quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

 

fonte: Photos of Alexandre O'Neill - Author Profile Photo



A Alexandre O'Neill, no dia dos 100 anos, (não esquecendo o responso...)

Montado assim na bicicleta,

de tão desconjunta maneira,

tampouco verás o fio da meta

que faz do tempo ratoeira.

Sabe-la toda, ó poeta.

És um manhoso de primeira

ris-te da morte analfabeta... 

tens o por vir na pedaleira!


quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

 Camino de Hierro 

13 de Dezembro de 2024

__________________________________________________________________________________________

Caminho de  Ferro... podia ser uma afirmação, na verdade: caminho resoluto,  na constância de uma passada que me transporta a um qualquer fim... mas não é assim; com efeito, nada mais é que pura constatação: 17 km de via férrea, na famosa bitola ibérica que não nos excluiu (a nós e a nuestros hermanos) da Europa que partilhamos, mas no mínimo criou problemas de conectividade de infraestrutura que nada de bom nos trouxeram, como qualquer decisão que se resguardasse ou resguarde na cinzenta capa do "orgulhosamente sós".... o famoso transbordo em Irún/Hendaye do Sud-Expresso era disso um muito pequeno exemplo... 

Mas deixemos o norte da península e fiquemos por um Norte de nós mais próximo, aqui, onde o Águeda se confunde num só rio com o Douro que o acolhe, para passar a partir deste preciso ponto a ter Portugal em ambas as margens.

Estou do lado de lá, em Espanha, no Muelle fluvial de Vega de Terrón. É noite ainda. Acabo de chegar  de uma pernoita em Bermellar, a 34 quilómetros dali, e da felicidade de encontrar um café aberto às 6h45 em Fregeneda, para me aquecer com uma chávena da preciosa infusão, na companhia de alguns locais que se preparam  para mais um dia de trabalho.

Nada tuge, nada muge. O Águeda parece desmaiado; nem mesmo o amarelo da luz, que sobre ele vertem os candeeiros de iluminação pública, bruxuleia e o barco turístico atracado ao molhe dir-se-ia assente em doca seca, de tão imóvel se apresentar.

Está frio, bastante, mas suportável na falta de vento e humidade. O escuro da noite começa a dar sinais de, aos poucos, ir cedendo espaço ao azul dos primeiros alvores. Logo, logo, como em paleta de pintor, juntar-se-lhe-ão aqui e ali uns rasgos de púrpura e depois os laranjas, os amarelos... é o dia, senhores é o dia...

Mas por enquanto, ainda falta quase uma hora para que o sol também ele acorde, e eu aproveito o melhor que posso para tentar recolher algumas imagens da calma que por ali me acolhe.

Estou sozinho sobre o molhe e até onde a minha vista alcança. Ao fundo, a ponte sobre o Douro, de Barca d'Alva; à esquerda, duas outras pontes metálicas, internacionais, sobre o Águeda, uma rodoviária, e a velha ponte ferroviária, agora desativada, inaugurada em 1887, para apoiar a ligação transfronteiriça entre Barca d'Alva e Fregeneda, ou melhor entre o Porto e Salamanca.

E ela é parte da razão principal porque aqui me encontro, embora as fotografias me ocupem da mais perfeita forma a hora que me falta para tudo começar.

"Camino de Hierro", esta a designação do percurso pedestre que percorre os últimos 17 quilómetros desta linha no seu lado espanhol, que viram sobre eles passar um último comboio em 1985. 

Transcorrendo em aproximadamente três quartos do seu traçado ao longo da encosta poente do vale que abriga o rio Águeda, com o cessar dos serviços a infraestrutura ficou deixada ao abandono e à natural deterioração.

Tal como o afamado Caminito d'el Rey, próximo de Málaga, o Camino de Hierro foi durante anos procurado por amantes da aventura que não hesitavam em arriscar a travessia de uma das  várias pontes de assinalável altura em condições de segurança que deixavam muito a desejar. Uns, os mais bem preparados e mais conscientes, por verdadeiro desejo de exploração e descoberta, outros nem tanto assim, movidos pela hodierna procura de mais um boneco para a rede social na berra, no momento. 

Não sei se algum acidente terá por ali ocorrido, mas o facto é que o caminho foi (em boa hora, novamente à semelhança do Caminito del Rey) recuperado, tendo as pontes sido intervencionadas por forma a garantir segurança de passagem a caminhantes. Por outro lado, dois dos túneis são lar de importantes colónias de morcegos (as maiores da Europa, li algures, embora não o possa garantir) e também a intervenção levada a cabo visou garantir que, durante os períodos de procriação e hibernação, os mesmos possam ser encerrados, para não perturbar os pequenos mamíferos alados. Nestas alturas, o percurso faz-se por trajetos alternativos, que permitem contornar os dois túneis, retomando posteriormente o traçado principal. 

A excelente organização do percurso, hoje sob responsabilidade da "Diputación de Salamanca" obriga agora a inscrição prévia (com atribuição de hora de comparência) e  pagamento de entrada. Importará aqui salientar que o bilhete inclui o transporte desde o parque de estacionamento no molhe de Vega de Terrón até à antiga estação de Fregeneda, onde o percurso pedestre tem início.

A preocupação com a segurança é evidente,  estando ao  longo do percurso um automóvel especialmente preparado para se deslocar sobre carris com um técnico que, em caso de necessidade, poderá prestar a necessária assistência, após chamada para o número de emergência. Por outro lado, à chegada ao fim do trajecto, alguém esperará por nós também, para se ter a certeza que nenhuma das pessoas inscritas para o dia e que começaram o percurso nele permanece após a hora de encerramento do mesmo.

Dez para as nove. Sou abordado por uma simpática técnica envergando um casaco fluorescente com o escudo da Diputación que me diz que há três inscritos para hoje. Esperaremos um pouco mais para ver se os outros dois aparecem.

Nove horas. "Esperamos até à 9 e 10. Se não aparecerem, partimos". Concordo prontamente. Sinto já o formigueiro da vontade da primeira passada e estou inquieto por começar. 

Nove e dez. Pontualmente, do parque de estacionamento faz-me sinal para avançar. "Vai para a carrinha. Vou só buscar a chave."

Arrancamos. Não caibo em mim de contente: a falta dos outros dois inscritos significa que vou ter o caminho só para mim... o tipo de prenda de Natal que, ainda que um pouco antecipada, verdadeiramente me agrada.

Conversamos ao longo da meia hora que leva o trajeto até à estação. Jimena, assim se chama a minha simpática guia, vai-me falando dos motivos que a levaram a optar por viver por ali, num local tão relativamente interior e despovoado enquanto a paisagem serrana se sucede numa estrada quase deserta.

Por fim chegamos. Saio do carro. Uma última explicação, as recomendações de segurança... o carro do Juan Luis, o técnico que me prestará auxílio se for necessário, começa já a andar pelos carris e afasta-se, para me deixar o caminho livre. Despedimo-nos com um até logo e deixo que a carrinha da Jimena saia do meu horizonte visual também. Por fim estou só na estação. 

Uma volta rápida pelos edifícios que apresentam sinais de degradação, em particular nas coberturas, embora estejam com as entradas tapadas a tijolo. Mas sinto-me inquieto.... (agora, dias passados, arrependo-me de não ter visitado com mais atenção os edifícios da estação..., fica para uma próxima). Quero começar.

Sinto-me locomotiva. Está frio e também eu emito fumo a cada respiração, coloco-me ao nível dos carris....

Não sei se apitei, não me lembro, mas recordo-me bem de ter pensado "pouca terra; pouca-terra; úúuuuuuuhhhhh - úúuuuhhhhh...." à medida em que as primeiras passadas venciam a inércia e ia finalmente ganhando movimento.

O primeiro, e mais extenso, dos túneis, com mais de quilómetro e meio de comprimento, surge logo na primeira curva do caminho. Entro na obscuridade. Cheira-me a fumo. Não sei se é sugestão, mas a verdade é que me cheira a fumo.... avanço pelo túnel dentro e ligo a lanterna para ver o chão que piso.

A progressão é fácil, ao lado da parede do túnel há uma caminho de laje, avanço a bom ritmo e rapidamente chego ao final e novamente à luz do dia que agora é já franca, embora continue o frio de que me protejo com uma camisa forrada, um camisola polar e um grosso casaco de tecido polar também, enquanto na cabeça ostento um grosso gorro de lã.

Saído do túnel reparo que ao lado da linha há quase sempre um trilho de terra bem batido pelos muitos pés que por ali já passaram. Vai ser assim até ao final do trilho, embora, curiosamente, amiúde, para o procurar,  seja obrigado a atravessar a via férrea, alternando entre a  berma esquerda, a preferencial, pois que dá para o vale, e a direita, por vezes em talude ou com vista para a encosta. Algumas vezes ainda a opção mais vantajosa é mesmo andar pelo meio da linha e aí o melhor é ajustar a passada ao intervalo das sulipas, porque caminhar no meio do balastro é garantir pontapé frequente nas pedras, coisa que as pontas dos dedos dos pés passam bem sem praticar.

Chegado ao túnel 3, troco umas palavras com o Juan Luis que ali está à minha espera e atenciosamente me pergunta se quero um powerbank para o meu telemóvel. Digo-lhe que não, que tenho carga suficiente e despedimo-nos. 

A Jimena tinha-me dito que o trilho alternativo ao túnel 3 valia bastante a pena, embora fosse um pouco mais exigente e acrescentasse  mais de um quilómetro ao total do percurso.  Decido-me por ele, embora  penetre primeiro algumas dezenas de metros no túnel, para ver se via algum morcego pendurado do teto... Não tive essa sorte.

A Jimena estava certa, este pedaço de trilho alternativo é bastante compensador em termos visuais e parece que estamos numa trilha totalmente nova, pois que dali não se avista qualquer pedaço da linha férrea.

A primeira metade é feita a descer e entretive-me a fotografar algumas árvores com folhagem contrastante com que me ia cruzando, até que o trilho inflete de novo para cima, para retomar a cota da linha e aí é que são elas: em poucas centenas de  metros subimos uns setenta de elevação, ou seja um inclinação média que andará pelos 15%... não obstante, as vistas compensam e a descoberta de várias curiosas formações graníticas fazem com que o tempo gasto a descansar, à espera que a pulsação volte a níveis mais consentâneos com uma esperança de vida longa, passe quase sem se dar por isso.

Retomado o trilho, vem a primeira das grandes pontes, que nos oferecem as vistas  mais interessantes do percurso e a consciência de que estamos mesmo bem altos na vida....

A partir daqui o percurso vai alternando entre pontes, túneis e traçado linear, sempre ao longo da encosta que bordeja o vale do Águeda e ao caminhante mais não resta que desfrutar do caminho em si, do ar puro que inala, das vistas desimpedidas, da companhia dos pássaros, da beleza do jogo de cores e estruturas que o acompanha, da consciência da sua enorme pequenez ante tudo aquilo que o rodeia....

já passada a metade do caminho, decido-me por uma pequena pausa. Não que me sentisse cansado, mas o frio abre o apetite, é sabido, e estava na altura de comer uma sandes e uma peça de fruta que tinha levado. 

Com o cuidado de ver se não tinha deixado para trás o menor lixo que fosse, voltei a pôr a mochila Às costas e  continuei a caminhada.

Pouco depois da saída do túnel 14, volto a encontrar-me com o Juan Luís. Pergunta-me se preciso de alguma coisa e se tinha encontrado algum animal pelo caminho. Respondo-lhe que infelizmente, tirando alguns pássaros de pequeno tamanho e de fezes que julgava serem de raposa, nada mais tinha encontrado. Responde-me que uns dias antes também tinha andado por ali sozinho e se tinha cruzado com raposas e corços... invejo-o....

Peço-lhe para lhe tirar uma fotografia. O enquadramento é perfeito, já que está dentro do seu incomum automóvel.

Faltam seis quilómetros, diz-me. Despeço-me dele porque sei que, em condições normais, já não o verei mais e sigo em frente para mais um túnel...úúuuuuuuuuhh.... úúuuuuuuuhhh.... pouca terra, pouca terra....

O rio, lá em baixo começa a alargar, anunciando a foz. Não posso deixar de reparar num belo conjunto de árvores nuas - choupos, julgo -  que se ergue na margem portuguesa e que se reflete na água calma do leito pintada a azul celeste e cinza escuro, as cores que lhe sussurra o céu.

Finalmente o túnel 20. Atravesso-o com o prazer da realização, da certeza do sucesso. Cheguei ao fim, sinto-me bem e foi uma passeio fantástico. Mais ou menos as mesmas palavras que disse à Jimena, que por mim esperava no final do túnel, para se assegurar que não tinha ficado algures pelo caminho.

Esperava-me o carro e o regresso a casa. Estava com pressa; queria chegar a Almada ainda a tempo do ensaio do coro... ia ser à justa... já ia a andar mas lembrei-me que me faltava uma última foto, a da Jimena, que tão simpática e atenta fora.

"Posso tirar-te uma foto?"

Talvez surpresa pelo pedido, simpaticamente acede: "Sim, claro. Onde queres que me coloque"

"Ali, com a ponte por detrás."

Despeço-me à pressa e vou para o carro... troco as botas por uns ténis, atiro com a mochila para o porta bagagens...

No carro, ao volante, já não deito fumo... mas a vista da serra continua a desfilar ante os meus olhos... pouca terra.... pouca terra....úúuuuuuuhh.... úúuuuuuuhhh....

__________________________________________________________________________________________


O Águeda, que vem da esquerda,  junta-se aqui com o Douro e seguem juntos para Barca d'Alva, já ali, ao pé da ponte.

A velha Ponte Ferroviária Internacional do Águeda, e a ponte rodoviária que lhe fica atrás.

É aqui, não dá para enganar..!

Os edifícios da velha estação com as coberturas a cair.... mereciam melhor sorte...

O vagão de apoio ao Camino

O estranho veículo do Juan Luis

Um velho comando de agulha

A entrada para o túnel nº 1, o maior de todos e lar para uma colónia de morcegos

Alguns edifícios  de apoio à exploração da  linha ainda por ali se mantêm. Seria bom um painel com a explicação da sua função, embora a aplicação para telemóvel do Camino contenha um mapa com uma explicação sucinta dos vários pontos chave do percurso, de que me socorro para estas legendas, e onde leio que esta é a Guarita 21.

A ponte Pingallo, a primeira do percurso

Em contraluz permanente, a vista para o lado esquerdo suscita-nos a atenção para o vale do rio Morgáez, coberta por  diversa floresta madura.

uma choça de pastor, construção que tem estatuto de Património Cultural Imaterial da Humanidade, atribuído pela UNESCO.

Um velho poste, possivelmente de linha de telégrafo, mostrando os efeitos da paixão dos pica-paus pelos ditos.

Apenas pelo prazer de olhar, tanto aqui, como...


...aqui, como em várias outras fotografias que tirei...

A minha única companhia ao longo de todo o percurso....

... e o efeito resplandecente da contraluz na folhagem amarela de outono.

Um outro edifício não identificado

o túnel 2

A entrada para o túnel 3, também ocupado por outra colónia de morcegos, daí o gradeamento na entrada que, em certos períodos do ano, é fechado para impedir a passagem de caminhantes que possam perturbar os pequenos animais.


Algumas vistas do traçado alternativo ao túnel 3, que comprovam o interesse paisagístico do mesmo




O único mamífero que vi durante todo o percurso... uma impressionante marmota, que já ali devia estar há tanto tempo que se transmutou em rocha....

... para espanto de uma velha que a tudo assistiu e teve a mesma sorte....

... enquanto o Águeda prosseguia indiferente, também ele, o seu caminho...

A Ponte do Morgado, tão majestosa quanto as vistas que proporciona sobre as arribas do Águeda.

o final do túnel 3 mesmo antes ....

... do tabuleiro da ponte do Morgado....

e a vista que esta  proporciona..




Intrigado com tamanha aparição, julguei que fosse algum tipo de farol. Não, afinal era de um depósito elevado que em tempos abasteceu de água a construção da obra da linha e depois a aldeia de Fregeneda.




Os túneis proporcionam enquadramentos vistosos...

... como vistosa era a magnifica ponte de Poyo Valiente, uma das primeiras do mundo a ser construída em curva.



Não há como não gostar do toucado da guardiã do túnel 8, por estes dias pintado com nuances ruivas...


a condizer com os cogumelos que, aqui e ali, se vão vendo pela linha

acrescentando cor  ao dia, tal como o fazem as árvores


Socalcos e uma velha casa senhorial.. só podia ser o lado português...

As piteiras da índia que deste lado abundam crescem nos sítios mais incríveis, parecendo brotar diretamente da rocha

O Juan Luís e a sua magnífica máquina....

A ponte dos riscos...

... e a ponte das almas lá ao fundo. Em breve passaria sobre ela, mas primeiro....

... detive-me a observar a estrutura metálica em que assenta a ponte dos riscos.

Mais uma criatura fantástica, com ar de louva-a-deus  ou até mesmo de cão magricela....

um velho sinal que ainda subsiste à entrada para mais um túnel

O Águeda, mais uma vez

Os figos da Índia, que estavam no auge da maturação... ainda me senti tentado, mas não queria arriscar ficar com as mãos cheias de picos...


Os choupos na margem do Águeda

e as cores do outono, cá em cima


Atencion al tren, diz o letreiro....

A ponte das almas....

... e eu levava a minha cheia, e imensamente colorida..

Por fim o último dos túneis, o número 20...

...e a fotografia que não podia faltar... Obrigado, Jimena, em particular pela dica da alternativa ao túnel 3. foi uma caminhada perfeita!