domingo, 10 de agosto de 2025

 Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

27 de Julho de 2025 - Parte III -  Letónia

Liepaja - Pavilosta - Arribas de Jurkalne



Lembro-me bem da primeira vez que cruzei uma fronteira. 

Tal como terá acontecido a muitos portugueses da minha geração, excitante internacionalização aconteceu com um rio pelo meio, atravessado de barco, e uma nervosa passagem pelo posto fronteiriço de Vila Real de Santo António, ante o olhar inquisitório dos agentes da Guarda Fiscal, Guarda Nacional Republicana  ou Polícia de Segurança Pública, não posso precisar. Provavelmente, também, por ali haveria lugar para um agente da infame Polícia Internacional de Defesa do Estado, que o acontecimento teve lugar antes de 1969, altura em que passou a chamar-se Direcção-Geral de  Segurança.

Lembro-me da minha prenda comprada em uma das lojecas de  Ayamonte que tudo vendiam, e onde os portugueses se abasteciam  de caramelos Vda. Solano, pós de arroz e sabonetes Maderas de Oriente e Anisette Marie Brizard em troca de algumas pesetas (fascinava-me a moeda de 25 pesetas, com um buraco ao centro...)

Um cavalo preto, com um pelo como que de pó também preto que, com o tempo e a esfrega da mãos, acabava por sair, revelando o plástico também preto por baixo. Tenho um aligeira impressão que vinha com um cowboy de chapéu e cinturão vermelho.... mas não sei, não posso ter a certeza, foi já há tanto tempo....

Mas o que mais me encrustado na minha memória ficou foi o nervosismo dos meus pais e  dos amigos que os acompanhavam durante o controlo fronteiriço do lado português.

Mais tarde, já bastante mais crescido, também eu ficaria algumas vezes nervoso por conta das latas de pasta de fígado, pratos de pirex, brinquedos e outras coisas que, com os meus pais, "importaria" para o território nacional nas nossas raras saídas ao "estrangeiro", esse local mítico a que poucos aspiravam e que continuava a ser fundamentalmente ali, do outro lado da única fronteira terrestre que envolve o rectângulo de onde houve Portugal...

Na estrada cruzo um grande painel na berma. É azul e tem um círculo de estrelas amarelas ao centro. Dentro do círculo leio LATVIJA.

Não fora isso e não me daria conta que a estrada que piso agora tem outro dono, apesar de tudo em seu redor parecer igual: verde, em imenso contínuo.

Que ideia fenomenal esta da Europa a que pertenço, sendo e sentindo-me Português. 

Por uma vez somos pássaros, vento, mar... tudo aquilo que não para em postos de controle fronteiriço...

Sim, concordo: há muito que aprofundar, muto que aperfeiçoar, muito que melhorar e tudo isto é árdua tarefa... depois, circula por essa europa fora uma baforada cinzenta, bafienta, que já chegou ao meu pais e que a erode na essência... mas as boas ideias, as que verdadeiramente contribuem para o avanço e desenvolvimento, são perenes, independentes. vencedoras. Assim o creio, assim o espero.

Liepajas. Visitamos rapidamente (se assim se pode dizer) a cidade, de carro. Algumas casas,  chamam-me a atenção. Em particular uma que encontro num cruzamento de uma das principais avenidas da cidade. Fotografo a fachada e seguimos de novo para a estrada principal. Direção: Pavilosta, uma pequena localidade balnear e pesqueira atravessada pelo rio Saka que ali desagua. 


Liepajas


Paramos para comer uma peça de fruta e descansar um pouco. Nada de extremamente interessante para ver, mas esticar as pernas sabe bem...





Pavilosta

Antes de chegar a Kuldiga, destino do dia, o programa que nos tínhamos estabelecido obrigava-nos ainda a uma passagem pelas arribas de Jurkalne, a partir de onde deixaríamos, por hoje, a estrada ao longo da costa para infletirmos para o interior. Intrigava-me  a designação do local. Se algo havia que caracterizava toda a costa que até agora víramos, para além da floresta que ao longo dela sempre parecia correr, era a sua planura... com a areia a entrar pelo mar e pela floresta  quase ao mesmo nível.

Mas de facto assim não é em Jurkalne. Não que as arribas sejam altíssimas: na verdade, da floresta à areia, o desnível será inferior a 10 metros.... mas tão rara deve ser por aqui esta diferença que  o local assume honras de destaque orográfico.


O que não posso deixar de notar outra vez é a imensa qualidade da praia quase deserta que se estende aos meus pés, ou melhor aos meus olhos, para um lado e outro de onde me encontro: que calma, que beleza....

Arribas de Jurkalne

A mata acompanha-nos até ao carro, como nos acompanham aqui e ali framboesas maduras colhidas por entre os troncos dos pinheiros. Outras bagas vermelhas, a lembrar groselhas, estão por toda a parte. Têm um ar decididamente comestível, até pelo cheiro que exalam uma vez esmagadas.. mas não me atrevo...

Kuldiga e o alojamento esperam... amanhã haverá mais estrada.

sábado, 9 de agosto de 2025

   Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

27 de Julho de 2025 - Parte II -  Lituânia

Palanga 



O tempo... dizem que foge... não acredito, nunca o perdi.. apenas o gastei. Nem sempre da melhor forma; muitas vezes não da melhor forma... umas por culpa própria, outras porque, a isso, outros, ou as circunstâncias, me obrigaram.

Sinto-o, não obstante,  a passar; cada vez mais. Tal como os batimentos cardíacos, devia ser coisa que se passa quem que demos por isso... talvez porque, de há uns anos para cá, tivesse começado a prestar mais atenção aos meus batimentos cardíacos, também o tempo me parece por vezes.... arrítmico, taquicardíaco.

40 milhões de anos... imagino lá eu o que tal possa ser ou representar, eppur está ali, à minha frente, na vitrina.

Resina de pinheiros que hoje não existem já, transformada em polímero num processo longo de milhões de anos....alguns pedaços são verdadeiras cápsulas do tempo encerrando no seu cerne escaravelhos, libelinhas, moscas, gafanhotos, baratas, também eles tão velhos quanto a resina a que se colaram para a eternidade...

O Báltico é o maior depósito do mundo de âmbar, sendo minerado e recolhido seja no enclave Russo de Kaliningrado, seja na Lituânia, Letónia e Estónia.

Por aqui, nas praias, em particular depois de tempestades, é comum encontrarem-se pedaços desta estranha resina que se vê tantas vezes transformada em joias e outros artigos de luxo.

Como o belíssimo relógio de mesa, art déco, que fotografo com o telemóvel numa vitrina do Museu do âmbar em Palanga.

Várias salas de um palacete neo-renascentista de finais do séc. XIX, construído para a influente família Tyszkiewicz de extração lituano-polaca, implantado num magnífico e extenso parque botânico, perto da cidade de Palanga, albergam a coleção do Museu do Âmbar de Palanga.

A ele chegado, dirigi-me à bilheteira para adquirir os bilhetes, mas mesmo antes de falar com a senhora que estava por detrás do balcão, uma sua colega indicou-nos o caminho para a primeira sala de exposição, pelo que pressuponho que tivemos a sorte de acertar com um dia de entrada gratuita.

Tudo sobre o âmbar, desde os aspetos científicos relacionados com a sua origem e formação, históricos, respeitando à sua mineração e colheita e artísticos, espelhados na importante coleção de artefactos históricos e actuais elaborados com esta preciosa resina, é transmitido a um visitante que percorra as salas deste museu.

E se o museu cumpre na perfeição a sua missão, o parque onde o mesmo se implanta é um deleite para aqueles que, como eu, têm por árvores o mesmo sentimento que outros provam ao olhar para as joias que ainda agora vi nas vitrinas do palácio.,

Erectas, viçosas, vibrantes de verde nas copas, e de várias outras cores nos troncos que altos se erguem à passagem dos visitantes, deslumbram pela dimensão, mas também pela simples presença... pelo menos foi o que senti ao olhar para a reluzente tília, pluricentenária, acredito, que se ergue no relvado já perto do palácio.

Gostava de ter tempo para visitar o parque, que se estende até o mar, e por ali me deixar ficar, quem sabe uma manhã ou um fim de tarde, para fazer meia dúzia de fotografias... não posso, o dia avança e há que seguir em frente.... 

O tempo... dizem que foge... se calhar, têm afinal razão...



O Palácio Tiškevičiai - Museu do Âmbar de Palanga

Os pinheiros nórdicos....


... e a maravilhosa tília do parque botânico.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

  Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

27 de Julho de 2025 - Parte I -  Lituânia

 Klaipèda - Smiltyne - Parque Nacional do Istmo da Curlândia - Nida - Prevalka -  Juodkrante 



Na verdade não visitei Klaipèda....lamento. É uma cidade portuária e, por norma, cidades com água por perto, seja rio, seja mar, ou, melhor ainda, seja ambos como era o caso, costumam merecer passeio sem outra preocupação que a descoberta... o tempo, no entanto, é inflexível  e nós tínhamos os olhos postos um pouco mais à frente, no Istmo da Curlândia

Por isso metemo-nos no carro e fomos diretos para o novo cais, onde é possível apanhar uma curta ligação de ferry (não mais que 10 minutos) para Smiltyne, na verdade uma localidade ainda parte da municipalidade de Klaipèda, mas já situada na língua de areia e mata, longa de 98 km, repartida entre a Lituânia e a Rússia, que, pelas suas características naturais - alberga algumas das mais altas dunas errantes da Europa -  e qualidade da interação humana com as mesmas - são várias as povoações aqui instaladas - viu ser-lhe outorgado o estatuto de Património Mundial pela UNESCO.

Era cedo ainda e não havia qualquer fila para apanhar o barco. Depois de tirar o bilhete, esperámos um bom quarto de hora até que, por fim, o ferry lá atravessou as calmas águas da lagoa em menos tempo do que levo eu a escrever três parágrafos deste  relato....

No barco, apenas turistas, locais e alguns estrangeiros como nós, a julgar pelas diversas  línguas em que se teciam os comentários dos viajantes, à medida a que nos aproximávamos do cais de Smiltyne.


Uma longa reta de boa estrada esperava-nos do outro lado. Decidimos que iríamos diretamente para Nida, a localidade no limite da parte Lituana do istmo, para depois, no regresso pararmos, sempre que se justificasse.

Poucos quilómetros ainda tínhamos percorrido dos cerca de 50 que nos esperavam quando deparámos com uma inesperada praça de portagem.

Estávamos a entrar no parque Nacional  do Istmo da Curlândia e, como tal, era preciso pagar a taxa de acesso que, para automóveis, no verão, tem o módico valor de 50€, explicou-nos o portageiro.

Compreendo a necessidade de controlar o tráfego automóvel num local como este, em particular no verão. Se assim não fosse, imagino que a estrada que até agora me tinha surpreendido pelo pouco trânsito se tornasse rapidamente intransitável. 

Em contrapartida, não posso deixar de pensar que mais uma vez é o dinheiro que faz a "seleção natural", ao contrário do que Darwin pensava, e isso irrita-me de sobremaneira... lembrei-me logo do nosso ferry para Troia e das praias até Melides e da desfaçatez dos endinheirados que tentam condicionar o acesso a um bem que, no meu país, é, felizmente, público.

Já ao pé de Nida, avançámos para a primeira paragem do dia: a duna de Parnidis, o seu relógio de sol e a vista sobre o Vale da Morte, assim se designa o vale de areia na base da duna onde supostamente teria existido uma prisão militar onde muitos prisioneiros franceses da guerra Franco-Prussiana do final do sec. XIX teriam sucumbido, o que estudos científicos desenvolvidos já depois da independência da Lituânia não permitiram confirmar.


O quadrante solar da duna de Parnidis

Os entrançados tradicionais de ramos e canas com que
 a areia é ustida e sustentada, para limitar o seu avanço.


Hipparchia semele - também as há de onde escrevo



Não obstante, um pequeno memorial - um banco de pedra ao lado de outra pedra com uma ave nela pousado - foi ali erguido em 2018 a expensas do Ministério da Defesa francês.

Francês é também outro visitante de bronze. Sozinho, parece desafiar um vento que hoje, claramente, se não sente e até saberia bem, que o sol vai quente...

Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir estiveram na Lituânia, por cerca de 10 dias,  no verão de 1965. Nida foi um dos locais visitados pelo par que, segundo se conta, terá ficado fortemente impressionado pelas vastas dunas do istmo.

A visita seria imortalizada pela objetiva de um fotógrafo, então com apenas 26 anos, Antanas Sutkus, e uma fotografia em particular destacar-se-ia entre as muitas que registou nos dias em que acompanho os visitantes: Sartre e Beauvoir desafiando o vento sobre a areia. Sutkus editaria posteriormente esta fotografia, por forma a deixar Sartre sozinho no enquadramento, embora no chão continue a aparecer a sombra da companheira.


A foto editada seria recriada em bronze em 2018 por Klaudijus Pūdymas e instalada perto do memorial Francês.

A presença inesperada do existencialista é uma surpresa para o visitante... mas agora que sei que a foto original foi cortada, não posso deixar de sentir que falta alguém naquelas dunas...


Do miradouro instalado ao pé do enorme relógio solar, pode-se olhar para a parte russa do istmo que liga com o enclave de Kaliningrado e que pouco mais dista dali que um quilómetro facilmente transponível a pé, pela areia (o que provavelmente, não será boa ideia tentar....)

A estrutura branca que se vislumbra sob a linha do horizonte do lado direito da foto é uma torre de vigilância já do lado Russo do Istmo.

A calma que até agora nos tinha servido de companheira, foi de repente quebrada pela chegada de vários contingentes de turistas em viagens organizadas. Tempo de partir.

Chegados de novo ao parque de estacionamento fomos surpreendidos por dois enormes autocarros que bloqueavam os carros estacionados. Sem espaço para manobrar, obrigaram-nos a esperar uns bons 20 minutos até que finalmente conseguimos dali sair, com o azimute já tirado para visitar Nida.

As casas vermelho sanguíneo e azuis que tínhamos visto em fotografias e vídeos apareciam agora em profusão. O que não aparecia era sítio para estacionar e, depois de duas voltas ao centro da cidade, decidimos continuar para outra localidade mais recatada, porque ali seria difícil parar. 




No entanto, mais à frente, um inesperado lugar na beira da estrada surgiu de repente e nós aproveitámos a oportunidade para uma volta rápida pela zona em que nos encontrávamos que embora afastada do centro, se organizava no mesmo tipo de construção e gestão de espaços por que tínhamos passado mais atrás.

  




Era notório que estávamos a pisar território de elite. Bastava olhar para o parque automóvel e para a forma comos os bem cuidados jardins se articulavam entre as casas, também elas primorosamente cuidadas.

Ao longo da lagoa, uma via partilhada por bicicletas e peões prometia um bom passeio que não poderíamos no entanto fazer mas que outros, sem os nossos constrangimentos, aproveitavam a sós, em família ou na companhia de amigos.

Voltámos ao carro. Mais à frente ficaria a casa, reconstruída após danos sofridos por bombardeamento durante a segunda guerra mundial,  onde Thomas Mann passou três verões e a que nunca mais voltaria depois do seu exílio forçado, primeiro na Suiça, em 1933, e depois nos Estados Unidos da América, a partir de 1939, para fugir à perseguição do regime nacional-socialista que se instalara na Alemanha.



A casa de Thomas Mann

Uma vez mais o tempo limitado impedia a visita ao museu que a construção alberga, mas não deixei de visitar por fora a casa, instalada numa colina com uma vista belíssima para a lagoa.

O farol de Nida, cujo topo avistara da duna de Parnidis, seria a visita seguinte no programa, mas a estrada por onde o gps me mandava seguir estava cortada por uma casa em construção, e ir a pé tomar-nos-ia um tempo de que não dispúnhamos... triste por não poder prosseguir, consolei-me com a certeza que a seguir iria dar um mergulho no Báltico.

O farol de Nida... talvez um dia, quem sabe....

Os carros parados em espinha na borda da estrada indicavam as entradas para as praias. Tivemos sorte, uma vez mais: um carro vinha a sair numa delas o que nos permitiu estacionar, coisa que voltava a ser sumamente difícil.... a par dos automóveis dos fabricantes habituais por essa Europa fora,  alguns exemplares de marcas mais exclusivas - Bentley, Porsche, Ferrari, até um Rolls... acotovelavam-se nos estreitos espaços dos parques de estacionamento, o que compaginava em absoluto com o ambiente geral de riviera, que senti em Niva.

Um infindável areal, de areia fina e branca, até onde olhar alcançava;  água nos vinte graus, ondas pequenas e água pelos joelhos durante umas boas dezenas de metros... assim era aqui e seria em muitas outras praias que visitámos ao longo da nossa curta viagem. Mais ainda, no pico do verão, como estávamos agora, algumas delas estavam desertas e mesmo as mais frequentadas tinham espaço suficiente para qualquer pessoa se sentir dona da sua pequena praia pessoal....

As praias dispõem também dos necessários apoios que tornam a sua utilização prática e cómoda -  local para mudar de roupa, duche, lava-pés.... tal e qual como na Caparica, onde , que eu me tivesse dado conta, existe um duche para todos os 3 km da frente de praia do paredão... 

Prevalka foi a paragem que se seguiu após a saída da praia. A pequena localidade, como todas as outras no istmo, mostrava orgulhosa as suas belíssimas casas de madeira. Uma curta caminhada por um trilho na mata resguardado pela sombra doce dos pinheiros e pela frescura das groselhas, que por aqui crescem em profusão, levou-nos até a um ponto mais elevado de onde se podia avistar a ilha artificial construída na lagoa, sobre a qual se ergue um pequeno farol.



Os corvos marinhos de faces brancas (Phalacrocorax carbo) são, por estas bandas, muito frequentes e protegidos por lei. Perto da localidade de Juodkrantė, existe uma das maiores colónias europeia da espécie, que conta com cerca de 2000 indivíduos.


A sua proliferação tem, no entanto, um impacte notório sobre a floresta. Na zona de nidificação da colónia de corvos marinhos,   os pinheiros estão, em grande número, secos, erguendo-se sem copas, o que confere ao local uma estranha aura de floresta moribunda, devastada... As fezes ácidas dos corvos que cobrem árvores e chão são a razão desta verdadeira mortandade vegetal.

Juodkrantė é também conhecida por ser o local onde se ergue o "Monte das Bruxas", um museu a céu aberto de esculturas tradicionais de madeira que, desde 1979, ano em que as primeiras 25 esculturas ali foram implantadas em comemoração do ano internacional da criança, tem vindo a ser ampliado e mantido, contando agora com cerca de 80 peças. 



Ladeando um curto e agradável trilho à sombra de altas árvores,  reis, cavaleiros, fadas, duendes e outras criaturas míticas do rico folclore Lituano espreitavam as nossas passadas, tantas vezes interrompidas para mais um oh!, um ah? um uh? e o inevitável clic do obturador da máquina fotográfica.  



  



Uma das primeiras esculturas com que nos cruzámos era a de um banco suportado nas extremidades por dois duendes... eu já conhecia a cara de um deles.... o primeiro postal que recebi da Lituânia através do postcrossing, em 2021, estava ilustrado com uma fotografia do duende que tinha agora à minha frente... quem diria...?

O postal e a fotografia...

A manhã ia já passada e muito caminho nos aguardava ainda pela frente. De novo no carro, dirigimo-nos de volta a Smyltine e à curta espera para a travessia de ferry, tornada ainda mais fácil pela doçura de um pêssego e o conforto de uma sandes bem recheada, que nos serviu de almoço.

Klaipèda de novo.... Na verdade, não a visitei.... lamento.


terça-feira, 5 de agosto de 2025

 Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

26 de Julho de 2025 -  Lituânia

 Kaunas - Siauliai - Monte das Cruzes - Klaipeda

Kaunas, Ramybè Park,

Dir-se-á que começar uma viagem visitando um cemitério é, literalmente, começar pelo fim... e, no entanto, foi isso que, inadvertidamente, nos aconteceu, quando iniciámos a nossa visita a Kaunas, a segunda mais importante cidade da lituânia, a seguir à capital, Vilnius.

Procurava um monumento, dei de caras com vários e, lentamente, fui-me apercebendo que o bonito e calmo parque por onde seguia tinha muitas histórias para contar. Milhares, seguramente; tantas quantas as pessoas que, sob os cuidados relvados e à sombra das magníficas árvores, ali se formaram em terra,  húmus, seiva, para rebrilharem agora nas faces das folhas, tocadas pelos primeiros raios de sol e  agitadas pela suave brisa da manhã.

Nem sempre foi assim, leio. Neste local ficava o cemitério principal de Kaunas, que fora aberto em 1847. 

Repartido em quatro grandes talhões - Católico, Luterano, Ortodoxo e Muçulmano (a comunidade Judaica dispunha de cemitérios próprios) - também ele, de alguma forma, um testemunho do grau de convivialidade entre as confissões que o ocupavam, foi encerrado em 1958 e transformado no jardim que hoje o sobremonta pelo ocupante soviético, como forma, leio também, de aplacar as manifestações de resistência cívica que a população ali levava a cabo, consubstanciada numa cada vez maior utilização de simbologia nacional para decoração das campas, em particular no dia de finados, em que, lá como cá, é tradicional visitar os cemitérios.

O monumento que ali me chamou fora construído em 1930. Uma espada, enterrada no solo a prumo, a lembrar uma cruz, honrava os soldados caídos nas guerras da independência da Lituânia.

Foi destruído em 1958, quando o cemitério foi encerrado, e reconstruído em 1994.

Ficara por aqui e este poderia ser apenas mais um dos muitos e bons parques que tiram por estes lados partido da generosidade do clima no que às chuvas e humidade respeita, mas uns passos à frente uma fileira de cruzes fez-me, por fim, perceber que solo os meus pés pisavam.

As cruzes sobriamente engalanadas com fitas das cores nacionais; uma cruz central, maior, com uma coroa de folhas de carvalho, antes verdes, mas já totalmente secas,  onde despontavam ainda, viçosos, o amarelo e vermelho de flores provavelmente de papel, a completar a trilogia cromática lituana, permitiam pensar que há não muito tempo teria havido cerimónia evocativa... O dia do Estado, feriado nacional, celebrado a 6 de Julho, talvez....

Leio que o conjunto honra a memória dos participantes no levantamento de Junho de 1941, contra o invasor soviético.

Não muito longe das cruzes, uma fantástica escultura metálica de uma figura alada feminina: a mãe  dos que pereceram pela liberdade da Lituânia, assim se designa.

Há muito mais que um parque, aqui; muito mais que a memória de um antigo cemitério... o parque Ramybè, no simbolismo que o local, a sua história e os vários monumentos que nele se erguem naturalmente destilam, dir-se-ia um panteão... a mim, resta-me o respeito de uma visita e da sua descoberta. 

O castelo e o centro histórico.... dou por mim a avançar com o carro por uma rua sem trânsito... mas igualmente sem saída....

Nenhum dos poucos transeuntes com quem nos cruzamos, no entanto, se mostra agastado com a presença do carro que conduzo lentamente, sempre em frente, na esperança de encontrar saída...

Fim da rua... impossível dali sair... cruzo os olhos com um peão, homem de meia idade, que, com bonomia, me dirige algumas palavras em letão. Respondo-lhe em inglês com uma pergunta... "Como saio daqui?"; responde-me em alemão fragmentado.. apenas percebo as duas última palavras que articula entre um sorriso franco "Schleste navigation"...

Retribuo-lhe o sorriso, embora, por certo, o meu não esconda o nervosismo que sentia já, preocupado com um eventual encontro do terceiro grau com algum polícia.....

Com cuidado inverto a marcha e lá sigo, devagarinho, pelo mesmo caminho que fizera até ali.... por fim encontro um cruzamento por onde saio para o trânsito normal....

A verdade é que não me dei conta de qualquer sinal indicando proibição de passagem... talvez estivesse escrito em algum sítio, mas o Lituano não é seguramente o meu forte.....

Um mercado de rua propõe várias especialidades aos locais, e não só, que o visitam. Queijos, cogumelos, bagas, pastelaria, enchidos, vegetais... tudo com um ar sumamente fresco e delicioso... aqui, como na minha terra, é a fruta que me surpreende pelo preço que agora atinge... aqui, como na minha terra, pergunto-me como podem muitas pessoas viver com os ordenados que auferem no final do mês....

Uma nova descoberta aguarda-me...; sempre que possível, em viagem, procuro visitar museus de belas artes. Embora não seja especialmente seletivo e me deslumbre com pinturas de todas as épocas, atrai-me em particular o período que vai do final do sec. XIX à primeira metade do sec. XX, o modernismo, declinado nas suas várias e múltiplas correntes.

O Museu de Belas Artes em Kaunas dá pelo nome de Museu Nacional de Belas Artes  M. K. Čiurlionis. Confesso que desconhecia o destinatário da homenagem e pensava que este seria um museu como tantos outros, com uma exposição permanente devidamente organizada mas constituída  por obras de múltiplos autores.

De facto assim não é. Mikalojus Konstantinas Čiurlionis foi um multifacetado artista lituano que viveu entre 1875 e 1911 e que ao longo dos 35 anos da sua infelizmente curta vida produziu um assinalável e extenso acervo de obras não só no domínio das belas-artes - pintura, desenho, artes gráficas - mas também nos da música, fotografia e literatura. 

O museu que leva o seu nome leva também  a maioria do seu corpus artístico de pintura. E que belo ele é, repartido por obras em ciclos temáticos, alguns deles de óbvias conotações musicais (Čiurlionis dizia-se sinestésico) e não só, nas mais variadas técnicas e suportes mas com predomínio para o pastel ou a tempera sobre cartão, pelo que me pareceu.

Hoje, muitas das obras parecem mostrar algum desgaste cromático devido à usura do tempo, parece-me, mas as composições deslumbram, escudadas num cuidado uso da cor em figuras que tendem para um abstracionismo ainda incipiente. Uma verdadeira descoberta!

Ao lado do museu de belas artes fica o Museu da Guerra, Vytautas, o Grande, que honra um Grão-Duque da Lituânia que viveu entre 1350 e 1430, hoje reconhecido com um importante símbolo do renascimento da Lituânia enquanto estado.

O belíssimo edifício, de linhas marcadamente modernistas, déco, como aliás várias construções nesta zona da cidade, que dela fazem Património Mundial UNESCO, alberga uma vasta coleção de artefactos ligados à história dos conflitos bélicos em que o país se envolveu. A razão da minha rápida visita, no entanto, prendia-se com a vontade de ver uma peça em particular: os destroços do Lituanica, o Belanca CH300 Pacemaker, modificado, em que Steponas Darius and Stasys Girėnas atravessaram em 1933 o atlântico, num voo de 6000 km desde o aeródromo de Floyd Bennet em Nova Iorque para se despenharem a 600 km do destino final, Kaunas, sobre uma localidade do que era então a Alemanha e é hoje Polónia.

As razões para o desastre continuam obscuras. Mau-tempo? falha mecânica? erro de pilotagem? até mesmo acção humana (partes da fuselagem nunca foram devolvidas da Alemanha, o que adensa a teoria do abate por se ter acreditado tratar-se de um avião espião)?

Para além do monte de chapa laranja retorcida guardada na grande vitrina que alberga os destroços, algumas peças relacionadas com o desastre e  itens pessoais dos dois pilotos estão expostas na mesma sala. Entre elas, as suas licenças e algumas peças de correio transportado no fatídico voo...

Seguimos para mais um local marcadamente histórico, já nos arredores da cidade.  De novo um grande e bem tratado parque relvado, com bonitas árvores, entre as quais várias macieiras, carregadas de pequenas maçãs verdes e ácidas (que não resisti a provar uma).

De novo, também, o calmo e pacífico verde da relva esconde o horror da perseguição, da violência gratuita,  da vil chacina. Um velho forte, o forte número 9 da fortaleza de Kaunas, construído   nos finais dos sec. XIX, agora reconstruído como museu, fica no topo da colina, uma centena de metros à frente, um enorme e perturbante conjunto escultórico em frio betão.

Dirijo-me para ele, como que atraído por um estranho magneto... é um monumento às vítimas do nazismo. Um painel esclarece-me que no terreiro entre o painel e o forte, sob a verde e convidativa relva, jazem os restos mortais de dezenas de milhar de pessoas: judeus, comunistas e outros grupos alvo da loucura assassina que ontem ali, como hoje, em Gaza, comprova a fácil falência moral da nossa espécie.

Siauliai é o nosso próximo destino.

Por fim, notas de alegria num dia que hesita entre os pingos de uma chuva que não cai e de uma trovoada que não vai, num céu que alterna entre o cinza carregado e o azul fendido por grandes flocos brancos ... típico tempo de verão...

O quadrante solar mais alto da Lituânia informa-nos que já passa das quatro da tarde. Dirigimo-nos para o rio... ali, mesmo à sua beira um estranho animal recebe-nos não de braços abertos, mas sim com uma enorme boca escancarada.

É a raposa de ferro. Uma gigante escultura do simpático canídeo, criada por Vilius Puronas em 2009, para celebrar o milénio da primeira menção ao nome Lituânia, leio. 

Com 15 metros de comprimento e 6,5 de altura é a escultura animal maior do país e uma atração inescapável para as fotografias de família, de namorados, de amigos, de conhecidos.... por fim lá consigo 2 minutos sem ninguém ao pé da simpática bicha para também eu poder obter algumas fotografias, sem a presença de corpos estranhos.

De novo no carro tomamos a estrada para a última paragem do dia antes do alojamento, em Klaipéda.

O que começou como um local onde alguém um dia, na primeira metade do século XIX,  depositou uma cruz, com o passar dos anos tornou-se num estranho local de peregrinação e culto, sustentado por milhares e milhares de cruzes, de todos os tamanhos e feitios e de outras peças da iconografia cristã, que os crentes ferverosamente ali depositam em cumprimento de promessas, na expetativa de uma graça divina ou simplesmente, no cumprimento de uma tradição, podendo para tal adquirir a sua cruz já devidamente preparada com um espigão para enterrar no chão numa das poucas lojinhas que ali existem (que o negócio e a crença são dimensões muito longe de incompatíveis, como é sabido).

Ao chegar à base do morro, do lado direito várias cruzes de Cristo, o emblema da Força Aérea Portuguesa, chama-me a atenção.... que raio....?

Desde 2007 que um destacamento da FAP opera no Báltico, no apoio à defesa aérea das três repúblicas. Daí as cruzes que avisto, ali colocadas em representação dos vários destacamentos que passaram até agora pela Lituânia.

A chuva, por fim, anuncia-se em grossas gotas que, apesar de tudo, refrescam os corpos massacrados pelo calor húmido que se faz sentir.

Aguardamos um pouco a coberto de umas árvores... olho para o outro lado... ao fundo, uma coluna de peregrinos vem a chegar, com a bandeira Lituana à frente orgulhosamente empunhada por uma senhora de idade envergando um traje tradicional.

Cruzámo-nos com eles na estrada, há algum tempo. Rezam o terço, vêm munidos de um altifalante carregado às costas de um dos peregrinos: a voz do predicador soa ampliada, metálica, logo abafada pelo clamor plural do responso, que aumenta na razão inversa da proximidade da chegada.

Está na hora de seguir... um bonito arco-íris sobressai agora no fundo cinzento do céu, pena ser incompleto...

Faço os trezentos metros do caminho que me leva ao parque onde deixei o carro a olhar constantemente para trás, para ver se o arco-íris acaso se deixaria ver integralmente sobre o o monte.... daria uma boa fotografia, mas não tenho essa sorte.

Chegamos a Klaipeda ao fim da tarde,  cansados mas respaldados no contentamento que nos dá um dia cheio, a descoberta, a viagem....

Que seja assim nos outros dias também!

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Parque Ramybé, Kaunas - Monumento aos soldados caídos nas guerras da independência da Lituânia

Cruz-árvore de homenagem aos participantes no levantamento de Junho de 1941

Mãe  dos que pereceram pela liberdade da Lituânia.







O tocador de harpa (Kanklés, harpa tradicional Baltica)



Catedral de S. Pedro e S. Paulo. Um batizado decorria sob a proteção
 do belíssimo conjunto escultórico que circunda o altar.

Novos e vistosos edifícios na zona ribeirinha de Kaunas...


... contrastam com decadentes blocos de apartamentos em estilo soviético.

O combatente pela liberdade - Vytis,
 o cavaleiro que fiura no escudo de armas da Lituãnia.

O Velho Sábio - retrato do artista Lituano Fluxus Jurgis Maciunas, na empena de uma antiga fábrica de sapatos. 
Os toldos amarelos albergam as bancas do mercado de rua.

O exterior de uma das alas do Museu Nacional de Belas Artes  M. K. Čiurlionis

As notícias - um dos muitos magnificos quadros de Čiurlionis, expostos no museu
fonte:https://ciurlionis.eu/

Um dos poucos quadros de outros pintores expostos no museu, em diálogo com os quadsros de Čiurlionis:
 Saaremaa, 1913, o quase pontilhismo luminoso do também Lituano Konrad Mägi.

Fachada do Museu da Guerra, Vytautas, o Grande




Os destroços do Lituânica


pequeno jardim de esculturas fronteiro ao edifício do museu de belas-artes
 com uma edifício modernista ao fundo

Parque do forte 9, da fortaleza de Kaunas


sob este relvado, contíguo ao forte semi-enterrado na pequena colina,
 repousam dezenas de milhares de vítimas do horror nazi 





O perturbante  memorial que lhes é dedicado, irrompe do chão, angular, cortante, possante, belo!

Não fazia ideia que a rede do Caminho de Santiago se estendia até aqui. O Caminho Lituano tem cerca de 500 km de extensao , ligando-se depois ao caminho Polaco.

Bonito, e provavelmente tóxico....(Amanita strobiliformis?)



Esculturas de madeira são tradição por estes lados. 
Estas decoravam o parque de um restaurante onde parámos para tomar café.

O relógio de sol de Siaululai...






... e a simpática raposa de ferro.


O Monte das Cruzes






A "Secção" portuguesa do monte, com as cruzes da Força Aérea Portuguesa