segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Imprevisível, a existência molda-se ao tempo, que a acompanha síncrono, sem que nada ou alguém seja capaz de os separar.

É assim com tudo o que conhecemos com  presença tangível  (pelo menos no meu reduzido e primo-ignorante  entendimento da física) por isso nunca nos cabe saber quando, nem tão pouco o quê, mas podemos navegar certos que um dia, no próximo segundo, daqui a um ano, em algum momento, desde que esse momento seja futuro, o imprevisto cruzará os nossos passos.

E por imprevisto entendo o incomum, o verdadeiramente inesperado, já que tudo a seguir a agora, de alguma forma, lhe cabe na definição.

Sou agnóstico, não creio em determinismos outros que o ciclo natural da vida tal como me ensinaram na escola - nasce, cresce, reproduz-se  e morre – por isso desconheço o conforto de um pós-ser que me continue seja lá o que for.

Era pequeno e mandaram-me fazer a primeira comunhão. De joelhos no confessionário, torci o cérbero para encontrar remorso e, mais que isso, razão para o mesmo…."disse mentiras", menti eu uma vez mais ao padre que me absolveu: vai e reza, já nem sei quantos pai-nossos e outras tantras avé-marias (as duas orações que garantidamente eu sabia, já que as outras… credo…!)

Fui. Ajoelhei-me outra vez na escadaria e lá comecei a debitar o meu rol de sacrifício.

A Sé de Faro, como tantos templos, era frequentada por crentes, mas também por  andorinhas que lá voavam dentro (se afinal o espírito santo era uma pomba, porque não haveriam os anjos de ser andorinhas…?)

A meio de uma das orações, ia a penitência ainda no seu primeiro terço (curiosa consonância semântica;  há de haver um nome para tão requintada figura de retórica, acho…) algo quente e viscoso escorreu-me pela testa. Olhei para cima ainda a tempo de ver a andorinha que se afastava naquele voo ríspido e intencional que se lhes conhece, sempre que saem para caçar os insetos que levam depois para os ninhos para alimentar os filhos.

Olhei para a imagem do altar. Olhos nos olhos; não me disse nada. Tirei o lenço que felizmente tinha no bolso e limpei a mácula que me untava a testa… levantei-me e, considerando-me plenamente perdoado, saí para a luz!

Foi há muitos anos, mais de cinquenta, por certo. De então para cá, muitas vezes o imprevisto se cruzou comigo, até sob a mesma forma, embora com consequências bem mais nefastas porque uma gaivota não é mesmo uma andorinha….

Há pouco tempo, passei num campo de futebol improvisado, que muitas vezes cruzo no meu passeio matinal. Uns dias antes, jogadores cansados de ir buscar a bola ao canavial sempre que alguém gritava “GOLO!” haviam utilizado uma velha rede de pesca da malha relativamente apertada para cobrir o fundo da baliza, numa atitude perfeitamente compreensível, sensata e desprovida de má intenção.

Passo ritmado, olhei para a rede que desfilava a meu lado. Um peluche, pensei. Alguma criança deixou ali o peluche enrolado na rede. A consciência do imprevisto, no entanto, agitou-me a consciência do resto. Será mesmo um peluche? Voltei atrás.

Enrolado em voltas e mais voltas de rede, numa verdadeira armadilha que o estrangulava, o pequeno peluche olhou aflito para mim. 

E agora, como é que te vou tirar daqui, bicho? Não é fácil pegar num ouriço-caixeiro, mesmo que juvenil, com não mais de dez, doze centímetros de comprimento. Não é à toa que se lhes chama também porco espinho e os ditos são mesmo bastante duros  e afiados.

Cuidadosamente, mas tão depressa quanto me era possível que o bicho dava ares de estar a sufocar e já deveria estar assim há várias horas porque estas são criaturas de hábitos noturnos e o sol já ia  bem descoberto, lá  fui desenrodilhando o pequeno animal o melhor que podia, cuidando de não o magoar (nem de me magoar a mim, ora essa…), até que cheguei a um ponto em que já não o conseguiria fazer sem ajuda de uma faca, porque os quadrados da rede tinham entrado pelo corpo adentro e estavam tão apertados que eu não os conseguiria puxar para fora sem magoar seriamente o bicho.

Por sorte alguém passou, passeando um cão. Atirei de pronto, “bom dia, desculpe, por acaso não tem uma navalha?” “Por acaso tenho, tome”.

Com dois golpes certeiros cortei a rede feita garrote para a infeliz criatura que continuava a olhar triste para mim.

Coloquei-a cuidadosamente no chão à sombra. Mexeu as pernas, mas deixou-se estar  no sítio, talvez a recuperar do susto. Devolvi a navalha ao meu providencial amigo que me elogiou o gesto e que agora muitas vezes vejo no passeio e me sorri enquanto nos cumprimentamos, com o sabor de sabermos de uma história que nos irmana.

No dia seguinte passei pelo mesmo local. Do ouriço no local resguardado em que o colocara, nem sinal. Sorri contente e continuei  caminho.

No tarde desse mesmo dia, fui caminhar na praia, na maré vazia, como gosto e tantas vezes faço. Num repente, uma onda vomitou para a areia um frémito azul, que se debatia e contorcia. “Não, não pode ser… mas é.. uma tintureira….”



O desgraçado esqualo, juvenil também, com não mais de um metro e vinte, talvez ocupado na caça aos robalos que de vez em quando se veem a surfar nas ondas da Caparica, acabara a corrida atirado para a reia, onde se contorcia à procura de ar.

Peguei nele pela parte do corpo esguio, hidrodinâmico, que conduz à magnífica cauda e levei-o para a frente, onde a água seria já suficiente para que pudesse nadar e afastar-se em segurança. Larguei-o na base de uma onda, bem imerso, mas ele, obviamente confuso, apressou-se a nadar precisamente no sentido de terra, tendo novamente acabado encalhado na areia quando a água escorreu de novo para o mar.

Voltei a agarrá-lo. Desta vez, como a viagem seria mais longa e eu não o queria magoar, peguei-lhe com uma mão atrás da cabeça, com o cuidado necessário para não a colocar ao alcance da boca e com outra no corpo, ao pé da cauda. Avancei com o pequeno tubarão até para lá da primeira linha de rebentação, com a água a dar-me pelas coxas e imergi-o de novo.  Rodou uma ou duas vezes (será que é assim que um tubarão agradece) e com o sublime ondular de corpo e cauda que os propulsa água fora, lá desapareceu no Atlântico.

Duas histórias em dois dias seguidos num mesmo fim se semana.

Imprevisível é o tempo e o que nos oferece. A nós cabe-nos por ele esperar, sendo certo que no dobrar da esquina, pode haver sempre uma história que nos aguarde e de nós faça inopinados protagonistas…ou não, caso não estejamos atentos o suficiente para questionarmos o que nos rodeia…mas isso seria perder uma imperdível oportunidade!

domingo, 1 de agosto de 2021

 

GR11-E9 (Parte 2) - Praia do Meco - Cabo Espichel

Lógico seria continuar: Fonte da Telha – Praia do Meco, pensei, até porque o caminho a partir das instalações NATO na Fonte da Telha seria sempre a descer até encontrar o areal que contorna  a Lagoa e, depois de passar por esta, haveria sempre a opção de seguir pela borda de água, se a maré estiver vazia, para fugir da areia solta, ou por cima da encosta (embora suspeite que também aqui  a areia não deva estar lá muito compactada).

Mas a lagoa está aberta para o mar. No final de Maio, as retroescavadoras  a mando da Câmara Municipal de Sesimbra abriram o canal de ligação que permite a renovação da água do sistema lagunar, essencial para a estabilidade do ecossistema e a passagem agora implicaria uma banhoca no canal…

Decido, por isso,  esperar pelos efeitos do inverno e fazer este troço para o ano, quando a boca da lagoa estiver de novo fechada pela acumulação da areia empurrada pelo mar e pelo vento.

Mas como portas fechadas abrem janelas, o mesmo olhar sobre o Google Earth que me disse ser impossível  este percurso, pôs-me a pensar que nada impedia que continuasse em frente até à ponta onde a linha de costa inflete para Oriente, na direção de Sesimbra  e onde há milhões de anos, foram outros os caminhantes que deixaram para sempre as pegadas marcadas na rocha. Praia do Meco-Cabo Espichel… estava decidido! Se Maomé não vai à montanha…

 Alguns obstáculos seriam de esperar. Não tanto por dificuldades do caminho, embora também as houvesse, mas mais pela orografia da zona, marcada por várias gargantas de ribeiras que atravessam  a paisagem perpendicularmente à costa e me pareciam poder vir a colocar alguns problemas  no atravessamento, para mais indo eu fazê-lo sem a companhia de alguém  que me pudesse ajudar na procura do melhor caminho.

Consultei o Wikiloc. Várias pessoas já tinha feito este trajeto, pelo que estava provada a sua viabilidade, embora o tempo registado de percurso, muitas vezes superior a 5 horas, numa distância que não excederia os 14 kms, me deixasse um pouco apreensivo sobre o que iria encontrar pela frente.

Estudei e memorizei os acidentes de percurso, marquei a data, tratei das barritas e das sandes e záz…







Meti-me no carro - sim, aquele ali por debaixo de um dos toldos no estacionamento da praia - pouco passava das seis da manhã. A noite fora húmida e o principio da manhã dava-lhe continuidade. na estrada entre a Lagoa de Albufeira e a praia do Meco uma chuva miudinha, assim como se de bafo do nevoeiro se tratasse, colava-se ao vidro, mas, felizmente, ao pé do mar. as nuvens acabavam e a chuva também. 

Estacionei, agarrei na mochila e nos bastões, porque agora seria a subir e lá fui..."Merda! areia solta!" Lá trepei os vinte metros de desnível que me levaram até ao topo da arriba. Percebi logo que a areia solta ia ser minha companheira por uns bons quilómetros nas trilhas que seguiam para sul, as mais largas revolvidas por pneus de quads e 4x4, o que contribui para a falta de compactação do piso.

Os bastões ajudam a manter um bom ritmo ainda assim, embora já sinta o desconforto da areia dentro dos sapatos (que estão ambos um pouco rotos à frente, por onde entra a areia, mas que são os mais confortáveis que tenho e aqueles com que mais gosto de caminhar).  A distância para trás vai aumentando, mas, para a frente ainda não se vê o destino, que a ponta dos lagosteiros o tapa e mesmo que assim não fosse, as nuvens que por lá pairam escondem a linha que separa o céu da terra.



Suo. O dia vai húmido e o sol ainda não aperta, e, depois, esta areia mole não ajuda. O que vale é que a paisagem vale a caminhada,  com o tomilho - que bem que cheira o caminho - e a perpétua das areias, em flor (pena que das armérias já só restem as hastes e a flores secas). Mas o melhor ainda é que as camarinhas são muitas, maduras, e, como choveu, surpreendentemente frescas, quando rebentam na boca com aquela mistura de doce e ácido que não se encontra em outra coisa que não as humildes bagas perladas de que eu tanto gosto.

Ah, o raio da areia... só espero que não seja assim até ao fim. Distraio-me de vez em quando com uma fotografia ou outra, também para parar um pouco e retemperar o folego, que não quero abusar  do esforço.

Andar sozinho tem a desvantagem disso mesmo (um tipo pode sempre ter azar e partir um pé numa escorregadela, ou qualquer outra coisa), mas tem a imensa vantagem de se olhar em torno e se sentir a paisagem de outra forma, mais arguta, mais pessoal, sem distrações causadas pela presença de outros.

O areal, lá em baixo, estende-se convidativo, mas eu quero ir cá por cima, pela arriba, até porque ao pé da arriba a areia da praia ainda deve ser mais solta que a cá de cima...

Uma primeira garganta sai-me ao caminho. não sei como atravessá-la, sigo uma estrada de terra batida que aqui passa e entro para oeste, à procura de um ponto de ponto de passagem...tento várias vezes mas não o encontro. Por fim dou com uma cerca. Devia seguir ladeando-a, pelo que me lembro dos mapas do Google Earth, mas para isso tenho de encontrar caminho que me permita transpor a linha de água.

Um caminho ingreme parece-me viável. Desco e subo pela encosta íngreme de areia solta. Arfo quando chego ao topo. sigo colado à vedação que está cortada, Passo para o outro lado à procura de melhor caminho.


Provavelmente não deveria passar por aqui, para isso existem cercas, mas não tenho qualquer intenção maléfica, apenas quero continuar caminho.

Na Escócia existe o Right to roam, lei que permite que qualquer pessoa passe em qualquer parte, desde que não estrague e em todo o lado devia ser assim.


Enfim de pouco me vale a transgressão: a esforço, porque a densa vegetação por vezes tapa o caminho, se alguma vez o houve, lá consigo dobrar o vértice da cerca, apenas para descobrir que o trilho é perigoso demais para o tentar sozinho. Resta-me voltar para trás, o que faço agora por o caminho que já percorri. Consulto o Wikilok para ver como outros fizeram antes de mim e descubro que  seguiram pela praia, (a mesma que tinha visto há algum tempo atrás)  coisa que me resigno s fazer, consciente de que perdera quase uma hora nesta escusada aventura.

Desço então até ao areal e 300 metros à frente volto a subir pela arriba, na praia naturista do meco, ainda absolutamente deserta àquela hora,  ajudado pelas cordas que alguém, sabiamente, lá instalou. 

Retomo o carreiro que bordeja a cerca do parque de campismo (era dele a cerca, apercebo-me então) e  prossigo a bom ritmo, agora que o chão está bem compactado e firme. no final do carreiro está a porta do parque e a estrada de alcatrão que desce para o estacionamento da praia das bicas.

Paro para manutenção, embora não haja sombra alguma para me proteger do sol que agora começa a aquecer: descalço-me para tirar a areia dos sapatos; bebo um bom gole de água, besunto-me na pele descoberta com uma boa dose de fator 50 e como uma barrita. Faço também uma chamada para casa para dar conta que "so far, so good"


O caminho agora é muito melhor. o chão é duro e a areia bem compactada, sigo a bom passo até encontrar nova garganta e, desta vez, a coisa fia um pouco mais fino, porque se bem que haja passagem, as paredes da garganta são quase a pique. 

Com muito cuidado e com a preciosa ajuda dos bastões (sem eles provavelmente não teria conseguido), lá vou descendo a encosta pelo carreiro até à linha de água, agora seca, que desagua,  na Praia da Pipa.


A subida, do outro lado, se bem que íngreme, é bem mais segura e fácil de suplantar e, a arfar, lá chego de novo ao topo da arriba, onde aproveito para sentir o afago fresco do vento que agora se faz sentir e que felizmente sopra da melhor das direções possíveis, de norte para sul, como se de propósito me quisesse empurrar pelo caminho fora.

O dia está agora claro, límpido, sorvo-o com o vento. Ainda não consigo ver a ponta do Cabo Espichel daqui, mas sei que devo estra mais ou menos a meio da jornada.



De repente, de um ponto mais alto, vislumbro finalmente a silhueta do Santuário, lá ao fundo.


Praia da Foz. Aqui começa o Parque Natural da serra da Arrábida. aproveito para mais uma pequena paragem para descanso e para sacudir o pó, porque na descida, um pé mal colocado na gravilha solta, fez-me perder a compostura e deslizar alguns largos centímetros sobre  os bolsos de trás das calças...


O Santuário do Cabo apercebe-se agora francamente, apesar das nuvens que sobre ele ainda pairam. um pouco mais à frente encontro os primeiros sinais de marcação das pequenas rotas que aqui existem e que eu também já percorri, há uns anos. 

O passeio é agora mais exigente: há subidas, descidas, caminhos estreitos e danificados entre a vegetação. Mais uma vez bendigo os bastões que me ajudam a tudo passar sem outra dificuldade que o arfar dos pulmões e um bater de coração mais acelerado que, com paragens, tento de quando em vez aplacar.



Chego ao miradouro da Pedra da Mua: admiro, como se da primeira vez se tratasse, as pegadas dos dinossauros que por aqui passaram há milhões de anos, com a ajuda de uns pequenos binóculos. Também eu parecerei um dinossauro, a julgar pela cara de uma turista que se surpreende de me ver, quando se julgava só.


Cumprimento-a, como que a provar que um dinossauro também pode ser bem-educado, e percorro os poucos metros que me levam ao miradouro dos Lagosteiros onde quero novamente olhar as lajes com os outros trilhos dos dinossauros.... onde estão os binóculos?

A pequena bolsa que trago à cintura está vazia. volto atrás, percorro o caminho que fiz uma e outra vez e nada, resigno-me, mas ainda assim quero tentar só mais uma vez, e em bora hora o faço, porque lá descubro os binóculos entre as pedras por onde antes tinha passado. 



Estou perto do fim; sigo o estradão que circunda a arriba no acesso à praia dos Lagosteiros. Paro encostado à sombra que me proporciona  a casa da água no fim do aqueduto agora recuperado, já bem próximo do santuário. Como sabe bem o vento na camisa encharcada e como melhor sabem as amoras que por aqui encontro, já maduras e algumas delas bem gordas. 

Dirijo-me à igreja do santuário. Está aberta. Uma senhora à porta avisa-me que não se pode tirar fotografias.

É bonita a igreja, com o teto coberto de uma pintura tromp-l'oeil que a prolonga no sentido do céu que os crentes procuram (eu procuro-o por outras razões, mas não posso deixar de admirar a beleza do exercício artístico).






Vou até ao outro lado, para o pé da ermida da memória... o vento é forte, como sempre, tão forte que me custa a manter a estabilidade de que necessito para fazer uma ou duas fotografias.

Volto para o lado de cá e aproveito a sombra das colunas do santuário para me sentar e comer a sandes que levara, enquanto espero pelo sinal da boleia que me levará até à  praia do Meco, de novo, para recuperar o carro e seguir para casa.

14,82 km, diz o telemóvel, 4h51 minutos de tempo total e 3h25 de tempo ativo, com uma média de andamento 4,3 km/h... nada mau, acho, para um andarilho intermitente, como eu.

está na hora de voltar a casa....e de voltar a olhar o mapa, que este já está!

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