domingo, 25 de abril de 2021

Hoje vou descer a avenida; vou descer muitas avenidas.

Vou  e vou abrir os braços ao ar que me afaga como corpo.

Vou e vou cheirar o perfume doce dos cravos.

Vou e vou dizer-me que sorte tive, livre da má sorte de outros.

Vou e vou descer o caminho de terra batida que leva ao bairro de lata.

Vou e vou descer a rua do necrotério, onde as lápides dizem que os mortos morreram pela pátria.

Vou e vou descer ao Terreiro do Paço e ver o filho único, impúbere, vestir tosco a farda do pai, para ser condecorado “a título póstumo, por atos de bravura no campo de batalha".

Vou e vou ver o filho único, impúbere, com  a cruz de guerra ao peito, descer o caminho de terra batida que leva ao bairro de lata.

Vou e vou olhar para o lado para não ver o cego que  num velho acordeão teima automático uma eterna melopeia: “um tostãozinho não faz falta a ninguém!”

Vou e vou ver os meus avós desenraizados pela busca de dignidade que teceram a pulso e privação.

Vou e vou descer a vereda que leva ao bosque onde amei pela primeira vez.

Vou e vou passar à frente de uma escola pública onde, generosos, os professores me deram as letras que agora junto, enquanto desço a avenida.

Vou  e vou saber que no caminho de terra batida que leva ao bairro de lata, as crianças também passam alegres a caminho da escola pública.

Vou e vou lembrar que a avenida é longa, muito longa e que, apesar de tudo, são menos hoje os caminhos de terra batida que levam ao bairro de lata.

Vou e não vou ver esbirros, gorilas, bufos.

Vou e vou passar no hospital onde dedicados salva-vidas começam finalmente a ter tempo para também descerem as suas avenidas.

Vou e vou passar por mulheres, minhas iguais de direitos.

Vou e vou saber que não me cabe a mim, nem a ninguém que não os próprios, decidir sobre o corpo de outrem.

Vou e vou ficar contente por saber que o meu país de emigrantes é um país com imigrantes.

Vou e vou-me lembrar dos que foram antes para que eu pudesse hoje descer a avenida.

Vou e vou descer a avenida sem sair de casa, como me apetece.

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Acordo cedo e rumo a Palmela, à Serra do Louro, em busca de mais algumas orquídeas. Manhã ainda fria, calma e húmida e a certeza de um bom e frutuoso passeio, pois que depressa deparei com as primeiras e viçosas Ophrys do dia.

Inesperadamente, no meio das pedras do caminho uma simpática e meio letárgica salamandra de fogo, olha para mim, como que perguntando "Que fazes aqui?"

"Vim para te ver", respondo-lhe eu com sabor a meia verdade, porque ver é o que me move; as orquídeas não passam de mero pretexto....


Salamandra de fogo (Salamandra salamandra)

         

                                                                                          Erva Vespa - Ophrys lutea


Abelheira espelho - Ophrys speculum


Ophrys scolopax apiformis



Abelheira parda - Ophrys fusca

Lachnaia sp.



sexta-feira, 9 de abril de 2021


Serapias parviflora

Ophrys apifera

 












O tempo das orquídeas.

Bendita primavera que circula na razão inversa da maldita pandemia e se expressa e exibe em labelos ricamente coloridos, inequivocamente belos e não raras vezes suscitando sorrisos pelo antropomorfismo de alguns, que facilmente se deixam imaginar como representações de corpos ou caras.

A sorte de as encontrar perto de casa, num jardim a pouco mais de um ou dois minutos de distância só tem contraparte maior na ainda maior sorte de a relva ter sido cortada há alguns dias, antes dos caules que suportam os conjuntos florais terem emergido, deixando-os assim resguardados do fio cego da roçadora ,o que torna agora possível apreciá-las em toda a sua desconcertante singularidade.

É um bom dia, quando nos levantamos e a primeira coisa que fazemos para quebrar o jejum da noite é engolir um pedaço de pão e sair para fotografar tamanha beleza …



Serapias parviflora

Ophrys apifera