quarta-feira, 28 de maio de 2025

GR11-E9 (Parte 10) - Praia Grande - Cabo Carvoeiro

Etapa 4 - Praia da Areia Branca - Cabo Carvoeiro

23 de Maio de 2015 


Último dia. Supostamente o mais fácil destes quatro que irão acrescentar mais cerca de 100 km de costa ao meu mapa de passagem, guardado nas imagens que retenho na memória, nas moinhas que tenho nas pernas quando me levanto da cama e que passarão com o início do caminho, no incómodo que sinto no calcanhar, nas calças sujas de terra e sal, patinadas de castanho e branco sobre o azul original, na camisa suada, mas seca, que volto a vestir (só tenho roupa lavada para a viagem de regresso)...

Como passam depressa os dias... mesmo com as tardes paradas, solitárias, que acumulo nestes dias de caminho. Hoje regresso a casa, para o conforto do meu próprio casulo. Parece que foi ainda agora que dele saí e, no entanto, já se passaram 3 dias inteiros. 

Falta-me ainda chegar ali, ao fundo, àquela ponta que vislumbro lá longe, no horizonte,  do ponto mais alto da estrada que sai da Praia da Areia Branca a subir pela encosta, que tomei depois de percorrer os seiscentos metros que a afastavam do alojamento onde ficara no dia anterior.

Um pouco mais à frente deixo a estrada e volto à trilha na arriba. O caminho por aqui está marcado, o que torna tudo mais fácil.

Flores, muitas, tem sido uma constante, ou não estivéssemos na primavera. De repente, um bouquet especial, uma prenda, acho, já que desde o início tenho vindo a ver se vejo alguma e até agora só mesmo um pé quase seco, ontem, na berma da estrada ao chegar à Praia do Porto Novo: Orquídeas. grandes, viçosas, carregadas de flor. Uma colónia de Ophrys apífera, abelheiras. Lindas. Paro para as tentar fotografar, apesar do vento. 

Outro dos meus grandes prazeres destas caminhadas é mesmo este. Ver pequenas luzes do mundo natural que em geral nos passam despercebidas, como a cobra, o sardão, o coelho, as perdizes, as muitas outras aves, as pedras, as rochas, e todas as outras pequenas coisas que de uma forma ou de outra me captaram a atenção.

 O nosso mundo, o meu mundo, em particular,  aumenta com todos estes "nunca antes / raramente vistos". São condecorações, medalhas que posso mais tarde exibir, nem que seja só para mim... 

"E tu? alguma vez viste um sardão a sair das rochas? alguma vez tiveste na mão uma orquídea selvagem?" imagino-me eu, impante de orgulho, a demandar outro mortal, mais dado aos mistérios de um sofá especado frente a uma televisão....

Como dizia o Álvaro de Campos: 

óóóó — óóóóóóóóó — óóóóóóóóóóóóóóó

(O vento lá fora).

Mais um pequeno forte (outra curiosidade, para juntar à lista...).

Este vê-se que foi integralmente restaurado há bem pouco tempo. Aliás não percebo esta mania idiota de inaugurar coisas antes de estar tudo acabado e arrumado.

Já lá tem a plaqueta, da inauguração por S. Exª etc etc, No entanto, ainda tem redes e restos de obra em torno...

Consulto o telefone: Forte de Nossa Senhora dos Anjos de Paimogo, de 1674. Como indica a tabuleta ali colocada, foi recuperado com subvenções do Mecanismo Financeiro do Espaço Económico Europeu, havendo que, por tal, agradecer à Islândia, Noruega e Lichtenstein, países associados do mesmo. 

Procuro as indicações de caminho novamente. Não as encontro; nem tampouco a trilha que persigo no Wikilok, que se foi na vigorosa vegetação  que a obliterou por completo. 

Ando para trás e para a frente, por fim, testando com os bastões, não vá haver buracos, lá a encontro, apenas para me perder de novo um pouco mais à frente, barrado por um viçoso canavial... mais uma volta, um empurrão nas canas e lá encontro a trilha que procuro e me vai levar a uma descida mais difícil para uma praia: Vale de Pombas.

Sair dali só é possível com a escada metálica lá montada. Testo os degraus, não vão estar corroídos. Parecem sólidos. Com cuidado, subo. E, novamente, perco o caminho. Começo a ficar irritado com estes constantes contratempos. Mais ainda porque me parece muito difícil sair dali, por causa do canavial e das silvas.... 

Volto à saída da escada. Afinal a trilha está mesmo ali, à direita... eu tinha virado à esquerda....

Avanço agora facilmente por estrada de terra batida. Por fim vislumbro uma tabuleta: PR11 Cabo Carvoeiro 16 Km.

A estrada leva-me à localidade de S. Bernardino e à sua praia, depois de mais uma descida, desta vez por asfalto. Aproveito para tomar uma bica e comprar água, num pequeno café de que sou o único cliente.

 "Quanto é, por favor?"

 "doiseurosenoventa!"

E esta nem sorriso me mostrou....

A próxima paragem será na vila da Consolação. Até lá o caminho vai novamente pela arriba, mas em estrada de terra batida, aberta, larga; sem qualquer dificuldade e bem marcado. Perto da vila, noto lá em baixo, onde alguém pesca, mais uma curiosa formação geológica... rochas quebradas em perfeitos quadrados, como se se tratasse de uma tablete de chocolate... verdadeiramente curioso!

Leio no sítio internet da Câmara de Penchje: 

"As forças da Terra movimentaram toda esta região, partiram as várias camadas e formaram uma falha geológica, que podemos ver pelo desnível provocado nas rochas, junto ao paredão. Esses movimentos partiram também esta camada em formas quase quadradas. Com o tempo, a água do mar tem dissolvido este calcário, acentuando estas fraturas e moldando o atual aspeto em tablete."

Paro frente ao Forte da Consolação, mais um dos baluartes construídos aquando da Restauração. Este foi erguido entre 1641 e 45.

Já estou no Concelho de Peniche, mas ainda me falta uma mão cheia de quilómetros. Se a maré estivesse vazia, iria agora pela praia até à entrada da Cidade, calcorreando 3 quilómetros do areal que termina no extremo da famosa praia de supertubos, uma das mecas do surf cá do burgo.

Desço ao areal, para testar a consistência do piso na zona molhada... parece papa... nem pensar. volto a subir e retomo as indicações do GR 11, que me manda pela estrada. É mais longe, mas muito mais rápido, por certo.

Ainda assim, mais à frente não resisto a um corte por uma trilha nas dunas. O solo por baixo da areia parece suficientemente sólido para valer a pena tentar e, por uma vez, tenho sorte na escolha. 

Peniche. Por fim. O Posto de Turismo ainda está aberto. Passo já por lá para carimbar o meu caderno de viagem e avanço para o Cabo. Está quase.

Numa curva do caminho, vislumbro a cúpula vermelha do farol... aos poucos vai-se tornando maior, já vejo todo o edifício, mas ainda me falta um pedaço de estrada de terra batida até que por fim...

O farol... na luz zenital do meio do dia. A pior altura para aqui chegar, mas a que calhou... com esta luz tem metade da graça, não há sombras que construam relevos, o branco fere a vista o azul está deslavado...

Peço a uma senhora francesa que me tire uma fotografia. Repito-o mais à frente com um senhor chinês (de Hong-Kong, disse-me) já que a senhora francesa não provou ser grande artista do disparo.

Estou contente: cumpri o objetivo que me fixara. 

Mas por dentro não sinto nem explosões pirotécnicas, nem nenhuma música especialmente inspiradora, assim como o Nimrod das variações Enigma, do Elgar, enquanto alongo o olhar sobre o horizonte... nada disso... e é sempre assim nestas caminhadas... quando chego ao fim... acabou-se, apenas!

Se alguma coisa sinto, no entanto, é fome e cansaço.

Não há sombras, já o disse... a escadaria do restaurante meio em ruínas na ponta do cabo, pelo menos oferece sítio para encaixar o corpo e pousar a mochila, de onde saco a mágica lata de sardinha de conserva, o pão integral e os iogurtes que compõem o almejado pitéu.

A senhora francesa passa novamente por mim e deseja-me um bon apetit, que agradeço, reconhecido.

Falta-me ainda voltar para o centro de Peniche e daí para a central de camionagem, ou seja, mais uns quantos quilómetros, agora que está bastante calor , ainda que compensado pela ventania que por aqui se sente.

Em Peniche, encontro uma velha loja de brique-a-braque que tem postais. Excelente. compro um para escrever mais à frente. Procuro uma casa de banho pública no jardim, por onde antes tinha passado. Lá, mudo de roupa, que me encontrava absolutamente impróprio para viajar ao lado de alguém no autocarro.

Ainda tinha tempo para visitar o museu da Resistência. Mas as pernas não o iriam agradecer. Quero fazê-lo com a disponibilidade mental que o local e a memória de quem por lá passou exigem. Fica para a próxima.

Já compostinho, sento-me numa esplanada, frente a uma gelada cerveja sem álcool que vou beberricando enquanto escrevo o postal que depositarei no marco ao pé do turismo e que aqui colocarei, mal o receba.

Sigo para a estação de autocarros, esperam-me duas horas de... espera...e mais outra até Lisboa e outra ainda, pelo menos, até casa.

Do fundo do écran, avançam três pequenas letras que vão ganhando dimensão e clareza à medida que o vão enchendo

F I M 



Pena que o carimbo não seja legível, embora o Código Postal 2520 permita atestar o seu envio desde Peniche

__________________________________________________________________________________________





As arribas e as marcas de caminho à saída da Praia da Areia Branca


orquídeas (Ophrys apifera) e uma linda Ornithogalum



O Forte de Nossa Senhora dos Anjos de Paimogo...


... e a vista que permite, de cima do seu terraço.



A complicada praia de vale de Pombas, equipada com escada e queda de água :-)

O Caminho para S. Lourenço


S. Lourenço



A curiosa tablete da praia da Consolação



Forte da Consolação


Outros caminheiros como eu, guiados pelas marcações de percurso...


Peniche, o luzidio emblema da corporação dos Bombeiros 
e uma rendeira de bilros... ou não estivéssemos num porto de pesca... 
aqui como em Vila do Conde, ou em Camariñas...


Por fim o vermelho da cúpula do farol


que cresce a cada passo que dou...


... em direção ao Cabo Carvoeiro!





O regresso a Peniche...


... e eu que não consigo resistir a uma boa porta...

... ou a um edifício de traça modernista, por degradado que esteja!


terça-feira, 27 de maio de 2025

GR11-E9 (Parte 10) - Praia Grande - Cabo Carvoeiro

Etapa 3 - Praia de Santa Cruz - Praia da Areia Branca

22 de Maio de 2015




Um novo dia. As pernas estão doridas, o calcanhar direito incomodado. A vontade de prosseguir, essa, mantém-se inalterada, e é ela que me conduz de novo para a frente do mar, numa praia de Santa Cruz deserta.  O Posto de Turismo por que passo fica instalado num curioso edifício com uma azenha, um velho moinho de cereais que funcionou, leio, até à década de 50 do sec. XX. Dali sigo para baixo, passando em frente a uma alta torre, de traçado e implantação inesperados. Leio mais tarde que o projeto de um palácio a la D. Fernando desmoronou com o crash da bolsa de 29 e que, dele, apenas a torre restou... pois ainda por lá está e eu fotografo-a de vários ângulos enquanto me abeiro da areia. 

A Maré está baixa o suficiente para poder seguir pela areia um bom pedaço, até reganhar a arriba e o trilho que por ela prossegue. Tudo fácil, sem problemas de maior. Avanço a bom passo, passando por várias praias. Ao fundo o alto edifício do Hotel Golf Mar na Praia do Porto Novo. Há uns tempos andei por aqui com a minha mulher a fazer um passeio num passadiço sensaborão, que começa uns quilómetros acima, em Maceira.

Tenho pela frente uma boa subida, já que preciso de alcançar de novo o topo da arriba. Sobe e desce. Tem sido assim ao longo dos três dias que já levo de caminhada. As subidas, duras que possam ser, têm, regra geral a recompensa da vista  desimpedida, do olhar sobre o oceano e, se nos pudermos aproximar o suficiente do limite da falésia, da própria costa, a nossos pés. 

E há algo de revigorante em tudo isto, que vai para lá do simples facto de, uma vez lá acima chegados, podermos encher e vazar os pulmões sem contrações de diafragma para alavancar mais um passito encosta acima. A respiração passa de um ato funcional, conluiado com a função motora, destinado fundamentalmente a impulsionar o corpo pelo declive acima, para se tornar num ato sensorial, de alívio, porque eximido do esforço, e desfrute. Com cada golfada de ar que sorvemos vem o cheiro, a humidade, as múltiplas cores, as asas das gaivotas, a  força do vento, até o pó, ...tudo o que nos faz gostar de estar ali, especados, a olhar para uma linha fina, lá ao fundo, onde mar e céu se fundem num só azul.

Não obstante, é pela praia que prossigo de novo,  um pouco mais à frente, de novo tirando partido da maré bastante baixa, até atingir a praia de Valmitão, onde subo pela rampa que me levará à estrada de acesso ao cais do Porto das Barcas.

O que deve ter sido em tempos um complexo de hotel e restaurantes é agora uma feia construção degradada. Contudo, oferece sombra e a possibilidade de me sentar por baixo de um alpendre, frente a uma mesa de pedra. Mesmo a calhar: é hora de almoço, e um pouco de  descanso também não me cairá mal. 

As inevitáveis sandes, desta vez de queijo, e os não menos habituais iogurtes, mais uma bela pera rocha (afinal estamos no Oeste...) para rematar.

Ajeito a mochila de novo, retomo o caminho, subindo a estrada que parece prometer continuação por detrás do edifício..... nada disso.... só falésia, intransponível.... e agora, como saio daqui... tenho que voltar para trás?

já resignado a tal fim, dou os primeiros passos de retrocesso quando vislumbro uma escadaria lateral ao edifício... ah, sempre há saída... é por aqui... são bastantes degraus, mas o descanso do almoço ajuda a subi-los. De repente uma enorme brecha na escadaria... um pouco mais à frente já nem existem todos os degraus... com cuidado, muito, e a ajuda dos bastões  vou negociando a subida até que a escadaria parece inteira e sólida de novo, já perto do topo.

Cá em cima faz um vento muito forte, de que estava resguardado pelas paredes do edifício. Tão intenso é que me arranca o boné, para o depositar na arriba uns metros abaixo...

"Que chatice!" Não, não iria cair na loucura de tentar recuperar o boné empinando-me na arriba... "o melhor é esquecer, e tentar comprar um boné depois na praia da areia branca, ou onde houver."

Um espique seco de uma piteira, com alguns 3 metros de comprimento, pousado no chão, chama-me a atenção.... "só se..."

Pego no espique; seco; não pesa nada que me impeça de o manobrar. Tem um ou dois ramos na ponta que vêm mesmo a calhar. com cuidado, para não me desequilibrar com o peso do espique aponto-o na direção do meu boné e movimento-o até conseguir introduzir a ponta de um dos ramos no seu interior. Sucesso! Levanto o espique... e o vento atira-me outra vez o boné para o ar, com tanta sorte, desta vez, que vem cair dois metros à minha frente, no chão do estacionamento onde me encontro.

De imediato coloco-o na cabeça, depois de apertar um pouco a tira de velcro que lhe determina as dimensões.

O percurso que venho seguindo no Wikilok leva-me, de novo, a um caminho cortado e perdido no meio da vegetação.  Tenho de voltar para trás. Invento eu o meu próprio percurso, de novo.  De tal forma que, uns passos mais à frente, na Atalaia, volto a encontrar marcações do GR11... agora é só segui-las, que me hão-de conduzir de novo ao areal que termina onde a etapa também o fará.

São cerca de três quilómetros de areal e o primeiro percorro-o descalço, calças arregaçadas, pés deliciosamente encharcados... como sabe bem a frescura da água nos muito castigados pés. Não quero que me aconteça o que um dia me aconteceu na Fonte da Telha, quando andei tantos quilómetros descalço na areia que, literalmente, lixei as plantas dos pés, até ficar em carne viva. Volto a calçar-me tirando partido de uns afloramentos de rochas que me permitem lavar os pés nas poças e voltar a calçar as meias sem areia pelo meio.

Por fim o passadiço de acesso à ponte sobre o Rio Grande, que me dá entrada no núcleo urbano da Praia da Areia Branca.

Vou direito ao alojamento, mas antes de lá chegar, paro no parque de campismo para me assegurar da existência de uma caixa de correio e indagar da possibilidade de aquisição do meu habitual postal. 

Infelizmente, se bem que a existência de caixa de correio se confirmasse, não havia em toda a Praia, nem sequer na pousada da juventude, um único sítio com postais à venda. Talvez no posto de turismo...disseram-me... fui ver... só abre em junho...

Contra factos não há argumentos, diz-se... é apenas uma contrariedade menor, dir-se-á também, mas a verdade é que me custa fechar esta entrada neste meu despretensioso diário de viagem sem cá ter a imagem do postalito....

Falta só um dia... que é como quem diz: falta só mais um postal.

_________________________________________________




A Azenha e a Torre na Praia de Santa cruz


O areal por onde segui no início da caminhada até ganhar 




...esta falésia, de onde avistei...


...a pessoa com que me cruzei no caminho de acesso à praia.




Porto Novo


Porto das Barcas, a realidade de hoje



Porto das Barcas, o passado glorioso


Um curioso mural naïf


A vista do alto da escadaria. Uma destas piteiras
terá fornecido o espique que utilizei para salvar o meu boné. 



Mirador


A caminho da Praia da Peralta



A descida para a mesma


que bonita era o padrão desta rocha, composta
por pelo menos dois tipos de pedra 




Uma bonita rocha azul (argila?) também por aqui abundava









Por fim a chegada à Praia da Areia Branca  e o fim de mais um dia de caminhada


Uma bonita casa azul, como azul foi sempre o dia.