quarta-feira, 14 de maio de 2025

 Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,

em partes, tantas quantas me promete a memória...

18 de Abril de 2025 - Khiva 


Khiva seria o nosso último destino em terras Uzbeques, a dois passos do deserto e a três do Turquemenistão. Mas primeiro seria preciso lá chegar, já que Bukhara dista dela 440 quilómetros, que é o mesmo que dizer oito serenas horas de autocarro, desfiladas por terreno sempre plano, em transição do verde para o amarelo acastanhado das areias infinitas.

Uma jornada sem percalços, e com as habituais paragens que, para além de permitirem alívios de vária ordem aos corpos já maçados e amassados de tanta viagem , espevitaram em mim uma e outra vez o pasmo, habituado que não estou a ver poesia Sufi em tão fraternal conluio com paredes onde por hábito a escrita releva de expressão muito menos elevada...


...ou  lavatórios que nos levam à interrogação se alguma vez Marcel Duchamp por aqui terá passado?...



...ou mesmo a expressão do acaso em curiosa dimensão plástica (embora a escolha da palavra não seja dele também reflexo).


Tudo isto, a juntar à presença de dois camelos, coisa certamente ali banal, mas que, para mim, que a eles não estou habituado, era mais um motivo de interrogação, acrescentava a este inusitado café de beira de estrada uma aura vagamente surreal. Difícil será dele esquecer-me, como convém a quem, como eu, de viagens ter por gosto guardar a história.
 


O deserto era agora óbvia presença, e ao longo dele correríamos algumas horas, apenas sobressaltadas pelas imagens ao correr da janela das ruinas de um caravancerai ou de uma cidade quase fantasma, ao longe, erguida para assegurar morada ao trabalhadores das explorações de gás que por aqui existem.

"Região de Xorazm, Distrito de Tuproqqa'la", diz o portal de boas vindas largado no meio do deserto para gáudio dos cultores da trilogia Instagrame-feicebuque-tiquetóque, atrás de uma caravana de camelos reincidente, pois que já víramos semelhantes esculturas em Samarcanda e Bukhara (para além da que veríamos também mais tarde em Khiva).


Tem uma qualidade diferente esta areia. Não é o mar amarelo e estéril que se vê em Marrocos ou na Tunísia. Aqui a areia é acastanhada, quase terrosa,  e por todo o lado despontam pequenos arbustos.


Procuro um, para ponto focal de uma fotografia; quase não consigo segurar a máquina, acossado pelo vento que me enche os olhos e a boca de poeira.

O guia chama-nos. Há que ir, são quase horas de almoço. Um enorme restaurante de beira de estrada com estação de serviço e outras amenidades.

A comida que nos é dada é novamente saborosa e  variada, trazida da cozinha por entre a nuvem de fumo espesso que guarda o longo assador de carvão onde um carrocel de espetadas de carne roda na ilusão de movimento perpétuo (não vão elas queimar-se...) às mãos do experiente timoneiro, que as tira do suplício do calor no momento certo.



Nesta altura da viagem já sabemos que iremos, como habitualmente, contar com uma sopa a meio, entre a empada de entrada, a salada que se lhe segue e o prato principal que abre caminho à sobremesa e ao imprescindível xá verde, que remata todas as refeições.


Retomamos o caminho e Khiva recebe-nos por fim. Alojamo-nos num hotel já dentro da Itchan-Kala, a cidade muralhada Património Universal e principal atração turística, ao albergar, para além de um sem número de turistas, cerca de 50 monumentos históricos, e um mar de casas de adobe (fingido, nas construções mais novas, feitas em tijolo recoberto a adobe, para manter as aparências), hoje todas convertidas em restaurantes, hoteis, hostels ou todo o tipo de alojamento turístico (um enorme Monsaraz, ou Marvão, portanto....)


Temos o resto da tarde livre, e aproveitamos para um primeiro passeio, na pouca luz que ainda nos resta e que, em breve, dá lugar a uma noite escura, sem outra lua que a dos candeeiros de iluminação pública.

Que bem sabe andar agora, depois das horas passadas no assento do autocarro. Há muita gente na rua, turistas, sobretudo. Percebemos que são mesmo muitos os edifícios históricos... madraças, mesquitas, minaretes, cemitérios, de tudo há em profusão e, como não poderia deixar de ser, uma vez mais o delírio das decorações imensamente belas, das cúpulas verdeazul, dos minaretes e torres que raspam o céu....

O dia seguinte seria o último dia de viagem, mas bem cheio deveria ser....
 




De entre os maravilhosos minaretes de Khiva, este, o Kalta Minor, o mais pequeno
 mas também o mais largo, tem o chamamento de uma sinfonia inacabada.



A tampa de um poço de visita exibe orgulhosa a sua linhagem




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