segunda-feira, 31 de outubro de 2016


Mudou a hora, o dia, a noite, a luz, e, logo, até mesmo o mês.

Mas os flamingos não, nem tampouco os corvos marinhos!







Guincho (Chroicochephalus ridibundus)

Olhar a mais comum das aves é exercício bastante para invejar a desconcertante beleza do voo submerso na grandeza transparente do ar; do tal ar "onde tudo ondeia, onde tudo existe".

Eu, que não voo, olho os guinchos na calma de uma manhã solta de preocupações e pressas e, pés bem assentes no chão, procuro também a imponderabilidade. Não a do corpo, reservada a quem tem asas, antes a dos sentidos, que nos é fácil, se também nós aceitarmos que "há metafísica bastante em não pensar em nada"!



quinta-feira, 27 de outubro de 2016


Dylan
They’re selling postcards of the hanging

Nada! Desolação?, sim,  talvez,.. antes crueza, dura, zenital, mesmo genital, como a luz que espalha, em verso com tanto de cuidado quanto de inesperado, feito musica, como se as palavras não o fossem já.
Milhões de palavras, ouvidas, copiadas, ditas, cantadas, lidas. Deixadas ao ar, replicam-se; expulsam pólen; alastram e eclodem com o estrondo da descoberta para alguns e todos, pois são sempre novas.

They’re painting the passports Brown

Não dispensam audição, intuição ou reflexão, por muito que valham apenas por elas, estas palavras: lembram histórias, recusam outras, fermentam novas.

Horas a fio a ouvir é como horas a fio a ler. No exercício sensorial, consome-se a mesma matéria - a palavra – e o efeito é o mesmo: como droga, a palavra vicia, e nós procuramos, exigimos mais, sempre mais.

The beauty parlor is filled with sailors

É da palavra que se fazem as religiões também. Perigosas são pois as palavras se deixadas ao arbítrio semântico de quem as força numa direção que escolhe intento próprio, interesseiro e interessado.
Não que as palavras não possam Servir. Não há como o impedir e, na verdade, só por si são manifesto de vontade. É a leitura que deve procurar o exercício da nudez, de uma virgindade incógnita, dormente nos meandros mais sinuosos do córtex.

The circus is in town

Liberdade. Talvez a maior palavra, se nos esquecermos de “tudo”, a única que a pode incluir. De dizer, de pensar, de agir, de não querer saber, de mudar, de não mudar e de ser ou não ser… tudo, afinal, reflexo da condição de individuo e criador.
Nas linhas que se desdobram roucas, nasaladas, ao ritmo de um compasso que se serve ao poema, o que é muito diferente do seu contrário, talvez a memória; talvez a linha que nos une sem que nos conheçamos; seguramente a admiração, muita, a minha obviamente!

Here comes the blind commissioner

Parte da história, da minha história, da que eu estudei, da que eu vi, da que eu fiz, tem esta poesia por banda sonora. Como se de um gigante documentário se tratasse em que à irrelevância da trama se sobrepusesse a genialidade da poesia, que, para mim, tem o cheiro das ilhas, dos gira-discos portáteis de plástico, dos cigarros de palha de milho, do azul escuro do mar, do dia em morreu o arcaico ditador e de tantas outras memórias que se entremeiam com a descoberta púbere do essencial (qual ele seja, a seu dado momento).

They’ve got him in a trance

Mostrar ao outros é uma forma de admirar, de disseminar, talvez a mais sincera porque tal como acontece com as aves é involuntária, expelida que é como resíduo involuntário de anterior fruição.
Talvez por isso os dedos ainda exibam calos e algumas harmónicas languesçam numa qualquer gaveta  lá por casa, tomadas pela memória e pela ferrugem.

Mostrar a nós próprios é admirar ainda mais, não pela irrazoabilidade da emulação pura, para sempre condenada à vacuidade  – o que é ímpar sempre assim será -  mas pelo prazer da assimilação, da apropriação sensorial das palavras, dos significados, da sua própria articulação, da justaposição de palavra e acorde, do imenso prazer de fazer, ainda que utilizando a matéria que é de outros.

É por isso que os músicos tocam o que não escreveram sem qualquer tipo de vergonha ou remorso e tantas vezes com a extraordinária satisfação do gosto, (deles e nosso)!

Bach – Sim!
Handel – Sim!
Mozart – Sim!
Beethoven – Sim!
Brahms – Sim!

One hand is tied to the tight-rope walker

Mas é preciso estar para lá da fruição harmónica quando a palavra importa ao exercício.
Não, não falamos todos a(s) mesma(s) língua(s). Mas não é isso que me impede de ouvir um canto estranho de um país de geografia difusa e de gostar ou não. A língua, as palavras têm som, diria mesmo timbre, pois há palavras mais ou menos graves; mais ou menos suaves; mais ou menos metálicas; mais ou menos percutidas; mais ou menos sopradas; em suma: há palavras mais ou menos!

Por baixo do brilho quase soporífero da harmonia, no entanto, está a crueza nua do significado, as entranhas, o latejar visceral e primevo do texto.

Dylan – Sim!
Cohen – Sim!
Brel – Sim!
Ferré – Sim!
Afonso – Sim!
 
The other is in his pants

Este é um dos artifícios da poesia e dos poetas: insinuarem-se nos leitores e ouvidores pela essencialidade do que lhes é património. Só assim se explica que nos possamos deslumbrar com aquilo que não fizemos e que, medíocres ou remediados, nunca conseguiremos fazer.
Porque há génio.

Diremos, para consolo próprio, que cada um é bom em algo, à sua maneira; diremos depois que o génio também tem muito trabalho lá escondido; diremos ainda que os que se destacam são produto de conjugações (condicionais, conjunturais, astrais …) irrepetíveis, únicas….acasos de sorte.
E depois, ainda assim, há génio, ponto final

 And the riot squad they're restless

Era na radio. Era na raio que tocava, que se ouvia a literatura da música, quando a radio era verdadeiramente auditório e não escaparate comercial do imenso economato que nos serve de lebensraum, onde a própria música é antes de mais, e tal como o resto – oh suprema igualdade – produto e não alimento.
“Dois pontos”; Jaime Fernandes.[1] A telescola da literatura auditiva. 33 rpm, a tocar , de um lado, primeiro; do outro, depois, sem interrupções, como quando se lê, se folheia. O respeito pelo leitor, pelo autor, pela obra.

De um dia para o outro; de um álbum para outro, como promenade dos Quadros de Mussorgsky, a voz calma, timbrada, conhecedora, fazedora de uma intimidade minha, que não compartia com ninguém. A radio, aquela radio tocava só para mim. Esse o meu segredo (e o de tantos outros que da mesma forma a sentiam).

They need somewhere to go

As palavras, sós, tecem o sentido, independente de uma trama que se não descortina, se é que pura e simplesmente existe. Diletante surrealismo, divergente realidade, modelo maior de uma literatura que segue entre o facto e o nada. E se inventa, sempre, e retoma, e volta a dar e que, por tudo isso é inqualificável senão como verbo, senão como Literatura.

Há muitos anos que é assim, contínuo, sustentado, o que é mais assombroso ainda. O incorruptível teste do tempo vivido em vida, como só acontece a muito poucos, os verdadeiramente melhores de entre nós, género Homo espécie sapiens.

 As Lady and I look out tonight

Alguns outros poderiam ganhar o prémio também, que as palavras são matéria universal. Nem sei bem como se consegue inventariar uma lista, porque “todas as literaturas do mundo” é uma ordem de grandeza astrofísica e não há astrocríticos nem astroacadémicos que cheguem para compor um rol minimamente exaustivo.
Não há, mas hoje também me não importa.

Porque houve um prémio que eu, que li, que ouvi, que reli, que disse, que cantei, também quis dar

Aqui, da minha pequena mas larga janela, cortinas abertas à inquieta briza que sopra

From Desolation Row.

 




[1] Ele há coisas... Acabo de abrir a homepage da TSF, hoje, na data em que escrevo esta parte do texto e a notícia de cabeçalho é: Morreu Jaime Fernandes, provedor do telespetador da RTP.  Ergo Dois Pontos na tristeza de um ponto final.