quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

8 de agosto

O tempo mudou mesmo. O sol de ontem que emprestava brilho ao verde das encostas e ao intenso azul do imenso pano de fundo, salpicado aqui e ali pelo branco de uma nuvem, hoje teima em se não mostrar, a coberto de um mais ou menos espesso filtro cinzento, prenúncio de chuva, ou pelo menos da desconfortável patina húmida que a névoa deposita em tudo.

Por nós, até nem nos importamos muito. Não está calor e desde que não chova, são mesmo condições ideais para a caminhada, em particular para o passeio na montanha, a que iremos dedicar o dia, no Vale de Incles, designado “Refúgio e lagos de Cabana Sorda”,  feito de desnível acentuado (475 m) numa extensão relativamente curta – 2,5 km a que há que acrescentar mais 1,5 km, de estrada plana até ao desvio para o início do trilho. No total cerca de 8 km e 3, 5 -  4 horas de caminhada, por vezes bastante exigente.

Deixamos o carro e procuramos fonte para encher a garrafa de água, que nunca nos aventuraríamos montanha acima sem cura para a sede. Está tudo fechado aqui no pequeno aglomerado de casas que marca o início da estrada. Voltamos ao carro e retomamos a estrada principal um ou dois quilómetros abaixo, onde uma pequeno estabelecimento nos serve um apetecido café e onde podemos enfim comprar a água de que tanto necessitamos.

Agora já está tudo: mochilas às costas e bastões nas mãos, partidos estrada acima até ao depósito de água que marca o início do trilho.

Carretera de la Vall d'Incles vista da encosta

Os primeiros quinhentos metros de subida são feitos em campo aberto, acompanhando em parte uma pequena linha de água. Não posso deixar de notar as flores de algumas plantas  que me são totalmente desconhecidas, embora também encontre algumas, como as pequenas campânulas azuis que estou habituado a ver nos meus passeios em Portugal. Apesar de ser agosto, as plantas aqui devem florescer mais tarde, por isso ainda há outras cores que não o verde e o amarelo pardo a amenizar o passeio.


De repente a trilha leva-nos por um bosque com coníferas velhas, de troncos e raízes retorcidas. O silêncio, apenas quebrado pelo ruido ritmado dos nossos passos e pelo canto de uma ou outra ave; o ar, limpo, fresco, que nos entra pulmões e alma adentro; a paisagem, magnífica em todas as cambiantes - do prado ao bosque e aos topos nus e cinzentos das montanhas que daqui se avistam - tudo nos preenche de uma imenso e intenso contentamento, coisa estranha de definir, a pedir palavras francesas e itálicas… sim, é isso mesmo acho, é um profundo sentimento de joie de vivre  aquilo que nos toma, apesar do arfar do peito e do suor que nos escorre cabeça abaixo, que o caminho é, já o disse, exigente.

Não trouxe comigo aminha velha e sempre fiel lente macro nem, por muito que me custe, o objetivo do passeio me permite despender muito tempo acocorado à caça de insetos e flores, mas não resisto ao esvoaçar colorido de duas borboletas que me são estranhas e que, ainda assim, consigo fotografar sem desatar a rolar encosta abaixo….(mais tarde identifico-as como uma  Lycaena virgaurea e uma  Erebia, cuja espécie ainda não descobri).

Lycaena virgaurea
Erebia sp.
A meio da subida somos ultrapassados por um caminhante solitário, que segue encosta acima num ritmo muito mais apertado que o nosso, entre as árvores descubro inúmeras framboeseiras silvestres embora quase sem frutos. Pergunto a um csal que também connosco se cruza se ainda falta muito e ele responde-me que em distância não, mas que, em tempo, ainda temos pelo menos meia hora pela frente e puxada, avisa…

Saímos do bosque. De novo o caminho percorre vegetação baixa e pedra nua, estamos cansados, mas prosseguimos, os bastões são uma enorme ajuda. De repente o chão nivela-se um pouco e a subida já não é tão pronunciada. Uma pequena lagoa alimentada por uma fina cascata, abrigada entre as rochas, descobre-se à nossa frente, como recompensa pelo esforço. Descansamos um pouco, para ganhar folego e prosseguimos. Estamos perto. Já se consegue vislumbrar o teto da casa abrigo vizinha da lagoa que marca o fim do percurso.


Uns metros mais de subida em caminho de rocha, por vezes solta, e finalmente a Lagoa de Cabana Sorda surge à nossa frente. O caminho agora é plano. O prazer da chegada toma-nos por completo. Sorrimos, cansados mas contentes. Não precisamos dizer nada, ambos sabemos o que o outro sente.
Não posso deixar de pensar que também no dia anterior me sentia cansado de andar e, no entanto, o cansaço de hoje é daquele que nos retempera os músculos e a vontade, tão diferente do cansaço inconsequente de outro fim que o do esgotar por completo a paciência da tarde que passámos às voltas, nos centros comerciais e ruas formigantes de gente,  da velha Andorra.


Estany de Lagoa Sorda

Alguns rapazes estão acampados na margem da lagoa. A casa abrigo, para onde nos dirigimos, para pousar as mochilas e almoçar, também está ocupada por um grupo de jovens italianos que por aqui vão pernoitar.

O dia por aqui vai carregado de nuvens e faz fresco. Sabe bem o polar sobre o peito suado.
Mais à frente estão dois cavalos, tento aproximar-me para fotografar, mas apenas consigo dois disparos porque começa a chover.


Corro para o abrigo, onde nos sentamos  envoltos no cheiro a lume que impregna as paredes. As sandes sabem a manjar de rei, que o corpo estava já a pedir.

Esperamos que a chuva passe, ou que pelo menos abrande; temos quase duas horas de descida pela frente e como grande parte do caminho é em campo aberto, a chuva seria certamente dispensável.
Parou! Colocamos as mochilas  às costas e partimos de regresso pelo mesmo caminho, embora me pareça que para nascente do abrigo há outro trilho que deverá conduzir também ao fundo do vale. Cruzamo-nos com outros grupos de caminhantes, inclusive famílias com crianças, que ainda vão na subida. Começa de novo a pingar. Vestimos os impermeáveis e continuamos, na esperança de que a chuva se não intensifique. Olho para o fundo do vale, uma massa branca começa a subir encosta acima… chove com cada vez mais intensidade.


Estamos de novo na zona de bosque e por aqui a chuva não se sente com tanta força, porque as copas dos pinheiros abrigam-nos.

De repente um trovão… e logo outro, os clarões quase se não vêm, por que é dia e apesar da névoa há muita luz. Chove agora copiosamente, e o trovão é só um, constante, rolando sobre si próprio e as encostas do vale, que os amplificam e ecoam. Começo a ficar preocupado: daqui a pouco estaremos a descoberto de novo, sem nada à nossa volta,  encharcados e agarrados a bastões metálicos…


Seguramente não é esta a melhor forma de enfrentar uma trovoada destas. Um grupo passa por nós a correr, visivelmente atemorizado pela trovoada. Penso no casal com que nos cruzámos há pouco e cujo filho se via não estar a ter prazer nenhum na subida que os pais o estavam a obrigar a fazer…. Com a trovoada, então, a criança deveria estar em pânico.


A sorte é que a trovoada está lá para o alto, para as cumeeiras, parece-me e embora não pare, talvez não desça o suficiente para nos colocar na zona de maior perigo. Continuamos a descida já na zona de prado o mais depressa que conseguimos. Estamos encharcados da cabeça aos pés. As pequenas linhas de água que há pouco eram filigrana montanha acima, são agora pequenos regatos, que temos de atravessar amiúde. Já não nos preocupamos, molharmo-nos mais do que já estamos é impossível.

Por fim chegamos à placa que marca o início (e o fim) do trilho. Numa estranha sincronia, a trovoada fenece e morre.


Falta-nos ainda 1,5 km até ao carro e volta a chover com mais força. Um pequeno café de um parque de campismo à beira da estrada parece imensamente acolhedor. Sabia-me bem uma cerveja. 

Entramos. Está quente, cá dentro, com uma salamandra a queimar lenha e vários outros caminhantes recolhidos da chuva. Peço duas cervejas e verifico, envergonhado, que estou a deixar uma poça de água frente ao balcão, no sítio onde me encontro. O simpático dono do café diz-nos para ficarmos um pouco, para nos secarmos; eu insisto em partir. Não termos roupa aqui para nos mudarmos e secar está fora de questão.

Chegamos ao carro pouco depois e partimos direitos ao apartamento e ao conforto de um banho quente amplificado por aquela que sempre considerei a melhor das refeições para os dias de passeio: basta sacudir o pacote para dentro de um litro de água fria, levantar fervura e deixar ferver em lume brando, mexendo sempre…: o abc da mais alta culinária, o simples e honesto prazer de uma boa e quente sopa instantânea.

Recompostos, saímos a passear por Pas de la Ccasa, que amanhã já partimos e o dia está tão escuro que não há muito mais para fazer…

Há dias que nos sabem bem, há dias que nos sabem muito bem e depois há dias assim!

Pas de la Casa

Soberbos!

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