Hoje vou descer a avenida; vou descer muitas avenidas.
Vou e vou abrir os braços ao ar que me afaga como corpo.
Vou e vou cheirar o perfume doce dos cravos.
Vou e vou dizer-me que sorte tive, livre da má sorte de outros.
Vou e vou descer o caminho de terra batida que leva ao bairro de lata.
Vou e vou descer a rua do necrotério, onde as lápides dizem que os mortos morreram pela pátria.
Vou e vou descer ao Terreiro do Paço e ver o filho único, impúbere, vestir tosco a farda do pai, para ser condecorado “a título póstumo, por atos de bravura no campo de batalha".
Vou e vou ver o filho único, impúbere, com a cruz de guerra ao peito, descer o caminho de terra batida que leva ao bairro de lata.
Vou e vou olhar para o lado para não ver o cego que num velho acordeão teima automático uma eterna melopeia: “um tostãozinho não faz falta a ninguém!”
Vou e vou ver os meus avós desenraizados pela busca de dignidade que teceram a pulso e privação.
Vou e vou descer a vereda que leva ao bosque onde amei pela primeira vez.
Vou e vou passar à frente de uma escola pública onde, generosos, os professores me deram as letras que agora junto, enquanto desço a avenida.
Vou e vou saber que no caminho de terra batida que leva ao bairro de lata, as crianças também passam alegres a caminho da escola pública.
Vou e vou lembrar que a avenida é longa, muito longa e que, apesar de tudo, são menos hoje os caminhos de terra batida que levam ao bairro de lata.
Vou e não vou ver esbirros, gorilas, bufos.
Vou e vou passar no hospital onde dedicados salva-vidas começam finalmente a ter tempo para também descerem as suas avenidas.
Vou e vou passar por mulheres, minhas iguais de direitos.
Vou e vou saber que não me cabe a mim, nem a ninguém que não os próprios, decidir sobre o corpo de outrem.
Vou e vou ficar contente por saber que o meu país de emigrantes é um país com imigrantes.
Vou e vou-me lembrar dos que foram antes para que eu pudesse hoje descer a avenida.
Vou e vou descer a avenida sem sair de casa, como me apetece.