Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, tantas quantas me promete a memória...
17 de Abril de 2025 - Bukhara
Uma última visita faltava em Bukhara, a que dedicámos a tarde, a seguir ao almoço: o complexo Po-i-Kalan, consituído por 3 enormes edifícios: Minarete Kalan, o mais velho dos 3, que data de 1127 e que foi poupado à destruição pelo famoso imperador mongol Genghis Khan, razão pela qual a mesquita a que estava anexo não é a hoje existente; Mesquita Kalan (1515), a segunda maior do país, a seguir à mesquita Bibi Khanum, de Samarcanda, e uma das maiores da Ásia Central, e a madraça Mir-i-Arab, (1535), hoje como as outras, transformada em centro comercial de artesanato.
Os descomunais, mas belíssimos na decoração, portais da mesquita e da madraça olham-se nos olhos, com o enorme minarete definindo o outro lado de um quadrilátero que a estrada atravessa no lado que lhe está oposto.
Ao visitante não resta que sentir-se ínfimo perante tamanhas construções; ínfimo perante Deus; Alá, o único, o verdadeiro, como único e verdadeiro são todos os outros. Suspeito eu que seja esta a razão para toda esta monumentalidade desproporcionada.
A verdade é que é impossível não achar beleza naqueles panos enormes de azul que cobrem os portais, naquela maravilhosa caligrafia que pode estar a dizer coisas que insuspeitamos, mas que não podemos deixar de "ler" de boca aberta, na sua siderante afirmação gráfica, no intrincado mosaico dos tijolos do minarete, nos azulejos belíssimos que envolvem a circunferência das bases das cúpulas, no indescritível turquesa de que vaidosas se vestem... caramba, como são belas.
Passamos a porta da mesquita, um imenso pátio capaz de acolher milhares de pessoas, com uma singela árvore no meio.
Viemos em boa hora. está quase vazio o pátio. Para mim, todas estas construções vivem no mais absoluto paradoxo: alimentam-se de pessoas, são as pessoas que lhes dão sentido, objeto, ou talvez não; talvez elas próprias sejam o fim, em si mesmo.
Deus na terra são aqueles minaretes, aquelas cúpulas, aquelas inebriantes misturas de cor e forma. Aqui, como na talha dourada e nos frescos nos tetos das igrejas da minha terra... este o paradoxo: não precisam de pessoas para nada, aliás são tão mais belas quanto menos pessoas lhes perturbam o equilíbrio, a plasticidade, a pureza da forma...
Esforço-me por procurar este vazio, o mesmo que busco na música que foi escrita à glória de um Deus em que não acredito; basta-me ouvir, ver, tocar. Não preciso que me chamem do alto daquele minarete, ou com um sino de campanário para ir humilhar-me diante d'Ele. E porque quereria Ele que assim fosse? Ele, a glória e o amor eternos.....o imenso perdão e a inabalável justiça....?
Olhem só ali, mais abaixo, no Afeganistão.. onde anda Ele? e nesseoutro ali, onde o filho nasceu, na Palestina... onde anda Ele?... e em mais alis, como no Sudão, no Congo, nos becos esconsos das grandes cidades, na ponta de uma seringa, no fumo ácido que sobe de uma cachimbo de folha de alumínio, onde anda Ele?.....
Saímos para visitar a madraça. Prefiro ficar cá fora, após uma rápida vista de olhos às bancas em tudo iguais às de outras madraças que visitámos.
Choveu entretanto, a praça está molhada e o chão, no fim de tarde, doura em espelho. Procuro uma fotografia nos reflexos do chão... ando lá perto mas não consigo... outra vez as pessoas a estragarem a sagração do vazio...
O dia morre e nós por ali ficamos, para mais uma volta. Passámos já a metade da viajem; é altura de começar a fazer as compras dos indispensáveis souvenirs para os que nos são mais próximos, respeitando por inteiro a cartilha do turista que despudoradamente aceitamos...
Recolhemos ao hotel, por conta própria, confiados no instinto e nos pés que lá nos haviam de levar, já que internet, só com os dados ligados...
Como não podia deixar de ser, mais de meia hora depois, na incerteza de um cruzamento e acreditando que mais valeria tentar do que deitar moeda ao ar, entramos numa loja de confeções procurando ajuda, não para a compra de roupa mas para encontrar o caminho de volta ao hotel.
Não poderia ser mais amistoso e disponível o jovem atrás do balcão, que prontamente me pediu o telefone, o ligou à sua rede wi-fi e para ele transferiu o mapa do caminho que nos bastou seguir até, por fim, vermos as luzes da portaria do nosso hotel...
Bukhara, fechava as portas do dia, no corrupio pendular dos regressos a casa, após mais uma jornada de trabalho.
Nós também!
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