quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

26 de dezembro

Não tenho o conforto de uma religião. Nem sequer o procuro. Sou, por convicção e feitio, agnóstico. Viver é tarefa suficiente para me preocupar sem que tenha de me questionar sobre os quês e porquês de algo infinitamente superior, infinitamente capaz, infinitamente obscuro. Sou decididamente de agora e não do futuro, das promessas de vida eterna e ressurreição e de dar por mim sentado ao pé de outros que não conheço, à direita deste ou daquele, cujus regni non erit finis.

Não sinto o Natal (e já agora a Páscoa, por uma questão de contexto….) como celebração de crença. Até porque acredito que na religião, como em tantas outras coisas, somos pouco mais que produto de mera casuística. Afinal, nada na crença é genético e, não fora a imposição de condicionamento sociocultural e a roleta da geografia, todo o ser humano teria, no limite, pelo menos,  liberdade de escolha…, a sempiterna questão do livre arbítrio…

Resta-me pois do Natal, aquilo que ele não é, mas em que o fomos transformando: o horror das prendas, as insuportáveis versões de canções que poderão, uma vez, ter sido engraçadas, a Julie Andrews e a  Música no Coração, as renas, o pai natal e o festival de circo de Monte Carlo, as entediantes e deprimentes perguntas do costume com as mesmas respostas de sempre na TV… a feroz consciência sem abrigo (que no resto do ano, é acintosamente míope – apesar das comprometidas, militantes  e respeitáveis exceções, é claro…) que toma, por um ou dois dias, conta dos pobrezinhos, a solidariedade catártica de um quilo de arroz que se troca pelo arrependimento de um voto, e, apesar de tudo, alguma alegria, essa sim verdadeiramente sincera, da companhia daqueles de quem mais gostamos, .. ah, e as rabanadas, também…

e Bach e Händel, sempre!

And they shall reign for ever and ever porque, na verdade, apesar do Natal, Bach e Händel  é mesmo sempre que um homem quiser!



I don’t have the comfort of a religion. And I don’t even look for it. I am an agnostic, by conviction and nature. To live is enough of a chore for me to worry about the whys and whats of something infinitely superior, infinitely able, infinitely obscure.   I am decidedly of now and not of the future, of the promises of eternal life and resurrection and of finding myself sitting by others whom I don’t know, to the right of this or that someone, 'cujus regni non erit finis'.

I don’t look at Christmas (or at Easter, to put it into context…) as a celebration of a belief.  The more so since I believe that as far as religion is concerned, as in so many other instances, we are but the result of mere casuistics.  After all, there is nothing genetic in beliefs and were it not for the imposition of sociocultiural conditioning and the roulette of geography, every human being would  at the very least, have freedom of choice.. the everlasting question of 'liberum arbitrium'.

So I’m left with not what Christmas is but with what we’ve been transforming  it into: the horror of imposed gifts, the unbearable versions of  songs that may have once been nice, Julie Andrews and the Sound of Music, reindeer, Santa Claus and Monte Carlo’s circus festival, the usual boring and depressing questions with the same usual answers  on TV... the deep-rooted  homeless conscience  (spitefully shortsighted throughout the rest of the year – in spite of some truly engaged, militant and respectable exceptions..) that, for a day or two, looks after the dispossessed, the cathartic solidarity of a packet of rice exchanged by the regret of a vote and, in spite of all this, some truly sincere joy, for being in the company of those we hold dear… all that and , of course,  the mouth watering Rabanadas...

And Bach and Händel, always!

'And they shall reign for ever and ever' for, in all truth, Christmas notwithstanding, as it is said of the Season,  Bach and Händel is... whenever a man wants them to be!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - IV

Passeamos à noite pelo De Wallen. Ao lado de canais, ao lado das igrejas, ao lado do quotidiano, ao lado de pessoas que por aqui passam, porque aqui moram;  porque aqui querem passar;  porque aqui querem comprar o prazer que lhes descansa o corpo;  a que se obrigam em rito de passagem;  que procuram por insalubre afirmação.


Nas estreitas vielas iluminadas pela fluorescência vermelha das largas janelas apinham-se passeantes, clientes, curiosos, empurrados pelo constante bruaá envolto no cheiro doce da erva que por todo o lado paira.

E no entanto, ali mesmo ao fim da rua, há uma calma deserta que se estende na curva do canal, em paleta de cores de quadro barroco.

Evening. We stroll in De Wallen along  canals, churches, the day-to-day ,  dwellers, strollers; those looking to buy the pleasure that will ease their bodies;  that they force upon themselves as a rite of passage; that they seek as a measure of unwholesome affirmation.    

The narrow streets illuminated by the red fluorescence of the large windows are packed with onlookers, clients, the curious,  all bound together in the never diming background noise that shares the air with the omnipresent sweet smell of grass.

And yet, down there, by the end of the street, a desert calm looms in the canal bend, as if painted with the palette of some baroque painting.


É já outro dia, o último.

Gastamos o que resta das horas da cidade em passeio descomprometido. Chove a espaços e faz frio.
É domingo, de manhã. Quase não há gente na rua. Aqui e ali  pequenas língua de fumo denunciam  gente nos barcos atracados à margem do grande canal.

Another day. The last one.

We spend what few hours we still have in an uncompromised walk. it rains now and then and the day is cold.
Sunday morning. The streets are practically empty. Here and there, narrow tongues of smoke bear witness to life inside the boats moored in the banks of the large canal.


Passamos de novo pelo De Wallen a caminho da estação central. As luzes vermelhas nunca se apagam, parece.  No cimo da rua, na Basílica de S. Nicolau, uma missa para a comunidade de língua hispânica enche a longa nave que aguarda o início da celebração enquanto um sacerdote despacha batismos pontuados por palmas e choros infantis.

Tomamos o elétrico rápido. Olho pela janela larga,  uma última vez, para o canal.  Imortal,  Brel senta-se a meu lado e dita-me a  beleza crua, sublime, das  palavras que declina na magnífica ironia de um tempo de valsa : dans le port d’Amesterdam il y a de marins qui chantent…

We pass by De Wallen again on our way to the central station. The red lights do not seem to go out ever. On top of the street, inside St. Nicolas Basilica , a mass for the Spanish speaking community fills in the long nave that awaits the beginning of the celebration while a priest, punctuated by applause and youthful cries,  dispatches  baptisms.


We climb on the tram. I look through the large window, one last time, towards the canal. Immortal, Brel seats by my side and dictates me the harsh, sublime, beauty of the words he declines in the magnificent irony of a waltz tempo: dans le port d’Amesterdam il y a de marins qui chantent…







quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - III

Gosto de museus e de tudo o que servem. Mais que depósito são livro, mais que texto são coisas e, não raro, arte, que só assim podemos ver, que só assim são também nossas. É por isso que são pedra de toque de conhecimento, que fundamentam a perceção que temos do mundo, que sustentam a democracia, a verdadeira, a do acesso livre e público à educação, a que se ampara em saber e não apenas em folhas de balanço e anuários estatísticos.

 Nada mais os povos deixam que cultura. Em pedra, em tinta, em letra,... em eletricidade, hoje.

I like museums and the purpose they serve.  More than depository, they are book, more than text they are things - art, more often than not -  that one can actually see, that as such are also ours. That is why they play cornerstone to wisdom, they support what perception we have of the world, they sustain true democracy, that of  free and public access to education; that which is anchored in knowledge and not in balance sheets and annual statistics reports.

When a civilization disappears it  leaves nothing but culture. Etched in stone, in paint, in characters,… in electricity, nowadays.



É isso que os distingue, é isso que todos têm para oferecer uns aos outros. E os museus servem abnegadamente este propósito. Independentemente de velhas querelas (indiscutivelmente justificadas) que possam pairar sobre a origem e a posse deste ou daquele artefacto, deste ou daquele pedaço de história, a verdade é que os museus, mais que donos, são guardiões de um património que transcende os limites da geografia política, do mapa das nações.

Arquivo de tempo, livro de obra, memória para futuro, de uma espécie que tem de diverso o ser única, e na etimologia da designação a tradução do que tantas vezes a move:…sapiens, sapiens… sapiens…

Foi esta a razão porque fomos à Holanda, foi esta a razão porque fomos a qualquer outro lugar: …sapiens…sapiens…sapiens

Nas salas do Rijksmuseum a luz faz-se nas telas e no brilho dos nossos olhos, a princípio desconcertados pela arrojada mistura de um século que se fez de asas – ou não fosse a engenharia também uma forma de arte – com as galerias pejadas de magníficas telas percorrendo a história da arte ocidental, principalmente no que ela deve aos artistas dos países que se dizem baixos, por falsa modéstia, certamente, porque basta olhar para qualquer uma das telas cuidadosamente expostas para se ser convidado às alturas. 

This is what tells one from another, what they have to offer each other. And museums unselfishly serve this intent. Notwithstanding  old (and undoubtedly justified) disputes that might hover on the origin and possession of this or that artifact , of this or that piece of history, truth is that museums, more than owners, are keepers of a patrimony that transcends the boundaries of political geography, of the map of nations.

Archive of time, log and memory for the future of a species that is diverse for being unique, and that carries in the etymology of its designation the translation of what so many times moves it: sapiens… sapiens….sapiens…

This was why we went to Holland, this was why we went to all those other  places: …sapiens…sapiens…sapiens

The light inside the rooms of the Rijksmuseum is made of the paintings and the glow in our eyes, at first bewildered by the daring matching of a winged century – would not engineering also be a form of art – to galleries filled with magnificent paintings that illustrate all the history of western art, particularly that of the artists from countries said to be low…, a measure of false modesty, though, since it takes only a glimpse at one of the carefully exhibited canvases to be invited to the heights.

Bat Bantam


Rembrandt e Vermeer serão aqui as estrelas da companhia, repartindo o corredor principal do museu, onde, ao fundo, os soldados atentos da magnífica Nachtwacht parecem mirar desconfiados os inquiridores olhares ávidos de visitantes, que os fotografam despudoradamente com os ubíquos telemóveis.

Rembrandt and Vermeer are the stars of the company here, sharing the main nave of the museum where on the end wall the soldiers of the magnificent nachtwacht seem to distrustfully gaze at the inquiring glances of the visitors shamelessly snapshooting them with the ubiquous mobile phone.

Nachtwacht, Rembrandt


Ali ao lado, outro dos filhos insignes da terra que, como tantas vezes acontece com os insignes até que a morte os separe do comum resto, foi nada, van Gogh tem hoje um magnífico museu dedicado à sua ímpar obra.

Moderno, pedagógico, claro na exposição, informativo…sapiens…sapiens….sapiens….


Close by, another of the country’s most notable sons ( who, as so often happens with most notable people, until death do them apart from the common rest, was naught),  Van Gogh,  now has a magnificent museum, totally dedicated to his unique works.

Modern, pedagogic, clear in the explanations, informing… sapiens…sapiens..sapiens…

A paleta de Van Gogh


 Delírio de cor em pinceladas fartas, rudes, rápidas, de absoluto espanto. Bastava uma tela (tantas quantas terá vendido em vida) - “Campo de trigo com corvos” – para sermos todos melhores porque um de nós a pintou. Foram muitas.

Saímos e é já noite. Ao fundo da larga alameda brilham as luzes do Concertgebouw. No reclamo luminoso que encima a portaria a Cecilia Bartoli sorri para mim. Se eu soubesse que ela aqui estava, tinha roubado um malmequer à jarra do Vincent , só para lhe oferecer….


A delirium of colour in generous, harsh, fast, absolutely amazing brush strokes. One single painting (as many as he actually sold in life) – “wheatfield with crows” would have been enough. There were many.

We go out and night is already looming. By the end of the large avenue, the lights of the Concertgebouw shine in the cold evening. In the  luminous electronic billboard over the front door, Cecilia Bartoli smiles at me. Had I known that she was here, I’d have pinched one of Vincent’s sunflowers for her…..









quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Amsterdão 21-24 novembro - II


Amsterdão sabe a água. Nunca se está muito longe dela, tantos os canais que a atravessam. Porém, ao invés de Veneza, esse quintessencial termo de comparação para todas as atlântidas emersas, a cidade coabita  na ordem geométrica de canais que se entendem entre si, em perfeito e concêntrico paralelismo. 
Percorremos ruas calmas, (na verdade andamos sobre a água, porque a maior parte das vezes, as ruas delimitam canais, não raro de ambos os lados), por agora quase desertas,  pelo frio, pelo inverno que ainda não é, mas quase parece.


Nas  características fachadas dos também inconfundíveis prédios, onde por vezes se exibem datas de edificação que nos conduzem ao sec. XVII (e, provavelmente, anteriores ainda… ) ,  reflete-se o cuidado com a ordenação que se espelha nos canais. De facto, todos os prédios parecem guindar-se por uma mesma bitola em altura, num alinhamento amiúde perfeito de cornijas, encimado pelos suaves recortes  dos sótãos.



Mas se a altura é a mesma, a largura é multíplice, parecendo até que, por vezes, a arquitetura se faz de preenchimento e não de enchimento do espaço, ou não se vissem por vezes  prédios elegantemente estreitos,  a ampararem a vizinhança de edifícios que os triplicam em frente.

E amparar é, em muitos casos, uma questão verdadeiramente literal.  Velhos os prédios e as fundações, provavelmente assentes  em solos pouco estáveis (a água….sempre a água…), aqui e ali, alguns edifícios parecem subtrair-se ao  rígido alinhamento, como cadete que desmaia nem qualquer alinhada parada de dia de juramento de bandeira. Alguns abrem frestas que se alargam para o alto na junta que os une ao vizinho, outros parecem querer tombar para a frente, para o canal…



Em todos, no entanto, algo há de constante: o mundo que por eles entra, coado na transparência das enormes janelas que tanto deixam olhar de um lado, como do outro, porque, amantes da luz, os que por aqui moram evitam as cortinas...



Amsterdam tastes of water. You’re never too far from it, so many are the canals that crisscross the town. Albeit, contrary to Venice, that quintessential yardstick for comparing all  floating Atlantises, the city cohabitates in the geometric order of canals that socialize with each other in perfect and concentric parallelism. We stroll through calm streets, (in truth we walk on water, given that most of the times, the streets define the canals, often on both sides) almost deserted by the cold;  by a winter that isn’t yet but that does seem to be.
The attention  and care given to laying out of the canals can also be  grasped in the characteristic facades of the also unmistakable buildings where, at times, edification dates take us back to the 17th century (if not to even older times…) . As a matter of fact, all buildings seems to respect a single height standard, with often perfectly aligned cornices, topped by the soft  outline of the lofts.
But if height is the same, width is multiple, and often  it does seem that all the architecture was meant to fill in, as opposed to occupy, space, judging from the elegantly narrow buildings, siding others that are thrice as wide.


Often they literally support the edifications on their side. Erected on foundations that are now old and probably encased in unstable soil (water.. always the water…. ), here and there some buildings seem to miss the rigid alignment, as if a fainting  soldier in a pledge of allegiance parade. In some, slits widening skywards grace the joins that once tied them to their neighbors, while others seem to be on the edge of falling forward , into the canal…
And yet, on each and every one of them, something remains constant: the world that penetrates them, filtered by the huge windows that make it possible to look and see from both their sides for lovers of light that the ones dwelling here are, curtains have been mostly forsaken.