quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Um conto de natal

Só, de novo, no quarto da velha pensão, recolheu a carteira no bolso de dentro do grande casaco vermelho, pendurado com cuidado nas costas da única cadeira.

Nu, enrolou a toalha branca em torno da profissional barriga e saiu para o corredor que atravessou até à casa de banho, não sem antes se assegurar que a porta do quarto ficara bem fechada.

Lavou-se, com esmero e sabão, liso, arredondado, polido de muitas mãos, muitas peles.

Secou-se, breve, e voltou a enrolar-se na branca, mas agora húmida, toalha. 

Saiu para o corredor que atravessou até ao quarto, deixando a porta da casa de banho entreaberta, sinal de que outros a poderiam utilizar.

Leve, acalmado de corpo e instinto, tornou a vestir-se: cuecas; camisola interior; calças e camisa.

Olhou-se ao espelho e penteou os ondulados cabelos brancos e a comprida barba.

Calçou as botas pretas, de meio cano e, a custo, enfiou-se de novo no grande casaco vermelho; Abotoou-o e cintou-o com o aperto da reluzente fivela prateada.

Ajeitou, sobre o nariz, os óculos de lentes redondas, sem graduação, só vidro, “era uma vez”.

Desceu as escadas do segundo andar da velha pensão até ao rés-do-chão.

Deitou o olhar para trás do balcão de madeira envernizada.

Imersa na revista mundana, a rececionista ignorou-o.

Empurrou o velho batente azul celeste e saiu para a rua.

Sorveu, ávido, o ar frio do fim da tarde.

Dirigiu-se a pé, avenida abaixo, para o centro comercial.

As crianças sentam-se agora ao seu colo e os pais tiram fotografias.

Encostada ao candeeiro no topo da rua, enfeitado com o branco néon de uma pluma de estrelas, ajeita a saia curta sobre as coxas cruas, na esperança que mais alguém pare.

Lembra o tempo em que invejava as crianças que, na praça, entre as vendedeiras de flores, se sentavam ao colo do pai natal, sorrindo para os pais que lhes tiravam fotografias.

A Christmas Carol

Alone again in the room of the old boarding house, he put the wallet back in the inner pocket of the large red jacket, carefully resting on the back of the only existing chair.

Stark naked, he wrapped the white towel around the  belly, came out into the corridor,  assured himself with a twist of the knob that the room door was  properly closed and walked to the bathroom.

He washed himself up with a smooth and rounded soap bar, polished by many a hand, many a skin.

He quickly dried himself up and again wrapped himself up in the white and now humid towel.

He walked again along the corridor to his room, leaving the bathroom door slightly ajar, a sign that it was now available for others to use it.

Feeling lighter, body and mind soothed, he dressed himself up again: shorts; singlet; trousers and shirt.

He looked in the mirror and combed his wavy white hair and his long beard.

He put on the black wellingtons, and struggled to don the large red jacket.

He buttoned it up and belted it around his waist with its shiny silver buckle.

He put on his round clear lens glasses.

He climbed the stairs from the second floor of the old boarding house down to the ground floor.

He gazed across the hall to the back of the varnished wood counter.

Immersed in the mundane magazine, the receptionist ignored him.

He pushed the old celestial blue wooden door and came out into the street.

He gulped, avid, the cold dusky air.

He walked down the avenue to the shopping mall.

Children now seat on his lap, while their parents shoot photographs.

Leaning against the street lamp, adorned with the white neon of a trail of stars, she arranges the short skirt over her plump thighs, hoping that someone might stop and ask again.

She recalls the days when she envied the children in the square, amidst the flower sellers, seating on Santa’s lap, smiling while their parents snapped their  photographs.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015


Händel e Beethoven, o Messias e a 9ª, num mesmo ano... como se tudo começasse por “era uma vez….”

Aos poucos o pentagrama vai fazendo sentido; os símbolos sobre ele impressos, também.

Não, ainda não falo a língua, mas percebo-a agora muito melhor que há três anos, quando comecei. E é tão belo, ver como os sons se escrevem, e se partem, e se dividem, e sobem, e descem, e saltam, e aceleram e retardam… como em qualquer outra língua.

Händel e Beethoven, logo estes dois (que o Mozart também já foi) … só falta mesmo o outro, o eterno Bach.

            


Horas de dedicado trabalho para a recompensa de um aplauso que, desculpando-me as notas falhadas, as más entradas, as desafinadelas e todas as outras páginas do catálogo universal da fífia, me enche, por momentos, da maior das alegrias.

A minha voz, a dos outros, a melodia que se constrói no tear da harmonia; tudo só com a força que vem de dentro; do ar; que respiro e faz soar o  instrumento que me ecoa na garganta.

 Freude! Freude! Freude!


      


Händel and Beethoven, The Messiah and the 9th, all in the same one year… as if it all were to begin with “once upon a time…”


Step by step the pentagram is becoming clearer;  and so do the symbols therein.

No, I still don’t speak the language, but I understand it now much better than I did three years ago, when I started. And it is a thing of wonder, to see how sounds are written, and can be broken, and divided, and made to rise and go down, and jump, and accelerate and retard… as with any other language.

Händel and Beethoven, these two of all (Mozart is already on my list too)… there’s but one remaining: Bach, the eternal.

Hours of dedicated work for the retribution of a benign applause that forgives missed, out of pitch notes, failed entries and all my other forays into the universal catalogue of musical offenses, and fills me up momentarily with the most intense joy.

My voice, that of the others, the melody that is built in the loom of harmony; all this coming from deep within, upon air, the same air that I breathe and that resonates in the instrument echoing in my throat.


Freude! Freude! Freude!