terça-feira, 27 de fevereiro de 2018


Das Palavras

Parece cega a vidraça que me separa do dia sombrio, invernoso, deitado sobre os telhados e ruas lá fora. Cega porque lhe é indiferente, na absurda transparência do vidro, apenas maculada por pequenas nódoas de tempo exibidas na contraluz difusa, quase etérea, que vem dourar o tampo da mesa onde escrevo.
Sem tema.
É assim que começo tantas vezes, tantas vezes para não acabar. Só pelo exercício, que é de prazer também. E no entanto algo fica, sempre, como marca, como rasto, lento, pesaroso, por vezes, como se a escrita fosse caracol ou vagarosa infiltração e, noutras mais felizes, mas mais raras, ocasiões, em tropel de teclas que se confundem em palavras ortograficamente imperfeitas, mas grávidas de impecável semântica (ou pelo menos eu assim acho, que, como seu autor, é-me de direito a glória).
Volto à vidraça - agora menos incandescente que, lá fora, sempre lá fora, as nuvens se adensam escondendo um sol cobarde e tíbio – como varejeira enganada pela luz. De repente, a  metáfora não me parece ocasional. A história do homem confirma-o ou não tivesse a humanidade  sempre ondulado laboriosa e sonoramente, numa densa coreografia errática mas impecavelmente marcada, em busca da claridade visivelmente oculta pelas mais cristalinas  paredes.
Homens, varejeiras, estorninhos, formigas, abelhas, medusas, tudo eternos migrantes. Em ciclos que, por definição e constatação, se repetem, para deleite dos que amam o previsível.
Era uma vez.
Todas as estórias do mundo dormem nesta pequena frase. Afirmá-lo apenas reitera o que se acredita matéria de unânime consenso, só porque com ela invocamos o passado e as estórias não podem ser de futuro, mesmo que se afirmem de ficção vindoura. As teias que lhes dão corpo vivem apenas o ínfimo tempo da tinta que as fixa, ainda que esta seja imposta sobre putativo papel pela magia da eletrónica e da modernidade. E, numa feliz inversão, é, regra geral, na cor que a ausência dela produz, na luz que a gritante falta dela faz brilhar, que se tatuam as letras sobre a tela de uma folha  agora inexistente, alva como alva é a cor que todas as outras cores contém. Pretas sobre o branco migram as letras, as palavras, também elas como varejeiras ou estorninhos, ou, tão óbvia e simplesmente Homens.
Para se escreverem, as palavras provocam o mais aceso vómito. Não raras vezes deixam mal-estar, um sabor acre e metálico que só encontra par no aço frio e cortante da imaginação. Não raras vezes, são o precipitado de uma aturada filtragem que começa na exigência de um sentido e termina na libertação de uma finalidade. As palavras são erva, verde, húmida, fresca, que incessantemente ruminamos para lhes extrair a seiva que nos alimenta.  Usadas e exangues da essência, cuspimo-las sem pudor para a borda do passeio, não sem que antes nos asseguremos de que ninguém nos está a ver. E lá ficam até que a chuva ou um cão de perna alçada as lave de encontro ao bueiro, ou que alguma alma curiosa as recolha, as conforte e as ordene, para seu deleite pela escrita, para deleite dos outros, pela leitura, ambos os atos evocando a transitividade de um processo, também ele forjado de eterno contínuo, como contínuas são as migrações, dos Homens, das varejeiras, dos estorninhos,
das Palavras.