sexta-feira, 9 de maio de 2025

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

17 de Abril de 2025 -  Bukhara 


A Ark de Bukhara



A chuva, de novo. Por vezes forte, a ensopar-me a roupa e o parco agasalho da mesma que uma camisola de fibra e um normal boné podem proporcionar... quem me manda a mim não trazer um impermeável, daqueles que ocupam o espaço e o peso de dois pacotes de lenços, depois de bem dobrados...

Seria assim durante boa parte do dia que passaríamos a visitar o centro histórico da velha cidade, outra pérola do património mundial, como reconhecido pela UNESCO e pelos meus olhos deslumbrados por muralhas ondulantes, abóbodas do mais cativante turquesa, ou azul ou verde ou cor que não se sabe nomear, minaretes tão altos que parecem eles invocar a raiva das nuvens que me ensopam, cá por baixo, onde os mortais se acoitam...

Há sempre duas formas de olhar para as coisas, dizem (embora eu desconfie que muitas vezes, o que é mau, não tem mesmo remédio...), e se a chuva me trouxe a necessidade de saltitar entre poças para não encharcar os pés, esse sim o desconforto que mais me... desconforta, trouxe-me também, durante alguns minutos,  os melhores céus e a melhor iluminação de que dispus nestes dias de visita ao Uzbequistão, entusiasmo que só os incondicionais do obturador perceberão, porque os outros, por certo, preferirão o aconchego de um teto que os proteja da inclemência aquosa em que as nuvens se vão transformando.

Coisa de pouca dura, no entanto,  porque poucos minutos passados, o céu, há pouco carregado, mas tecido em pequenas nuvens que se acotovelavam umas às outras (e eu que dizia que não gostava de astrakan..) desfazia-se agora no lençol cinzento sem qualquer estrutura aparente, que tantas vezes nos trazem os dias de chuva. 

A enorme muralha da cidadela ergue-se no centro da cidade antiga.  A Ark de Bukhara, assim é designada, encerra o antigo complexo real e o entulho do que haverá sido uma pequena cidade. 







Inicialmente contruída no sec. V, o complexo real dos emires de Bukhara, tal como hoje se reconhece, data do sec XI tendo conhecido ampliações, reformulações e transformações nos séculos que se seguiram, datando os edificios hoje visiveis dos sec XVIII a XX. O epílogo enquanto residência real, conheceu-o em 1920, quando no decurso da guerra civil que se seguiu à primeira guerra mundial e à revolução de outubro,  a cidade foi obliterada por um grande fogo. Hoje, quase todo o local está à espera de ser escavado, tendo alguns edifícios, nomeadamente o palácio real com o salão para receções onde se encontra instalado o trono de mármore das coroações, sido reconstruídos  durante o período soviético. Nos vários edifícos reconstruídos estão agora instalados núcleos museológicos que abarcam  aspetos tão díspares quanto a história da cidade de Bukhara, a história natural da região ou a numismática.


O grande campo de escombros que ocupa toda as traseiras dos edifícios reconstruídos tem a vantagem de permitir, na sua extrema, uma visão desimpedida sobre um grande complexo arquitetónico religioso que visitaríamos mais tarde.

Dele, pareciam agora brotar mágicas protuberâncias recortadas no contraste de um céu pintado num suave degradé, que mais acentuava a estranha aparição.

Para mim, este pequeno passeio à chuva teve a  alegria da descoberta de uma paisagem de ficção científica... Há alturas em que os todos os elementos se conjugam para uma boa fotografia... como pode alguém queixar-se de estar todo molhado quando se volta para casa com imagens destas?:



Olhando para o desolado monte de escombros que atravessamos é fácil imaginar que muita coisa haverá aqui por desenterrar. De resto, pedaços de cerâmica, por exemplo, eram visíveis aqui e ali no chão, onde ser erguem ainda tambémalgumas teimosas ruínas.


















Alguns detalhes  do salão de recepções e do trono da coroação, hoje com uma cadeira disponível para qualquer aspirante a emir que queira para para tirar nela sentado uma fotografia, devidamente ataviado com espada e tudo...




Alguns turistas Uzbeques visitavam à mesma hora que nós os pequenos museus. Curiosamente alguns deles pareciam mais interessados nos turistas estrangeiros que nas peças museológicas. Apesar das dificuldades linguísticas, conseguimos comunicar o mínimo para satisfazer curiosidades: nome, de onde éramos... uma ou duas fotografias e o calor de sorrisos e apertos de mão sinceros e generosos.

Não costumo fotografar pessoas; por timidez, vergonha, desconforto e por acreditar em " não faças aos outros o que não gostas que te façam a ti".

Hoje em dia, para mais, o direito à imagem tornou-se numa absoluta camisa de varas. Claro que compreendo que as pessoas tem direito a decidirem sobre a sua pessoa e imagem, mas a questão é que o que poderia ser uma questão de bom senso é hoje muitas vezes uma questão sem senso algum: por um lado, aspirantes a fotógrafos que pensam que podem transgredir a intimidade de uma qualquer pessoa, e, por outro,  pessoas quaisquer que acham que se acaso alguém lhes tira uma fotografia é porque ombreiam em notoriedade com o Martin Luther King, o Rei Carlos III ou até mesmo o Pedro Santana Lopes...

Que seria dos Cartier-Bresson, salgado, Parr, Erwitt, Maier, Meyerowitz, McCurry se tivessem que pedir licença aos seus insuspeitos modelos... o quão mais pobres seríamos todos....

Nervosamente, ousei pedir por gestos (o que sempre é mais fácil do que falar, neste caso) para fotografar uma senhora e um senhor que me pareceram especialmente fotogénicos e a resposta não poderia ser melhor, tanto que o senhor nem o consegui fotografar sozinho, como queria, já que um amigo se lhe veio logo colar e ainda tive também de tirar fotos com os dois que um terceiro captou com um telemóvel.

Já o tinha sentido em Tashkent, no mercado, e em Samarcanda, no observatório. Continuaria a senti-lo por estes dias: sempre que apontava a minha lente a alguém, a resposta não podia ser mais positiva e natural...



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