quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

10 de agosto

Embalse de Lanuza. Este o destino que tomamos após um pequeno almoço com um dia claro e a prometer-se quente, a entrar pela janela escancarada da sala.



Nâo é longe e seguimos sem pressa, desta vez sem voltar atrás, antes deixando-nos ir estrada fora, em direção a Escarilla. As sombras ainda são compridas e é impossível não parar aqui e ali para pôr a máquina fotográfica a uso, tantas são as vistas que queremos guardar.

Escarilla
 
O início do trilho que segue a margem poente da barragem fica logo ao inicio da vila, bem perto de um grande largo onde estaciono.




Após uma pequena subida, o trilho inicia a descida até à margem da grande lagoa e persegue-a até ao paredão a barragem, enquanto o grande pano de água esmeralda serve de espelho às impressionantes paisagens que se revelam para prazer e fruição dos caminhantes.


Peña Foratata e Embalse de Lanuza

Poucos, aqueles com que nos cruzamos. Tudo é calma e sossego. Até a brisa, que não corre, para recato das árvores, fonte de apreciada sombra, que o sol vai quente e o ar húmido.



A meio do lago, do outro lado fica Lanuza, ou a parte que resta dela, a nova, recuperada, que esta é uma povoação quase ao estilo da nossa aldeia da Luz. Parte da povoação original estará debaixo do manto verde da água. Ao lado da povoação um grande anfiteatro desce para um palco à borda de água. Leio mais tarde que aqui se fazem festivais de música. E que bom que deve ser, um fim de tarde, com o sol a recolher por detrás das montanhas envolto em banda sonora.


Lanuza


O trilho não podia estar mais cuidado: a espaços, bancos convidam à paragem, à contemplação, para aqueles que a isso são mais dados, porque para os outros há sempre as mesas para um piquenique entre amigos ou família.




Sem pressas, chegamos ao fim do trilho. Decidimos voltar para trás pelo mesmo caminho. Do outro lado da lagoa, o percurso faz-se pela estrada e, para além e mais longo, não me parece que tenha assim tanto interesse, sendo também totalmente exposto, sem vislumbre de sombra.



Um ou dois kayaks fendem agora a água e o ar com os gritos dos remadores que, em bem humorada disputa, se desafiam mutuamente.

Volto a fotografar a Peña Foratata, o grande pico que se ergue ao fundo do lago, agora que o sol já vai mais alto e que o azul polarizado do céu fica mais escuro e contrastado.

Já no parque de estacionamento tomamos o carro e percorrermos rápidos a pequena vila de Sallent de Galego, de trânsito difícil, pelo apertado das ruas acrescido de obras de manutenção nos pavimentos. Dirigimo-nos a Lanuza. Queremos ver a vila.

                                                                           Lanuza
                                 
Simpática, bem cuidada. Os edifícios, de corte antigo não escondem, no entanto,  a tenra idade, como se pode ver gravado a escopro por cima de algumas portas.

Peña Foratata


Não nos demoramos que ainda temos tempo para ir a Panticosa fazer outra caminhada, pequena, a do Mirador de Santa Maria.

A deslocação de carro é rápida e em pouco tempo começamos a ascensão para o miradouro. 

Estranhamente, o início do percurso, após uma pequena subida inicial, faz-se por uma descida, com alguma pedra solta. À medida quer vamos descendo, não podemos deixar de pensar que estamos a caminhar na direção errada, mas pouco depois o carreiro empina, para nunca mais largar.


Está calor… húmido… e a coisa piora assim que saímos da sombra para a inclemência de um sol que chispa na pedra e nas costas.

O último troço leva-nos por fim a subir até uma plataforma com corrimão de madeira sobre o teto de uma das abandonadas casamatas que aqui, na crista do monte, em tempos serviram de postos militares de observação.

A vista, desimpedida e larga, vale bem o esforço da subida. Pena é que a hora seja péssima com o sol a pique a queimar um horizonte que, de tão belo, não merece o deslavado e manso contraste que o forra, para quem olha de cá de cima do morro.

O caminho de descida faz-se pelo mesmo trajeto, só que mais rápido, claro.


Panticosa - Vista a partir do M irador de Santa Maria

Em Panticosa, compramos bebidas frescas e almoço, que comemos depois no conforto e fresco do apartamento.

A tarde é de passeio. Temos tanto para ver e tão pouco tempo… seguimos direitos  a Jaca, mas não há como ficar indiferente aos sinais das placas castanhas que nos indicam pontos de interesse...
Castelo de Larrés, leio e tomo a direita da rotunda. Poucos quilómetros depois, feitos em planura onde o cereal vivia agora na lembrança dourada dos caules cortados rente de ambos os lados da estrada, um pequeno povoado com duas torres que entendo depois serem o castelo e que albergam também um museu de desenho. Não pressinto vivalma e está tudo fechado... regressamos.

Castelo de Larrés

Jaca: à entrada, torna-se óbvio que esta é uma cidade de militares. Quarteis, vários, e  as muralhas de uma cidadela que se impõe sobre um relvado que mantém à distância o bulício do trânsito. Só temos tempo para visitar por fora. Procuramos o posto de turismo e, munidos da planta, “ligamos os pontos” de interesse que, afinal, não são assim tantos nem muito distantes um dos outros.

Jaca - A cidadela

Jaca

Temos de regressar. Procuramos a estrada por onde viemos e, como tantas vezes, perdemo-nos. Insisto… volto atrás … e perco-me de novo…por fim lá consigo retomar o caminho, mas não sem que antes percorra alguns dos bairros mais periféricos da cidade que não contava, de todo, visitar….

A estrada corre por um  largo vale de grandes campos cultivados, acompanhando o que parece a “cicatriz” de uma zona de falha tectónica, lembrando uma longa e direita espinha dorsal.

Viramos para Biescas e de novo o caminho que já conhecemos, também correndo por um vale, embora muito mais estreito e acidentado.

Biescas

Biescas parecia recomendar paragem. Não é hoje o melhor dia: há feira e carroceis, e barulho entrecortado com calor. Não nos demoramos mais que uma gelada cerveja.

A sombra já vai tomando conta de todo o vale. Ainda quero chegar a tempo de fotografar o dólmen de Santa Elena, construção megalítica facilmente acessível a partir do cruzamento da estrada. Alguns carros sem pessoas estão por ali estacionados. Caminhantes, seguramente, que são vários os percursos que por aqui passam. Nada se ouve que não os ruídos que nós próprios fazemos. Com tempo e calma monto o tripé e recolho meia dúzia de fotografias… a luz, sempre ela… quem me dera ficar por aqui uma semana para ter realmente tempo para gastar na procura das melhores horas, das melhores luzes, das melhores sombras…

Biescas - Dólmen de Santa Elena


Mas amanhã é já para outro lado, que as férias não duram sempre….

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

9 de agosto

Nevoeiro. Denso, cinzento, húmido. Cola-se ao corpo e ao carro, enquanto carregamos de novo a tralha de viajante no porta-bagagens.

Tínhamos pensado ontem que, se nos levantássemos cedo, ainda poderíamos fazer uma caminhada pela encosta do Pas de la Casa, até uma pequena lagoa que se avista da curva da estrada, mas não vai ser possível. Não se vê literalmente um boi, bem, digamos, uma vaca, porque sei que elas, como habitualmente por estes lados, não andam longe, que lhes ouço os chocalhos; mas também as simpáticas e pachorrentas ruminantes estão guardadas pela mortalha cinza que tudo abraça.

Partimos estrada acima até à estação de serviço. Devagar, com ainda maior atenção nas curvas, que a visibilidade  é quase nula e o piso está escorregadio.

Depois de abastecer, começa a descida e poucos quilómetros à frente saímos finalmente do nevoeiro, para um dia que se adivinha não tardar muito a limpar.

Paramos em Canillo. Quero ver a pequena igreja românica de Sant Joan de Caselles. É impossível não reparar nela, colada que está à estrada e tão cuidadas que estão as pedras erguidas no séc. XII. Pena que está fechada. Gostava de ter subido ao campanário. Pontos altos, por estes lados, são sempre garantia de vistas interessantes para quem gosta de andar com uma máquina fotográfica pendurada do ombro.

Canillo, Igreja Românica de Sant Joan de Caselles
Retomamos a estrada, a tirada é comprida, mais em tempo que em distância: muita curva nos espera pelo caminho e não queria chegar tarde, para aproveitar ainda a tarde, lá para os lados de Sandiniés, onde temos apartamento reservado.
 
A descida até Andorra a Velha é relativamente lenta. É domingo e está a ter lugar uma prova de ciclismo;  seguimos atrás de um pequeno pelotão que desce a estrada principal a  velocidade suficiente para não se querer pensar no que poderia suceder se…; do outro lado da estrada, outros valentes, esforçam-se no íngreme percurso de subida… seguimos pois a ritmo de pedal até que, numa rotunda, os nossos caminhos por fim se separam. Já posso carregar um pouco mais no acelerador e em pouco tempo chegamos ao posto de alfândega, que atravessamos sem outra demora que passar devagar pelos corredores onde alguns guardas fazem controlos a este ou aquele viajante.

São mais de 300 quilómetros que temos pela frente. Algures já em Espanha, a estrada larga entra montanha adentro e passa a contar apenas com duas vias.  À entrada de uma curva um enorme placard avisa: atenção 115 quilómetros de curvas… não sei se li bem… devem ser quinze, lemos mal, seguramente….

Nunca devemos menosprezar a nossa capacidade de  leitura, mesmo que de tabuletas na berma da estrada, que se leem em fração de segundo: passados os primeiros quinze quilómetros, muitos mais se lhes seguem e sim, são curvas umas atrás das outras, de tal forma que tornam o exercício de ultrapassagem um enorme problema. O que vale é  a compreensão de quem vai à frente, em passo mais lento, e se chega para a berma para dar passagem.

O mal é que quem guia não pode sequer distrair-se um momento para gozar dos soberbos panoramas que se desenrolam com cada curva que se contorna.

Por fim, um desvio e a possibilidade de paragem: “Sort.”, diz-nos alguém que passeia o cão pela estrada onde encostamos o carro.

Sort
É realmente uma sorte, penso eu, poder ter o prazer de fruir de tamanha vista: os cumes curvos de velhos e carecas da usura de muitos invernos, a espuma branca das nuvens, o verde tímido das encostas, e lá em baixo o rio e o recorte da cidade. Cena de bilhete postal, fotografia de turista, cliché, etc. é seguramente isso tudo, mas é também tudo o resto que cabe em palavras de sentido superlativo, tantas vezes gastas por uso abusivo.

Seguimos o rio.  Alguns quilómetros depois, uma povoação convida de novo à paragem. Há uma ponte, com ar medievo, e casas antigas e inusitados “tabuleiros” ao lado da estrada… lembram salinas … são salinas…Guerri de la Sal, chama-se a localidade. Fotografo rápido e anoto o nome para mais tarde procurar alguma informação.


Guerride la sal

Sei agora que o sal é explorado aqui desde o séc. VII, a partir de uma nascente de água salina, coisa sumamente estranha se pensarmos que estamos nos Pirenéus e que se bem que água seja coisa que por aqui não costuma faltar, costuma ser da outra que por aqui brota em tanta fonte e nascente de borda de estrada.

A estrada segue agora um desfiladeiro, paredes direitas de rocha dura, cortada à faca pelo tempo, parece, que nos corta também a respiração. Fico imensamente triste de não poder parar, tamanho o deslumbramento de quem nunca viu nada assim… quando a estrada, por fim, se abre o suficiente para encostar já as paredes se alargam e a oportunidade de uma boa fotografia fica decididamente para trás… é pena!

Estou cansado de guiar. Deve ser de tanta curva, quilómetro após quilómetro, localidade após localidade. Por fim chegamos ao destino: Sandiniés e um apartamento que depressa nos faz esquecer o alojamento de Pas de la Casa. Aqui tudo é novo, limpo, confortável, funcional e amplo.

Sandiniés é pouco mais que um aglomerado de casas velhas, muitas delas recuperadas para turismo de habitação, como é o caso do nosso apartamento. As ruas são estreitas e inclinadas e quase não há estacionamento, muito embora a 100 m da entrada do povoado haja sempre sítio para deixar o carro.
Instalamo-nos rapidamente e saímos que ainda há muito tempo para gozar o dia e tudo por aqui convida ao passeio, com montanhas, lagos, vales, encostas, povoados a incitar à descoberta e fruição.

panorâmica a partir de Sandiniés

Panticosa. É para lá que nos dirigimos e para o serviço de informação turística. Queremos saber de percursos pedestres. Dão-nos um mapa com uma razoável quantidade de opções em extensão e grau de dificuldade: perfeito!

Visitamos a vila. O enorme parque de estacionamento das pistas de ski não tem quase carros. Por estes dias são usadas por algumas pessoas que as descem em passeio após subirem ao topo no teleférico, que já não aceita mais passageiros na viagem de subida.

Amanhã há concerto na igreja, entrada livre, tomo nota.

Baños de Panticosa, diz a tabuleta que entendemos seguir por uma estrada que acompanha um pequeno curso de água no fundo de um vale. É impossível não deixarmos  de admirar a beleza da paisagem que nos acompanha, com pequenas cascatas descendo do topo da montanha, por entre bosques cerrados de coníferas.

De repente um grande lago: um íbon. Diz-me a wikipedia que este é um termo aragonês que designa um lago formado por degelo, na zona dos Pirinéus.

Íbon de los Baños de Panticosa

Ao lado da estrada a ruína de uma antiga estação de engarrafamento de águas minerais e um pouco mais à frente os edifícios da estância termal.

Paramos o carro e retiro, entusiasmado, a mochila e o tripé. Já vai ficando tarde, a luz, ou o que dela resta, porque todo o vale está já imerso em sombra, não é a melhor, mas há tanto para ver e fotografar.

Uma cascata desce para o lago. Fotografo sem parar. Ficava aqui umas boas horas. procuro composições que não incluam os (poucos) visitantes que, tal como eu, se admiram com a cascata e insistem em tirar todo o tipo de selfies e fotos de grupo.





Cascata nos Baños de panticosa

Fotografo também o lago, mas o contraste entre a sombra e o céu limpo é excessivo. Devia vir aqui noutra hora... mas sei que não virei mais... pelo menos desta vez. Quem sabe se algum dia... toda a imensa beleza dos Pirinéus  se me entranhou - a falta de melhor verbo, porque não conheço palavra que melhor descreva o estado de completa submissão em que me encontro - nestes poucos dias que levo de estar mais perto do céu. 

No regresso ainda paro para fotografar uma das muitas pequenas cascatas que aqui e ali se vêm na berma da estrada.


Cai a noite. 

Caio eu também na cama, quando chego ao apartamento, dobradiças doridas, das muitas horas a guiar, de acocorar para sacar mais uma fotografia, dos quilómetros de passeio que também já vamos acomodando nos músculos...

Vista sobre o Embalse de Bubal

E será por aqui que amanhã começaremos: uma boa caminhada, pela fresca, que o percurso promete.





quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

8 de agosto

O tempo mudou mesmo. O sol de ontem que emprestava brilho ao verde das encostas e ao intenso azul do imenso pano de fundo, salpicado aqui e ali pelo branco de uma nuvem, hoje teima em se não mostrar, a coberto de um mais ou menos espesso filtro cinzento, prenúncio de chuva, ou pelo menos da desconfortável patina húmida que a névoa deposita em tudo.

Por nós, até nem nos importamos muito. Não está calor e desde que não chova, são mesmo condições ideais para a caminhada, em particular para o passeio na montanha, a que iremos dedicar o dia, no Vale de Incles, designado “Refúgio e lagos de Cabana Sorda”,  feito de desnível acentuado (475 m) numa extensão relativamente curta – 2,5 km a que há que acrescentar mais 1,5 km, de estrada plana até ao desvio para o início do trilho. No total cerca de 8 km e 3, 5 -  4 horas de caminhada, por vezes bastante exigente.

Deixamos o carro e procuramos fonte para encher a garrafa de água, que nunca nos aventuraríamos montanha acima sem cura para a sede. Está tudo fechado aqui no pequeno aglomerado de casas que marca o início da estrada. Voltamos ao carro e retomamos a estrada principal um ou dois quilómetros abaixo, onde uma pequeno estabelecimento nos serve um apetecido café e onde podemos enfim comprar a água de que tanto necessitamos.

Agora já está tudo: mochilas às costas e bastões nas mãos, partidos estrada acima até ao depósito de água que marca o início do trilho.

Carretera de la Vall d'Incles vista da encosta

Os primeiros quinhentos metros de subida são feitos em campo aberto, acompanhando em parte uma pequena linha de água. Não posso deixar de notar as flores de algumas plantas  que me são totalmente desconhecidas, embora também encontre algumas, como as pequenas campânulas azuis que estou habituado a ver nos meus passeios em Portugal. Apesar de ser agosto, as plantas aqui devem florescer mais tarde, por isso ainda há outras cores que não o verde e o amarelo pardo a amenizar o passeio.


De repente a trilha leva-nos por um bosque com coníferas velhas, de troncos e raízes retorcidas. O silêncio, apenas quebrado pelo ruido ritmado dos nossos passos e pelo canto de uma ou outra ave; o ar, limpo, fresco, que nos entra pulmões e alma adentro; a paisagem, magnífica em todas as cambiantes - do prado ao bosque e aos topos nus e cinzentos das montanhas que daqui se avistam - tudo nos preenche de uma imenso e intenso contentamento, coisa estranha de definir, a pedir palavras francesas e itálicas… sim, é isso mesmo acho, é um profundo sentimento de joie de vivre  aquilo que nos toma, apesar do arfar do peito e do suor que nos escorre cabeça abaixo, que o caminho é, já o disse, exigente.

Não trouxe comigo aminha velha e sempre fiel lente macro nem, por muito que me custe, o objetivo do passeio me permite despender muito tempo acocorado à caça de insetos e flores, mas não resisto ao esvoaçar colorido de duas borboletas que me são estranhas e que, ainda assim, consigo fotografar sem desatar a rolar encosta abaixo….(mais tarde identifico-as como uma  Lycaena virgaurea e uma  Erebia, cuja espécie ainda não descobri).

Lycaena virgaurea
Erebia sp.
A meio da subida somos ultrapassados por um caminhante solitário, que segue encosta acima num ritmo muito mais apertado que o nosso, entre as árvores descubro inúmeras framboeseiras silvestres embora quase sem frutos. Pergunto a um csal que também connosco se cruza se ainda falta muito e ele responde-me que em distância não, mas que, em tempo, ainda temos pelo menos meia hora pela frente e puxada, avisa…

Saímos do bosque. De novo o caminho percorre vegetação baixa e pedra nua, estamos cansados, mas prosseguimos, os bastões são uma enorme ajuda. De repente o chão nivela-se um pouco e a subida já não é tão pronunciada. Uma pequena lagoa alimentada por uma fina cascata, abrigada entre as rochas, descobre-se à nossa frente, como recompensa pelo esforço. Descansamos um pouco, para ganhar folego e prosseguimos. Estamos perto. Já se consegue vislumbrar o teto da casa abrigo vizinha da lagoa que marca o fim do percurso.


Uns metros mais de subida em caminho de rocha, por vezes solta, e finalmente a Lagoa de Cabana Sorda surge à nossa frente. O caminho agora é plano. O prazer da chegada toma-nos por completo. Sorrimos, cansados mas contentes. Não precisamos dizer nada, ambos sabemos o que o outro sente.
Não posso deixar de pensar que também no dia anterior me sentia cansado de andar e, no entanto, o cansaço de hoje é daquele que nos retempera os músculos e a vontade, tão diferente do cansaço inconsequente de outro fim que o do esgotar por completo a paciência da tarde que passámos às voltas, nos centros comerciais e ruas formigantes de gente,  da velha Andorra.


Estany de Lagoa Sorda

Alguns rapazes estão acampados na margem da lagoa. A casa abrigo, para onde nos dirigimos, para pousar as mochilas e almoçar, também está ocupada por um grupo de jovens italianos que por aqui vão pernoitar.

O dia por aqui vai carregado de nuvens e faz fresco. Sabe bem o polar sobre o peito suado.
Mais à frente estão dois cavalos, tento aproximar-me para fotografar, mas apenas consigo dois disparos porque começa a chover.


Corro para o abrigo, onde nos sentamos  envoltos no cheiro a lume que impregna as paredes. As sandes sabem a manjar de rei, que o corpo estava já a pedir.

Esperamos que a chuva passe, ou que pelo menos abrande; temos quase duas horas de descida pela frente e como grande parte do caminho é em campo aberto, a chuva seria certamente dispensável.
Parou! Colocamos as mochilas  às costas e partimos de regresso pelo mesmo caminho, embora me pareça que para nascente do abrigo há outro trilho que deverá conduzir também ao fundo do vale. Cruzamo-nos com outros grupos de caminhantes, inclusive famílias com crianças, que ainda vão na subida. Começa de novo a pingar. Vestimos os impermeáveis e continuamos, na esperança de que a chuva se não intensifique. Olho para o fundo do vale, uma massa branca começa a subir encosta acima… chove com cada vez mais intensidade.


Estamos de novo na zona de bosque e por aqui a chuva não se sente com tanta força, porque as copas dos pinheiros abrigam-nos.

De repente um trovão… e logo outro, os clarões quase se não vêm, por que é dia e apesar da névoa há muita luz. Chove agora copiosamente, e o trovão é só um, constante, rolando sobre si próprio e as encostas do vale, que os amplificam e ecoam. Começo a ficar preocupado: daqui a pouco estaremos a descoberto de novo, sem nada à nossa volta,  encharcados e agarrados a bastões metálicos…


Seguramente não é esta a melhor forma de enfrentar uma trovoada destas. Um grupo passa por nós a correr, visivelmente atemorizado pela trovoada. Penso no casal com que nos cruzámos há pouco e cujo filho se via não estar a ter prazer nenhum na subida que os pais o estavam a obrigar a fazer…. Com a trovoada, então, a criança deveria estar em pânico.


A sorte é que a trovoada está lá para o alto, para as cumeeiras, parece-me e embora não pare, talvez não desça o suficiente para nos colocar na zona de maior perigo. Continuamos a descida já na zona de prado o mais depressa que conseguimos. Estamos encharcados da cabeça aos pés. As pequenas linhas de água que há pouco eram filigrana montanha acima, são agora pequenos regatos, que temos de atravessar amiúde. Já não nos preocupamos, molharmo-nos mais do que já estamos é impossível.

Por fim chegamos à placa que marca o início (e o fim) do trilho. Numa estranha sincronia, a trovoada fenece e morre.


Falta-nos ainda 1,5 km até ao carro e volta a chover com mais força. Um pequeno café de um parque de campismo à beira da estrada parece imensamente acolhedor. Sabia-me bem uma cerveja. 

Entramos. Está quente, cá dentro, com uma salamandra a queimar lenha e vários outros caminhantes recolhidos da chuva. Peço duas cervejas e verifico, envergonhado, que estou a deixar uma poça de água frente ao balcão, no sítio onde me encontro. O simpático dono do café diz-nos para ficarmos um pouco, para nos secarmos; eu insisto em partir. Não termos roupa aqui para nos mudarmos e secar está fora de questão.

Chegamos ao carro pouco depois e partimos direitos ao apartamento e ao conforto de um banho quente amplificado por aquela que sempre considerei a melhor das refeições para os dias de passeio: basta sacudir o pacote para dentro de um litro de água fria, levantar fervura e deixar ferver em lume brando, mexendo sempre…: o abc da mais alta culinária, o simples e honesto prazer de uma boa e quente sopa instantânea.

Recompostos, saímos a passear por Pas de la Ccasa, que amanhã já partimos e o dia está tão escuro que não há muito mais para fazer…

Há dias que nos sabem bem, há dias que nos sabem muito bem e depois há dias assim!

Pas de la Casa

Soberbos!

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

7 de agosto

O sumo de laranja, fresco e doce, empurra a matinal torrada que mastigo com gosto. “Em Roma, sê romano”; atento à máxima que sempre me pareceu avisada, barrei o pão não com a habitual manteiga, mas antes, como por aqui se faz,  com uma fina camada  de tomate liquefeito, temperado depois com sal e pimenta e adoçado com um fio de azeite.

Talvez por pouca torra no pão; talvez por excesso de líquido na tomatada, o miolo, que queria crocante, ensopou-se do vermelho fruto, a ponto de levar à boca algo que se aparentaria mais em textura com uma açorda que com uma matutina tosta.

Erro de principiante, certamente. A meu lado, no buffet, observo alguém que me ilustra numa seguramente menos húmida variação do costume: torrada pousada sobre o pires, corta um tomate ao meio e esfrega uma metade na crosta do pão, que, depois, humedece igualmente com um fio de azeite.

Já comi o suficiente, por isso experimentar esta sensata variante do Pa amb tomàquet (como por aqui se chama a coisa) ficará para outro dia. Por agora é tempo de um último café, de carregar o carro e tomar a estrada.

Lérida fica rapidamente para trás, que as estradas são excelentes, e o dia está bom para conduzir: mais fresco ainda que solarengo.

Não são muitos os quilómetros que temos pela frente até ao destino final: Pas de la Casa, na extremidade oriental de Andorra.

Tomamos a estrada por caminhos já conhecidos até passar Balaguer. Terras de cultivo, à esquerda e à direita num extenso planalto, antecâmara plana das montanhas que ao fundo se insinuam contra céu, istmo da península e da minha insaciável vontade de percorrer caminho e ver; Pirenéus, nome magnificamente sonoro. Não é preciso sequer saber que, como tantos outros nomes de sonoridade quasi-sinfónica, o devemos ao Grego, língua que, paradoxalmente,  pelo menos na versão moderna, me soa despudoradamente agreste, desconforme, sibilante.

Castelo de Montsonis, 2 km, diz a tabuleta…. Não há que resistir; de resto, a tirada hoje nem é muito grande. Mais que um castelo, Montsonis é uma pequena vila, recuperada para turismo, ainda é cedo e pouco há para ver, que a igreja está fechada e apenas dois turistas tomas o pequeno almoço no restaurante que serve também de sala de venda de alguns produtos locais. Demoramo-nos o suficiente para um café e uma passagem pela casa de banho e voltamos ao caminho, em direção às montanhas que se insinuam no horizonte.

Castelod e Montsonis

Castelo de Montsonis















                                               


Algures à frente a estrada desce de novo em direção ao rio, a nova represa, a barragem de
Rialb, que abandonamos por alturas de Oliana onde tomamos o caminho para a ermida de St. Andreu, erguida no topo de um morro e onde deparo com curiosos pórticos de metal decorados com dragões e flores. Subo à ermida e galgo o topo do morro. Do outro lado do vale,  outra ermida, erguida ainda mais alto, sobressai na perda cinzenta e nua da montanha. É a ermida de  Mare de Deu de Castell-Llebre, leio mais tarde.



St. Andreu de Oliana

Afinal a barragem de há pouco é parte de um sistema de barragens, porque aqui, em Oliana, o rio também está represado numa estreita garganta que ambas as ermidas parecem guardar como permanentes sentinelas.

Mare de Deu de Castell-Llebre
Seguimos em frente sem parar. Combinamos fazê-lo mais à frente, em Seu de Urgel, para almoçar e  passear pela vila, última povoação de relevo antes de se entrar em Andorra, e cujo Bispo é, desde a idade média, um dos seus dois co-príncipes administradores, cargo que partilha com o presidente da República Francesa, numa confusa e inesperada mistura entre regimes, por definição, antagónicos.
Seo de Urgel é um mimo. Uma curta visita, pela hora do calor, permit concluir que por aqui se vive bem, sem pobreza nem indigência, que o turismo muito deve ajudar. O turismo, os desportos de inverno, e a canoagem, em particular o kayak, que tem um campeonato do mundo aqui aprazado, para muito em breve.  .


Seu de Urgel

As ruas cuidadas, com comércio vivo, e as curiosas pinturas das casas com cores fortes e contrastadas, tudo transpira bem-estar…

Seu de Urgel


Uma exposição de pintura de paisagens ocupa a sala de exposições de St Domenech. Outro achado. Hiperrealismo em 2 e 3 dimensões. Paisagens simples, ruas, portas, janelas, tudo com um domínio superior da cor e da composição. Como é bom ser assim surpreendido.

O artista está presente. Desenha em caderno, para passar o tempo, que os visitantes não são muitos, pelo menos por agora. Cumprimento-o e agradeço a oportunidade de privar com tão deslumbrante arte. Peço-lhe um autógrafo num postal da exposição que simpaticamente me deu e que vou emoldurar, para a parede das melhores lembranças.

Andorra. Centros comerciais e um posto de alfândega do outro lado da rua, avisam que já chegámos.

Passamos Andorra a velha e a estrada sobe, sobre sempre; Fazemos contas aos quilómetros que jà andámoss, continuamos a subir, passamos mais povoações toda oferecendo o mesmo:  lojas e hotéis, que o ski não se dá bem com o verde do verão. Desconfiamos que estamos perdidos. Perguntamos num posto de gasolina  e esclarecem-nos que o nosso destino Pas de la Casa fica a quilómetros apenas; depois da curva, já se deve ver.

De repente uma manada de cavalos atravessa-se numa das muitas curvas da estrada. Não posso parar e fico com inveja do motard que, esse sim, parou e faz festas a um cavalo ternamente enrolado no seu pescoço.

O empregado da bomba tinha razão, Pas de la Casa fica já ali, numa saída pela direita da estrada principal. Os apartamentos, onde iremos ficar 3 noites também.

Pas de la Casa

O primeiro contacto com o apartamento não é dos mais animadores. Embora limpo, tudo nele - da tinta das paredes aos utensílios velhos e gastos de cozinha - transpira logística de viagem de finalistas….mas está um dia ótimo e não será  o azul pardacento da parede ou a fechadura com sinais de ter um dia sido arrombada, ou até mesmo a janela que teima em não fechar, que nos vai indispor contra a vida (que não contra  a rececionista a quem comunico o meu desconforto pela janela com o trinco avariado e que me promete que ainda no dia alguém a arranjaria… - aposto que, ainda hoje,  vento e  dia entram por ela, sem pedir qualquer tipo de licença….).

Não nos demoramos no apartamento mais do que o necessário para nos instalarmos. Queremos aproveitar o tempo e dar um pulo a Andorra la Vella. Faz mais de 20 anos que lá estivemos e apenas tenho a memória de uma espelunca infecta, que se oferecia como parque de campismo e que não passava de um lote de estacionamento com um bloco sanitário pouco recomendável, e de uma rua íngreme cheia de lojas de um lado e de outro. Pelo que vi no caminho para aqui, de então para cá, as coisas mudaram em volume, que não em substância… a ver vamos.

Tomamos a longa descida que nos leva do Pas de la casa a Andorra la Vella e, despreocupado agora que já não procuro caminho, absorvo a deslumbrante paisagem que se oferece de ambos os lado da estrada, com montanhas e vales espraiados por uma infindável paleta de verdes, entrecortada pelos castanhos, vermelhos e cinzentos das casas das várias localidades que se desenvolveram ancoradas em estâncias de ski, por estes dias irrevogavelmente vazias dos amantes da neve.


 


Andorra é o que era, já o disse, mas agora em grau superlativo. Por toda o lado lojas e centros comerciais anunciam consumo, em particular álcool, tabaco, mas também medicamentos, tecnologia… marcas, marcas, marcas….

Não obstante, tirando cigarros e copos, produtos de alto tributo acrescentado, nada há que me pareça substancialmente mais barato do que, por estes dias, se oferece a  qualquer consumidor com acesso a um computador e uma ligação à internet.

Duas horas depois de chegará cidade, estamos exaustos. Apesar do esforço, e do tempo perdido calcorreando andares de centros comerciais e ruas e ruas de lojas, não comprámos nada. Não há nada de novo ou suficientemente interessante para justificar a compra. Ficamo-nos pelo bom álcool e por uma cuvette de bifes para o jantar, que já vão sendo horas de voltar para casa e descansar as pernas, que nos sentimos mais cansados que se tivéssemos feito uma boa caminhada pelas montanhas, objetivo que guardamos para o dia que aí vem!


De volta a casa, os cavalos já não estão na estrada, mas ainda se veem um pouco mais acima da encosta. A tarde vai longa e, de França, vêm nuvens que engolem já uma boa parte do vale a seguir a Pas de la Casa…. o tempo vai mudar….


Pas de la Casa