quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

 



Vem lá ao fundo, a chuva. Pode-se vê-la avançar, a coberto do enorme cinzento que, lenta mas percetivelmente, vai cobrindo o horizonte e tornando-o cada vez mais curto. Sente-se também no ar: o vento que se intensifica, o frio que se torna mais nítido e que morde as orelhas por baixo do gorro… não há escape aqui, à beira de água, em Alcochete. Até onde a vista alcança, um magro e fustigado pinheiro é a única árvore que se avista, mas nem vale a pena procurar a proteção da sua copa, tão descomposta e rala se afirma, para além de estar relativamente longe de onde nos encontramos.


Um primeiro pingo, frio, denso, logo seguido de um segundo e de tantos, tantos outros que mais parece que, de repente, nos cruzámos com alguém que, inadvertidamente, nos atirou um balde de água para cima. Chuva densa, oblíqua, como a sentia o Pessoa em pessoa.

Resignados, seguimos pelo areal com as roupas saturadas de cor, e o corpo saturado de água, no lado oferecido ao vento.


Arenaria interpres - Rola-do-mar

Sinto-me garoto, de novo. Rompendo determinado pela chuva adentro, sou um novo capitão Scott, na conquista do pólo. Nada me pode parar e cada grosso pingo que me cai na cara é como uma condecoração para a minha superior valentia.  Avanço na certeza de que irei conseguir; o destino está perto, muito embora a espessa cortina de chuva me lo esconda da vista. Sigo em frente com a cabeça dobrada para a frente, para me proteger. A areia que se prende aos sapatos pesa nos pés e na passada. Deve ser assim com a neve. O vento amaina, a chuva também, o horizonte clareia.

Sou já eu, outra vez.

Protegido por roupa grossa, consegui safar-me relativamente incólume da chuvada. O impermeável, esse utilizei-o para embrulhar a máquina fotográfica e a longa objetiva que lhe tinha montado, na esperança de me cruzar com algumas aves, no passeio. À falta delas, fotografo a ponte que me lembra um longo esqueleto de algum animal primevo, quiçá afetado por nefanda escoliose.


Espero pela minha companhia que, estoicamente, aguentou com brio a chuvada (embora não creia que aquela história do capitão Scott lhe tenha passado pela cabeça…)

O sol e o vento acompanham-nos no final da caminhada e, aos poucos, vão-nos secando a roupa no corpo.

Indiferentes às flutuações atmosféricas, as rolas-do-mar e os pilritos continuam o seu alegre mariscar na linha de água.


Olho para o outro lado do rio, para Lisboa. Um espesso manto cinzento tapa outra vez os contornos da cidade. Sei que vem na nossa direção. Agora já não importa. Resguardados, na vila, procuramos, em fim de manhã, o conforto de uma chávena de café.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

 


Não é infinito, o oceano,  embora possa daqui parecer, tal como não é infinito o dia que se alonga preguiçoso e quente quanto baste para encher o paredão de passeantes, corredores, ciclistas e outras almas, senão perdidas pelo menos irrequietas, como a minha, procurando tirar o melhor partido do sol e da liberdade a prazo que mais um dia de semi-confinamento impõe.

Tem sido assim nos últimos quatro dias, embora só hoje o sol brilhe quente e seco, de verdade.

Não me queixo. Tento aproveitar o melhor que posso o tempo, da forma mais segura que se pode: na companhia de mim mesmo passeio na mata ou à beira-mar. Não me custa, gosto de me ocupar com coisas que faço sozinho e em que a presença de outros pode até ser perturbadora: fotografar, ler, escrever, ou tão só, olhar os outros e as coisas. Compreendo a necessidade de minorar o mais possível a possibilidade de transmissão de um vírus democrático, igualitário, universal e gratuito.

Como é estranha a variação semântica. (nem sei, sequer, se será assim que se diz). Na verdade, a perplexidade que me inquieta  transcende a relação básica significante-significado: qualidades que entendemos  boas, positivas, têm neste tão insofismável quanto invisível bicho a valoração mais negativa que possamos imaginar…

O mundo ao contrário!...

Volto a olhar para a linha do horizonte. Na verdade, o universo é uma imensa ampulheta. Se virarmos a terra ao contrário o mar e o céu continuarão a escorregar um para o outro.  E esta certeza deixa-me mais tranquilo.

Arrumo as minhas coisas, volto a pôr a máscara e atravesso de novo o paredão, cheio dos mesmos de há pouco, que são agora outros.








quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 


Calma, temos tempo”, parece dizer a gralha empoleirada no ramo do pinheiro debruado a verde pelas agulhas que o enfeitam e que, como sempre, se recusam a mudar de cor, apesar de estarmos já bem para lá do equinócio.

Não há amarelos, castanhos, laranjas, vermelhos, por aqui. Não há oportunidades de fotografia de calendário, como aquelas das florestas do Canadá, ou de outras latitudes e altitudes, onde predominam as grandes árvores de folha caduca, como para nos lembrar que aqui ainda é  o grande e baixo Sul. Agora ou no pino do verão, em maio ou no frio do inverno, é sempre verde a manta que esconde um solo pobre, arenoso, permeável à água e ao peso das botas, o que torna o andar duro, pesaroso, marcado pelo arfar da minha respiração acelerada, como acelerado é o passo que tento manter, ao longo do comprido corta-fogo que me leva ao bordo da arriba.

"Aqui" significa, no entanto, acima da minha cabeça, ao nível das copas redondas de onde a gralha me olha. Cá por baixo, por entre o mato rasteiro que, também verde, contribui para a sensação de longo contínuo que os olhos involuntariamente absorvem, há outras cores a despontar.

Delicadas, as elegantes flores do açafrão, fechadas por falta do estímulo da luz de um sol que durante todo o dia teimou em não romper por entre de nuvens  tombam sob o peso de gotas de água que se lhes colam. Água do nevoeiro, primeiro, e da chuva fina que ainda há pouco caía.


Frágeis, esbatem o lilás das pétalas contra o amarelo pardo da areia de onde irrompem mais altas que as finas folhas que as acompanham e escodem o segredo do delirante laranja dos não menos frágeis estiletes.

Tão diferentes estão agora de quando se abrem  ao calor do sol e se exibem orgulhosas, pontuando com a alegria da cor o chão triste em que pulsam.


Este é um tempo de fragilidade, parece. A orquídea selvagem que mais tarde floresce no nosso país também por aqui desponta por estes dias e, se os passos por perto dela nos levarem,  é bem possível que a ignoremos se não olharmos para o solo com olhos de quem procura, tão pequena e dócil é, facilmente camuflada por um tufo de erva mais alto, pela rama baixa de um qualquer arbusto ou pelo coberto de folhas e ramos secos que esconde grande parte do que não é caminho marcado ou pisado.

Spiranthes spyralis, chamam-lhe os manuais. Para os ingleses são as tranças da senhora do outono e é fácil de ver porquê: as pequenas flores brancas tecem uma magnífica espiral ao longo do fino caule, lembrando uma delicada e ornamentada trança.


Leio que no máximo dos seus aos 35 centímetros (as que vi sempre me pareceram mais pequenas), o “enroscado” caule poder apresentar mais de uma dezena  de flores, o que diz bem do respetivo tamanho.

Frágeis são também os cogumelos que começam igualmente a despontar, múltiplos em tamanhos e cores e formas. Com as chuvas que agora se anunciam, mais virão e esse será também um tempo de procura e descoberta que faço meu, pelo simples prazer de me irmanar com a terra, agora que ainda sou mais que a parte dela que um dia, forçosamente, serei. É sempre bom conhecermos bem as relações que nos serão próximas….

Cansada da espera a gralha voou do ramo e, alegre no grasnar, juntou-se a outras duas que fendem o ar denso e húmido com o bater compassado das asas em direção a outra árvore, talvez, levadas pela vontade gregária que as acumula em pequenos bandos.

Forço uma vez mais o passo, o sol vai cada vez mais baixo e não tarda estará a passar a linha do horizonte. Sei-o não porque o veja, que as nuvens não deixam, mas porque beneficio do conhecimento exato do tempo e da irrevogabilidade do movimentos celestes que outros me dão pela simples consulta de uma aplicação no meu telefone portátil.

Como tudo é simples hoje, como tudo nos está próximo se o quisermos saber e procurar. E esta deve também ser uma procura constante. Crítica, informada tanto quanto possível, para não resvalarmos na facilidade que nos empurra, quase sem darmos por isso, para a crença em oposição à ciência, para a suposição em oposição à constatação, para o  boato em oposição à verdade.

Como é calmo aqui. Agora que é a hora. Nada se move. Até o ar parece parado. Sei que o sol já se pôs. E espero. Pode ser que alguma coisa aconteça.

De repente uma gralha (será a mesma?) voa na minha direção. Passa por cima de mim;  volto a cabeça e sigo-a com o olhar.

E tudo muda. No espaço de segundos, o cinzento do céu tinge-se numa inesperada paleta de rastos amarelos, laranjas, lilases, azuis.

À pressa, procuro um sítio por entre a vegetação onde consiga colocar o tripé de frente para o mar, de frente para o infinito pano de fogo e luz para onde a gralha voou.

Uma foto. É tudo o que consigo. Tão rápido como começou o espetáculo terminou; o denso pano cinzento voltou a cair e, com ele, a consciência de que começa a fazer frio. É hora de voltar para casa.




Arrumo as minhas coisas, levanto a cabeça.

Num ramo de pinheiro debruado a verde pelas agulhas que o enfeitam e que, como sempre, recusam mudar de cor, apesar de estarmos já bem para lá do equinócio, uma gralha olha fixamente para mim….

 

terça-feira, 27 de outubro de 2020

 

Mais de 40 anos depois, voltamos a encontrar-nos. Como está professor?


Sei que já aqui disse mal de si por o ter encontrado num tempo em que não o soube procurar… é verdade que o senhor também não tornava as coisas fáceis, com aquela mania de nos matraquear constantemente com os clássicos gregos e latinos, quando eu e muitos outros não tínhamos sequer idade para entender o conceito de clássicos próximos, quanto mais os da antiguidade…. 

Foi inopinadamente que por aqui passei. Trouxe-me cá o acaso, apenas para pernoita. Encontrá-lo é pois mais saboroso ainda, quase como uma “aparição”…. (desculpe armar-me em engraçadinho, mas estava a pedi-las, aí de cima do plinto, com essa pose e sobretudo que tão bem lhe ficam, porque delas me recordo).

Tenho pena de não visitar a sua casa. Não por coscuvilhice, claro, mas antes porque também estou numa altura em que memória e nostalgia se enrolam, até na garganta, por vezes….Quiçá, numa próxima. A D. Isabel, a simpática senhora que me alugou a casa onde fiquei é que me lembrou que estava na sua terra e que não tinham mais que passar 100 metros para lá do pelourinho, para lhe descobrir a morada.

Está fresco, Professor! E eu estou menos agasalhado que o senhor! Nunca fomos próximos, mas pedi-lhe uns autógrafos, lembra-se? Era o meu pai que os queria nuns livros… que, lamentavelmente, com as trocas e as andanças da vida, já se perderam de rasto!

Gostava mesmo de entrar em sua casa, perscrutar-lhe as prateleiras… aquilo deve ser só Homeros e Ésquilos e quejandos…

Continuo olimpicamente ignorante em relação a esses seus diletos autores, mas sei que agora, pelo menos, procuraria ouvir para lá da minha ignorância.

Enfim, não foi uma oportunidade perdida, porque como éramos, nem oportunidade seria: o senhor já então a falar do alto de um plinto, ainda que este não fosse mais que o estrado de madeira frente ao quadro, e eu cá em baixo, na carteira, a pensar que lá fora, no recreio, o meu latim era muito melhor que o seu….

Enfim... olhe, a verdade é que gostei verdadeiramente de o ver! 

Boa noite e até uma próxima!


Casa de Virgílio Ferreira, em Melo, Gouveia.


 

Claro que é a cor. Claro que são os céus revoltos e cheios de nuvens em infinitas matizes de cinzento e branco e preto (eu sei que não estou a ser muito preciso mas há brancos e pretos que, para mim, são tudo menos cinzentos). Claro que é o brilho da água nas folhas. Claro que é a água. Claro que é tudo isto, o outono.



Tomo a estrada na Serra e parto à descoberta, confortável no aconchego de roupas que me escondem a pele da brisa que, com a subida do caminho, sobe também ela a vento, límpido, claro, benfazejo.

Aqui e ali, já as bétulas e os carvalhos começaram a alaranjar, alastrando em contraponto com o verde dos castanheiros que oferecem ao chão ouriços repletos de doçura bem resguardada (como sói acontecer com os mais preciosos tesouros) pelas aguçadas pontas da miríade de espinhos que os adornam.

Paro para fotografar.  Sem outra pressa que a de apanhar a luz que se esconde na nuvem,  a intermitente calma que impede as folhas de tremer, o fluir da água que corre ainda pouca mas mesmo assim já alimentada pelas primeiras chuvas que as semanas anteriores trouxeram.


Fotografar é, tal como a viagem uma constante procura. Talvez seja isso que mais me atrai em ambas, já que a descoberta não deixa de lhe ser um adequado corolário. Mesmo em sítios que repetidamente visitamos, a viagem é sempre nova, como o é a descoberta. E aqui, na Serra, é uma quase primeira vez, porque os dedos das duas mãos não chegam para lembrar a última vez que corri estas estradas e senti o sopro forte do vento, tal como por estes dias às portas do castelo de Linhares da Beira ou a beleza calma dos bosques nas Penhas da Saúde ou a magnifica desolação das pedras nuas a caminho da Torre.


Claro que é tudo isto o outono, num tempo estranho, desconfortável, atravessado por um medo que se não vê de outra forma que quando se olha para o única coisa que nos deveria dar alento: as pessoas.

Tementes de um inimigo que se não vê, escondemo-nos uns dos outros, viramo-nos as costas, afastamo-nos, isolam-nos. E ainda assim, como escrevi há dias a alguém, tudo isto não é forçosamente pior, não fora a causa que o determina. De facto, expurgada de muito do mundano e do supérfluo que, sem queremos, se lhe cola, a existência pode ser mais atenta, mais arguta, mais...essencial.


Como essenciais são as imagens que a paisagem me oferece e eu tento guardar em combinações infinitas de 0s e 1s, dizem-me. A primeira vez que vim à Serra, tinha há pouco minha primeira máquina de 35mm minimamente boa (Yashika electro 35), e começava a descobrir a virtude gradual do preto e branco em filmes que, como tantos aprendizes de feiticeiro, revelava depois em casa, entre a escuridão da despensa e o lavatório da casa de banho.



Hoje tudo é tão mais fácil. Mal se carrega no botão do disparador, a imagem aparece no écran nas costas da máquina, como por magia, com toda a informação que nela está contida. Tão fácil que nos esquecemos, tantas vezes, do que mais importa: olhar para ver e não apenas para olhar.

 




segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 



I

Um pôr do sol como nenhum outro, como são sempre os pores do sol, leva-me de novo ao balcão onde, por alguns momentos, partilho a vista com alguém mais interessado em fotografar-se numa orgasmática e contorcida Selfie (de pronto enviada pelo éter à custa de um frenético dedilhar no écran do telemóvel).

Olhar fixado no  visor, sei pelo barulho dos pneus a raspar na gravilha que estou agora só.  Melhor assim: não que a companhia me incomodasse, mas há algo de egoisticamente saboroso em presenciar semelhante espetáculo sozinho.


Vagarosamente, ao ritmo da descida do enorme círculo imensamente brilhante, o ar e tudo o que nele habita, ganha cores que apesar de serem as mesmas de sempre com que se pintam os mais belos pores do sol, são uma vez mais novas e fascinantes.



II 

Sentado em frente do teclado, lembrando o dia que passou, procuro uma razão para poder escrever algo mais que possa ser motivo para aqui expor as imagens que tirei. Não consigo. Nem preciso: o pôr do sol, clássico dos clássicos,  por certo não necessita que dele se diga o que é ou o que deixa de ser; o que evoca ou faz esquecer; o que tem ou o que tira.



III

Talvez a lua…..




sexta-feira, 25 de setembro de 2020



 Arqueologia dos homens e das máquinas, a que me é dada a ver aqui, no Lousal, perto de Grândola.


Meticulosamente resguardadas e mantidos, velhos e possantes engenhos geradores ocupam o edifício da central que, em tempos não muito distantes,  produziu a energia e o ar comprimido que alimentaram as minas e o que lá se fez. A seu lado, descubro o centro clínico onde, fico a saber, para além das chapas de Raios X que tantas vezes ditaram más notícias para os corpos doridos e puídos dos homens que laboriosamente, a força de braços e dinamite, arrancavam a pirite à rocha, as suas mulheres e recém-nascidos filhos podiam beneficiar de cuidados modernos de maternidade.

Tudo envolto numa atmosfera acética, branca, que nos faz sentir dentro de um documentário histórico, afinal, o que na verdade se pretende com a preservação da memória das coisas e dos homens.

   

Detenho-me nas legendas dos expositores e deixo-me tocar pelo élan futurista que a frieza das máquinas e o calor do berço que aqui, paredes-meias, convivem, evoca. Afinal há arte na engenharia, na medicina, na sociologia, num estado de algum sincretismo que só a nós nos cabe decifrar e fruir.

Cá fora, por estar pressionado pelo tempo, ignoro a chamada de um outro espaço museológico - interativo e moderno, dizem-me - e tomo o caminho do que realmente me interessa:

Cores; de terras múltiplas, como se alguém usasse o chão por paleta, para pintar uma paisagem que se escreve a cheiro e indústria.



Como habitualmente, nestes locais, a ruína ganha uma densidade plástica que se sobrepõe às arestas nuas do tijolo partido; à borbulhagem ácida da ferrugem; ao calmo amontoar da decrepitude.


Não mais se houve o rodar das roldanas que levavam os mineiros ao fundo escuro do poço; não mais se veem  os vagões de minério a circular sobre os carris paralelos; não paira mais  no ar o espetro da silicose…agora é só… belo e decadente, como se os dois adjetivos se pudessem fundir num par de inusitado contraste.





quinta-feira, 24 de setembro de 2020




A bruma sobe rápida pelo recorte alcantilado que, por aqui, deita a terra ao mar. Ainda agora se via tudo, apesar do sol não ter por enquanto nascido e, de repente, um fumo branco, sem cheiro nem combustão, tudo esconde.

Melhor: quase tudo. Até mesmo o círculo de luz que, implacável, ascende agora sem que, desta vez, não o possamos olhar de frente, tamanha a contumaz arrogância do seu brilho!

Não obstante, aqui e ali, onde o etéreo vapor ainda não chegou, adivinham-se cores e coisas, como se  alguém soubesse que o sítio não me é familiar e me não quisesse privar de referências, da segurança de saber por onde voltar..

Mais que a ausência de horizonte, no entanto, é a ausência de som que me retém a atenção. Nada. Nem as gaivotas, nem as gralhas, nem os pombos, que sei também escondidos nas falésias que não vejo.

Cheguei aqui à procura do prazer da luz que por vezes doura a cores indecifráveis, mais douradas que ouros inventados, hipotéticas nuvens. Ilusão rapidamente destruída: até onde os olhos alcançam, o céu fundia-se com o mar num plano contínuo, semeando uma  quase monocromia desanimadora… banal (sei bem que  incorro em crime de soberba por adjetivar o que será sempre um mistério – a existência e o facto de a poder constatar – mas o facto de ser parte interessada e participante, dá-me essa prerrogativa).

E, no entanto, sinto-me imensamente feliz, porque até no nevoeiro há a promessa de uma desconcertante beleza, soubesse eu captá-la.




  

segunda-feira, 7 de setembro de 2020


No chão piso o amarelo dourado da palha que já foi planta e agora é lembrança que o verão continua, mesmo quando caminhamos decididos para o equinócio e que os dias deviam começar a mostrar alguma clemência para todos os que, como eu, têm para o estio capacidade limitada (e já há muito ultrapassada).

Nas estações, como na vida, irritam-me os extremos pelo que têm de irrevogável, de eternamente conflitante com a ideia de procura, da tentativa e erro, de descoberta empírica, enfim de… deslumbramento!




Não obstante, se encarados de forma circular, os extremos não existem e é assim que  os acomodo para meu conforto e descanso cerebral, na certeza que algures, nos 360 graus da nossa eterna rotação, o chão pardo e seco que hoje piso há de uma vez mais ganhar outras cores, abençoado pelo verniz vital da chuva que irá cair.

Até lá, resta-me procurar nas manchas de verde que, ainda assim, aqui e ali, subsistem, seja porque milénios de evolução e adaptação ao solos e clima assim o permitem, seja porque milhares de metros cúbicos de água da rede de rega camarária as teimam em dedicadamente aspergir.



Não que o pardo e a palha, não tenham os seus defensores também, como me lembram os gafanhotos que me saltam dos pés ou as formigas que laboriosas tecem carreiros, enfileiradas com carregos a lembrar um exército de disciplinados estivadores. Mas eu, neste inescapável desafio cromático, eu, um indefectível defensor e irrevogável  fã do azul, prefiro decididamente o verde ou não fosse ele a cor de tudo o que é perene….


 

segunda-feira, 24 de agosto de 2020



 

Fecho os olhos para os forçar a procurar no escuro. Por trás de mim,  as luzes que descem a estrada que leva ao topo do morro onde assenta a velha vila a isso me obrigam. Quero ver o que apenas se pressente… uma mancha, a mácula que o leite materno  da deusa enganada deixou no firmamento entre os insondáveis e incontáveis espaços e objetos siderais.

 Como se fosse um alpinista da luz, procuro aclimatar-me, pois.

Porque eu quero usar a cadeira. 

Foi seguramente por isso que lá a puseram, embora suspeito que o não soubessem: a esta hora estás sempre vazia, o que é sumamente estranho, pois que a vista, agora sim, é incomparável. Por isso, estranho a ausência de apaixonados casais espalmados um contra o outro para o deleite de mais uma inolvidável selfi para partilhar “depressa, depressa” nos indispensáveis e hipermodernos feice ou insta (ai tantos láiques, amor…); dos pais apontando a dedo às crianças  que a terra e o nosso sistema solar também fazem parte desta galáxia; dos despreocupados turistas que a toda a hora, enquanto o sol dura (e, mais ainda, enquanto se põe) aqui param para ver a vista “oh comme c’est magnifique, outstanding, wunderbar ….”

Desta vez nem as ovelhas que de manhã ouço balir enquanto placidamente  pastam pelos socalcos que levam ao miradouro onde me encontro agitam chocalho, e ainda é cedo para o canto do galo.

Ah, como é belo o silêncio que só o marulhar do vento nas folhas preenche!

Ah, Como é belo o silêncio do firmamento que só a ferida da luz das estrelas preenche!

Ah, Como é belo!

Mas para ver, é preciso fechar os olhos primeiro. E aproveitar a chamada de uma simples cadeira vazia!

domingo, 26 de julho de 2020




O Cometa 




Encostado ao paredão de grossas lajes de xisto, ofereço o corpo a um vento que, embora quente, acaba por trazer algum conforto, quanto mais não seja por nele se diluir a lembrança dos bem mais de 40 graus com que a tarde, uma vez mais, causticou árvores, pássaros e pedras.

Quarto crescente, diz-me a lua que lentamente baixa sobre a planície axadrezada de olivais, searas já cerceadas e esparsas filas de luzes, quais marchas de estáticos pirilampos, anunciando no escuro, que aos poucos  se insinua, os locais onde brancas casas de paredes largas e portadas cerradas resguardaram os homens da inclemente canícula.



Aqui e ali desponta uma luz no infinito pano de cena que cobre o horizonte. Suspeito que esta seja a hora em que os anjos se assomam ou se assumem e puxam da tabaqueira e das mortalhas para o cigarrito com que embalam a noite, com mais um dia de trabalho pelas costas  naquela espécie de carreira de proteção civil a que alguns os creem dedicados, ou em maquinações de cupido que outros lhes reconhecem.  Os anjos são muitos, dizem; tantos quantos as piriscas que se vão acendendo no escuro que agora tudo envolve; tantos quantas as estrelas (e é nestas que acredito!)




Há mais estrelas no céu que grãos de areia em todas as praias da terra!

Como não lembrar Carl Sagan olhando para o rendilhado de luz que apenas  as luzes modernas da  vila medieva conseguem tapar, lá ao fundo, no topo do cabeço.



São celestes e corpos, os corpos celestes! Imensos na diversidade e inqualificável dificuldade de compreensão. A mim servem-me  apenas para lembrar a minha absoluta infimidade e o meu contínuo trânsito, até um dia no futuro, em que, como qualquer corpo celeste, tenha também o meu ocaso….(um ocaso sério, dir-se-á, mas inevitável!)

Tudo no universo é exagero, à nossa escala: distâncias, massas, dimensões, propriedades. Tudo é sumamente complexo, mas infinitamente belo. E infinitamente secreto, para os homens como eu que olham o céu e veem apenas o que os olhos deixam (e, confesso, a limitada capacidade de entendimento permite).



Melhor metáfora que o monólito de Kubrick não há para este estado de coisas. No fundo, há sempre uma enorme pedra que nos impede de saber, embora alguns, os nossos melhores, fustiguem e continuamente desbastem as suas arestas … tanto que se avançou desde Platão; Copérnico;  Galileu; Einstein; Higgs.



Eu contento-me com maravilhar-me.

E um cometa, sim é um corpo celeste; mas vê-lo lá ao fundo, na pantalha do planetário mais real que se pode imaginar, no meio de estrelas,  planetas, e asteroides que fulgem por frações de segundo,  é  uma maravilha!