quinta-feira, 1 de maio de 2025

  Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...


14 de Abril de 2025 -  Samarcanda



 
Cá me vou para Samarcanda...

Não, não é o primeiro verso de uma qualquer canção ou poema, tampouco início de lenga lenga. embora o nome do lugar decididamente convoque eco de epopeia... vá-se lá saber porquê...

ou talvez não...

Samarcanda, cruzamento de civilizações, religiões, saberes... e camelos, pois que assim se transportava o resultado do feliz relacionamento de uma traça, que, coitada, nem sequer voa coisa que assim se chame, com a doce amoreira, ao longo de entrepostos que cruzavam toda a Ásia até ao topo da península Arábica e daí para a Turquia, para depois se alargarem ao continente Europeu através do Mare deles, os romanos...

E eu ia hoje para Samarcanda...

por isso me meti com os meus companheiros de viagem no autocarro com partida marcada para as oito da manhã num trajeto de 300 e pouco quilómetros que nos levaria mais de cinco horas...

Poderia ser menos se os feitos da geografia política não se intrometessem pelo asfalto da velha auto-estrada soviética que, nos tempos da dita, permitia uma ligação mais direta com a capital Uzebeque.

Hoje, há que fazer um desvio que acrescenta cerca de 80 km ao trajeto, para não cruzar na referida estrada território do vizinho Cazaquistão....

E mais uma vez a radiância e beleza do projeto Europeu me sobe aos olhos como pura evidência...

mais do que uma vez saí de casa no meu carro ou aluguei um carro em outro pais da União e fui... como o outro ia na 125 azul...

da minha, fui à porta da Ucrânia; da minha, fui à porta da Turquia; da minha, fui à porta da Noruega; nunca precisei de mudar de estrada, a não ser por qualquer condição espúria da mesma, como um acidente de tráfego ou manutenção.

O Uzbequistão e o Cazaquistão são ambos membros da CEI, Comunidade de Estados Independentes,  uma organização que, tal como a União Europeia,  se afirma como irmandade, na herança de um passado e valores comuns.. mas por aqui mantêm-se as distâncias, ou antes aumentam-se, já que, pelo que parece, por aqui mi casa no es su casa....

O guia avisa também que tirar fotografias a pontes, mesmo de dentro do autocarro não é coisa para se praticar... as pontes são consideradas infra-estruturas estratégicas (nisso estamos todos de acordo) pelo que são vigiadas com postos de segurança em  ambos os lados do tabuleiro, estando as fotografias completamente proibidas...

Por um descargo de consciência, abro o google earth no conforto do autocarro com wi fi e vejo onde estou: pontes, via férrea de alta velocidade, estradas... ele há coisas que se entranham nas pessoas e que depois, mesmo que empurradas por um forçado êmbolo de racionalismo, custam a sair... não é verdade?

A estrada corre por campos agrícolas, fundamentalmente... tudo é plano, tudo é verde... pomares, cereais, hortaliças. Entre os campos, à beira da estrada, conseguem-se, por vezes, perceber núcleos habitacionais bem demarcados e claramente alinhados... pergunto ao guia se são antigos kolkhozes, responde-me que são  antigos e atuais, apenas mudaram de nome, sendo agora comunidades agrícolas etc etc...; explica-me que no Uzbequistão não há posse privada da terra, todo o solo e recursos são do estado, pelo que o figurino das antigas explorações agrícolas se mantém nos nossos dias. 

"Óbvio o contraste com as repúblicas do antigo bloco de leste Europeu que rapidamente se despediram do modelo soviético...," articulo para com os meus fechos éclaires,  de repente com Georgia on my mind, e não a do Ray Charles...

Paragens na estrada de duas em duas horas permitem-nos o recomendável esticar as pernas, o alívio das naturais pressões fisiológicas e alguma descoberta nas bancas de beira de estrada que estrategicamente por ali se encontram e permitem ao viajante adquirir seja óleo de motor, transvasado em garrafas de litro e meio de água, seja as ubíquas empadas de legumes ou carne, acabadas de fritar que aqui fazem de pastel de bacalhau ou rissol do viajante.

Samarcanda, por fim, de novo cúpulas, e minaretes, em profusão, mas antes o almoço, findo o qual começa logo o programa de visitas que há muito que ver e ainda dispomos de meio dia.


Ulugh Beg, (394 – 1449) mais que um príncipe e sultão de Samarcanda, foi um intelectual com um domínio de cinco línguas, um profundo interesse nas artes, de que foi amiúde patrono,  e um célebre astrónomo e matemático que, nos seus dias, conseguiu catalogar com precisão nada menos que 1018 estrelas, calcular a duração da órbita da terra, o ano sideral, com um erro de 58 segundos e escrever várias tabelas trignométricas....

Para o seus cálculos astronómicos, à falta de telescópios, utilizou um enorme sextante com que calculava a declinação das estrelas, que tinha um raio de 36 metros. 

O local onde antes se ergueu o seu observatório, de que resta apenas a parte que ficava no subsolo do descomunal sextante, é hoje lembrado com um museu dedicado à sua obra.

Este é uma estrutura bastante visitada por turistas estrangeiros e locais, que aproveitam também a sombra das árvores do  pequeno parque que ladeia museu e observatório para pic niques ou simplesmente alguns momentos de lazer.

O guia avisara: não se admirem se alguém quiser tirar fotos convosco... é habitual e serve de tema de conversa mais tarde lá em casa, para a família toda...

dito... e feito: acabava de tirar uma fotografia à minha mulher quando uma senhora surgiu de repente ao lado dela, já a olhar para mim, telemóvel na mão estendida na minha direção.... nem foram precisas palavras... ainda mal tinha devolvido o telemóvel à dona, já outra senhora se perfilava ao lado da minha mulher...

Despedimo-nos todos com um sorriso..., tão rápido que acabei por nem tirar eu algumas fotografias a ambas com a minha mulher....

O monumento evocativo do homem e da obra de Ulugh Beg

O museu


                                                                         O que resta do grande sextante

    O circulo do observatório com a cobertura da parte do sextante enterrada no subsolo

O resto da tarde seria passado na necrópole Shah-i-Zinda. Um complexo de mausoléus e outros edifícios religiosos que foi construído entre os séculos XI e XIX. 

Uma quantidade enorme de gente  acotovelava-se nas ruas estreitas e no deslumbrante interior dos edifícios. Perguntei ao guia como seria nos meses de verão... respondeu-me que estávamos no pico da estação turística. No verão, com temperaturas muitas vezes a bordejar os 50 graus, o movimento é muito reduzido.

Resignado a ter de fotografar com toda aquela gente por ali, procurei de novo fixar-me em detalhes, estruturas, composições geométricas, o que nem sequer é difícil dada a natureza das decorações e dos próprios edifícios...

Estamos num complexo que é um sítio Património Mundial da Unesco e, pela sua natureza, um local sagrado. Levanto os olhos para um dos alçados de um edificio... um casal de jovens turistas europeus conversa animadamente, sentado na base de um arco em que se inscreve uma das janelas do edifício... mas será que esta gente não sabe... não pensa... passado algum tempo um funcionário convida-os a descer....

Ficamos por ali até ao final da tarde findo o que seguimos para o hotel, para um banho e uma saída com um casal espanhol com quem travamos amizade, para jantar.

O guia tinha avisado também e nós já o sentíramos em Tashkent:  pode ser perigoso sair à noite nas cidades do Uzbequistão... não, nada de roubos ou assaltos, de resto o país é seguríssimo, como costumam ser os países de liberdade condicionada...

O sistema de esgotos pluviais acompanha as ruas das cidades. Por cá, segue encanado, no subsolo, sendo as aberturas de alimentação, as nossas conhecidas sarjetas, tapadas com grades que impedem que nelas se caia; lá, segue a céu aberto, como uma pequena vala encostada ao limite da berma e ao passeio. Como à noite a iluminação das ruas é amiúde fraca, é muito fácil cair numa das valas, como descobriu primeiro o Xavier e, logo a seguir, a Cristina (assim se chamam os nossos amigos) na pressa de ajudar o marido. Conclusão: uma canela raspada para ele e uma luxação de calcanhar para ela... e ainda só íamos no segundo dia de visita... felizmente havia médicos no grupo e ligaduras e tudo o que era preciso, pelo que para além de algum desconforto durante uns dias, nada de pior se passou.


Shah-i-Zinda

A beleza das decorações e a mestria do trabalho em todos estes mausoléus e mesquitas é simplesmente avassaladora...



















            
                                                                                       







o mundo não é um parque temático embora alguns nada mais peçam dele...











A beleza das decorações e a mestria do trabalho em todos estes mausoléus e mesquitas é avassaladora, p

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