos.... por fim lá consigo 2 minutos sem ninguém ao pé da simpática bicha para também eu poder obter algumas fotografias, sem a presença de corpos estranhos.
De novo no carro tomamos a estrada para a última paragem do dia antes do alojamento, em Klaipéda.
O que começou como um local onde alguém um dia, na primeira metade do século XIX, depositou uma cruz, com o passar dos anos tornou-se num estranho local de peregrinação e culto, sustentado por milhares e milhares de cruzes, de todos os tamanhos e feitios e de outras peças da iconografia cristã, que os crentes ferverosamente ali depositam em cumprimento de promessas, na expetativa de uma graça divina ou simplesmente, no cumprimento de uma tradição, podendo para tal adquirir a sua cruz já devidamente preparada com um espigão para enterrar no chão numa das poucas lojinhas que ali existem (que o negócio e a crença são dimensões muito longe de incompatíveis, como é sabido).
Ao chegar à base do morro, do lado direito várias cruzes de Cristo, o emblema da Força Aérea Portuguesa, chama-me a atenção.... que raio....?
Desde 2007 que um destacamento da FAP opera no Báltico, no apoio à defesa aérea das três repúblicas. Daí as cruzes que avisto, ali colocadas em representação dos vários destacamentos que passaram até agora pela Lituânia.
A chuva, por fim, anuncia-se em grossas gotas que, apesar de tudo, refrescam os corpos massacrados pelo calor húmido que se faz sentir.
Aguardamos um pouco a coberto de umas árvores... olho para o outro lado... ao fundo, uma coluna de peregrinos vem a chegar, com a bandeira Lituana à frente orgulhosamente empunhada por uma senhora de idade envergando um traje tradicional.
Cruzámo-nos com eles na estrada, há algum tempo. Rezam o terço, vêm munidos de um altifalante carregado às costas de um dos peregrinos: a voz do predicador soa ampliada, metálica, logo abafada pelo clamor plural do responso, que aumenta na razão inversa da proximidade da chegada.
Está na hora de seguir... um bonito arco-íris sobressai agora no fundo cinzento do céu, pena ser incompleto...
Faço os trezentos metros do caminho que me leva ao parque onde deixei o carro a olhar constantemente para trás, para ver se o arco-íris acaso se deixaria ver integralmente sobre o o monte.... daria uma boa fotografia, mas não tenho essa sorte.
Chegamos a Klaipeda ao fim da tarde, cansados mas respaldados no contentamento que nos dá um dia cheio, a descoberta, a viagem....
Que seja assim nos outros dias também!
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Parque Ramybé, Kaunas - Monumento aos soldados caídos nas guerras da independência da Lituânia |
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Cruz-árvore de homenagem aos participantes no levantamento de Junho de 1941 |
Mãe dos que pereceram pela liberdade da Lituânia.
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Castelo de Kaunas |
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O tocador de harpa (Kanklés, harpa tradicional Baltica) |
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Catedral de S. Pedro e S. Paulo. Um batizado decorria sob a proteção do belíssimo conjunto escultórico que circunda o altar. |
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Novos e vistosos edifícios na zona ribeirinha de Kaunas... |
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... contrastam com decadentes blocos de apartamentos em estilo soviético. |
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O combatente pela liberdade - Vytis, o cavaleiro que fiura no escudo de armas da Lituãnia. |
O Velho Sábio - retrato do artista Lituano Fluxus Jurgis Maciunas, na empena de uma antiga fábrica de sapatos.
Os toldos amarelos albergam as bancas do mercado de rua.
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O exterior de uma das alas do Museu Nacional de Belas Artes M. K. Čiurlionis |
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As notícias - um dos muitos magnificos quadros de Čiurlionis, expostos no museu
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fonte:https://ciurlionis.eu/ |
Um dos poucos quadros de outros pintores expostos no museu, em diálogo com os quadsros de Čiurlionis: Saaremaa, 1913, o quase pontilhismo luminoso do também Lituano Konrad Mägi. |
Fachada do Museu da Guerra, Vytautas, o Grande
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Os destroços do Lituânica |
pequeno jardim de esculturas fronteiro ao edifício do museu de belas-artes
com uma edifício modernista ao fundo
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Parque do forte 9, da fortaleza de Kaunas |
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sob este relvado, contíguo ao forte semi-enterrado na pequena colina, repousam dezenas de milhares de vítimas do horror nazi
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O perturbante memorial que lhes é dedicado, irrompe do chão, angular, cortante, possante, belo! |
Não fazia ideia que a rede do Caminho de Santiago se estendia até aqui. O Caminho Lituano tem cerca de 500 km de extensao , ligando-se depois ao caminho Polaco.
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Bonito, e provavelmente tóxico....(Amanita strobiliformis?) |
Esculturas de madeira são tradição por estes lados.
Estas decoravam o parque de um restaurante onde parámos para tomar café.
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O relógio de sol de Siaululai...
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... e a simpática raposa de ferro. |
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O Monte das Cruzes |

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A "Secção" portuguesa do monte, com as cruzes da Força Aérea Portuguesa |