segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise


12 de Agosto

Há no ar húmido e fresco da manhã o sabor de resto, de migalha. É o último dia e não porque assim o queira, mas porque assim o há que ser.


Isaba

São mais seiscentos quilómetros que nos hão de levar de novo ao país do lado esquerdo do mapa, por isso há que partir cedo, porque por certo haverá paragens pelo caminho, por agora impensadas.

Carregamos o nosso fiel papa-léguas com as malas, as mochilas e o peso da saudade que já sinto dos sítios onde passei e não estive, ou estive e não passei.

Isaba

Isaba ainda dorme. De mansinho solto o pedal da embraiagem e o carro toma a estrada, logo a seguir à anta no topo do parque de estacionamento que, por descuido, apenas fotografei com a memória.

Uma primeira paragem em Roncal. Não é longe do local de partida, mas uma boa chávena de café é pressuposto que ainda não cumprimos, apesar do pequeno almoço no hostal.

Para além da dona do bar, que se afadiga na preparação de mais um dia e a quem pedimos os almejados dois “solos”, não há mais ninguém por aqui, nem na rua tampouco. Todas estas férias têm sido assim: com exceção da aglomeração consumista dos supermercados de Andorra, este é um Agosto sem filas, esperas, barulho… gente. Decididamente, um Agosto verdadeiramente sinónimo de prazer.

À saída do bar, uma placa indica um desvio para um memorial dedicado a Júlian Gayarre. Aceitamos a sugestão e seguimos a estrada até um largo com uma estátua homenageado aquele que, leio mais tarde, foi um famoso tenor espanhol, não me apercebendo que estou em frente a um cemitério onde se encontra o mausoléu que guarda a memória e os ossos deste filho da terra.



Vale abaixo, seguimos então acompanhado o rio Esca que, de quando em vez, se deixa ver por entre as pedras e o arvoredo que o escodem da estrada.
Uma velha e interessante ponte. Nova paragem. Burgui.




Há por aqui uma tradição de transporte de lenha em grandes jangadas, que se mantém viva para turista ver.


Burgui

Ao lado da velha ponta medieval, um pequeno monumento invoca a coragem dos Almadieros, os homens que conduziam as enormes jangadas, uma das quais, seguramente com uns 15 metros de comprimento, senão mais, está aqui, junto ao monumento, montada sobre tacos de pedra. Não posso deixar de pensar que não será obra fácil dirigir um monstro destes rio abaixo…



O rio que por aqui corre livre, ganha largura e  transforma-se em lago, mais abaixo, em mais uma das muitas represas que, em Espanha como em todo o lado, os estrangulam, para nosso deleite elétrico ou de rega.



Do lado direito, sobre uma colina, uma estranha aglomeração, antiga seguramente, chama-nos a atenção. Fotografo do meio do campo de cereal, porque a estrada está cortada e não se pode lá chegar. É Escó, povoação abandonada desde a construção da grande represa para que olha, de cima da colina.

Escó

Gostava de ter ido lá dar uma vista de olhos e seguramente fá-lo-ia, não fossem ainda os muitos quilómetros que temos pela frente… É que ainda queremos dar uma espreitadela no mosteiro de Leyre, e o tempo não dá para tudo…

São cerca de 9 quilómetros a subir, mas em boa estrada, até ao mosteiro. Hoje coabitam aqui monges Beneditinos e os turistas que utilizam o hotel em que está transformado parte do mosteiro.

Mosteiro de Leyre

Há por aqui, como não podia deixar de ser, um ambiente de calma e contemplação que se respira sem se ver, desde logo pela própria localização do mosteiro, sobranceiro sobre o vale, e também pela consciência de que esta é a morada de quem se retirou do mundo que nos é quotidiano por opção própria, na busca de um sentido, que todos, desta ou daquela forma, procuramos.
Produz-se queijo e vinho, nestas terras. Um monge imóvel, silente, atenderá os pedidos, sem uma única palavra, suspeito. As pessoas entram na sala e julgam tratar-se de uma figura de cera. Assustam-se quando fecha os olhos….despeço-me com um respeitoso bom dia… que não sabia se devia ter dito ou não e que também não obtem qualquer resposta…

No bar vende-se caviar Aragonês. Outra descoberta. Não fazia ideia que por estes lados houvesse esturjões, muito menos que se explorassem as suas delicadas ovas. Assim é desde há poucos anos, parece, num processo que se terá iniciado num passado relativamente recente, com o “cultivo” de esturjões na albufeira de Yesa.

Retomamos o caminho e lugares que nos são familiares desfilam ao ritmo dos marcos quilométricos: Pamplona; Logroño; Burgos, Valladolid….

Antes de Burgos, em Tosantos, uma ermida escavada na rocha, chama-nos a atenção cá de baixo, da estrada.

Paramos e tomamos o desvio que nos leva a uma subida de terra batida só acessível a pé. Está quente, e suo em bica quando chego lá acima. Tudo parece fechado e deserto. Empurro a porta… está aberta. Ouço alguém dentro da ermida. Pergunto se posso entrar, responde-me que sim. É a senhora que faz a limpeza e cuida do pequeno templo. Pede-me que não fotografe por dentro e ajuda para a manutenção da ermida. Não tenho dinheiro comigo, ficou lá em baixo no carro. Diz que não tem importância, que depois vai connosco lá abaixo… conta-nos que a imagem da Sra., ao longo do ano, divide a estada entre a ermida e a igreja, na vila, lá em baixo também, na beira da estrada. Faz-me saber que esta é uma paragem importante no caminho de Santiago e que são muitos os peregrinos que vêm à ermida ouvir missa. A aldeia tem dois albergues para peregrinos, diz-me, um privado e um público. Acabada a visita, desce connosco o caminho até ao carro, como prometera - ou não fosse a gente esquecer-se -  e volta a subir para acabar as limpezas.


Ermida de Santa Maria de la Peña - Tosantos

Não paramos mais senão para meter combustível e esticar as pernas.

Bragança, dizem a tabuletas, "fogo...", digo eu com o dedo apontado para a coluna de fumo que se ergue lá ao fundo, algures sobre a serra… estamos de volta…

Ite, missa est!



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