sexta-feira, 26 de setembro de 2025

 GR11-E9 (Parte 13) - Nazaré - S. Martinho do Porto

24 de Setembro de 2025



A pouco e pouco, vou adicionando quilómetros a um projeto que se auto-insinua: palmilhar a sós toda a faixa ocidental do continente, tanto quanto possível e viável, sem desprezo por considerações de segurança, o mais próximo da costa que me for possível.

Em linha reta, seguindo os contornos da costa no mapa do Google Earth e medindo com a ferramenta da aplicação, a distância total andará pelos 700 quilómetros.

Estou, no entanto, certo que este valor será por certo ultrapassado por qualquer caminhante que a semelhante projeto se abalance, uma vez que a realidade muito poucas vezes se conforma com a certeza de uma reta. 

Não que o objetivo seja a distância pela distância. De facto, no início, nem objetivo havia. Como acima escrevi, ele auto-instituíu-se à medida a que as pegadas foram deixando caminho marcado na estrada, na areia, na lama, na terra batida dos caminhos que tenho percorrido.
 
Ressalve-se também que parte do percurso é partilhado com dois outros objetivos - esses sim -  já concluídos: O "Caminho Português da Costa" integrando a rede dos Caminhos de Santiago, no troço entre Porto e Caminha, e o "Caminho dos Pescadores", que percorri integralmente, entre Lagos e Sines.

Apesar de tudo estou ainda  longe de ter a costa concluída, pelo que não me alongarei por agora em súmulas ou conclusões, ficando-me, como habitualmente, pelo relato de mais uma boa etapa desta minha longa caminhada.

Nestes próximos tempos, procurarei tirar partido da rede de transportes públicos de curto e médio-curso, tentando fazer saídas de um dia que me permitam o regresso a casa, uma vez concluídas. Desta forma poderei encaixar as saídas com mais facilidade nas minhas rotinas. 

De facto, com um pouco de planeamento pré-saída, é possível concluir que, num país tão pequeno quanto o nosso, é exequível muitas vezes estruturar caminhadas de um dia, partindo e regressando à nossa morada habitual.

Foi o que fiz agora, tendo saído de casa pouco passava das seis da manhã, para me dirigir de autocarro e depois de comboio até ao terminal rodoviário de Sete Rios, onde apanhei o expresso para a Nazaré, onde cheguei, pontualmente, às 9h30.

Queria começar a etapa no farol da vila,  que aproveitaria para visitar, mas a recente paragem  para manutenção do elevador que nos transporta da praia ao sítio,  preocupava-me pois não sabia se chegaria a tempo de apanhar o autocarro  alternativo que partia às 9h40.

Consegui fazê-lo sem qualquer problema (o autocarro seguinte só partia 40 minutos depois....) e por volta das 10h00 estava então no sítio da Nazaré a dirigir-me para a fortaleza do farol, passando ainda pelo posto de turismo para obter mais um carimbo de passagem para  o meu caderno de viagem.

A caminho do farol não pude deixar de reparar que, sendo dia de semana, quase fim de Setembro, e ainda relativamente cedo no dia, já eram bastantes as pessoas que percorriam a estrada com o mesmo fito que eu, indicação da relevância que o meu país tem efetivamente em termos turísticos, com tudo o que isso tem de bom e de menos bom.

Um estranho ser de uma nova mitologia guarda a descida que, com o promontório da fortaleza no meio, tem  de um lado a famosa Praia do Norte, a das grandes vagas, e do outro, a praia e a vila da Nazaré.

Corpo de surfer e cabeça de veado, numa alegórica fusão do novo e do velho nas tradições locais, "O Veado", da escultora Adália Alberto, foi ali instalado em 2021 e por mim, pode por ali continuar muitos anos, embora uma placa com uma breve explicação da razão de ser de tal cruzamento não fosse despropositada, para quem visita e nada sabe da estória de D. Fuas Roupinho....

A fortaleza vê-se depressa e para além de uma sala com algumas boas fotografias  do temível mar que por ali se faz enorme em alturas do ano, muito procuradas por temerários candidatos à surfar a maior onda do mundo, o visitante pode passar por outra em que se alinham nas paredes pranchas de surf, para tal efeito utilizadas pelos nomes mais sonantes dessa  tribo de verdadeiros malucos...

O farol, em si, ocupa a esquerda alta do terraço da fortaleza  e, tanto quanto creio, ainda se encontra ativo.

Infelizmente, quando visitei o local tinham instalado umas grades em torno da "lanterna", provavelmente porque a linha amarela pintada no chão e o letreiro "não ultrapassar a linha amarela" não seriam suficientes para deter a sanha dos fanáticos das selfies e do instagram, 

Não pude deixar de notar também as simpáticas gaivotas do ceramista Mário Reis que em boa hora pousaram no muro... que bem que ali ficam.

O regresso ao largo da igreja é feito sempre a subir, pelo que aproveitei para retirar os bastões da mochila, sendo que só os tornaria a guardar já em S. Martinho.

Mesmo a direito, gosto de caminhar com os bastões, apoiam-me no equilíbrio, retiram alguma carga do corpo e das pernas, e são inestimáveis quando surge algum buraco ou desnível inesperado.

Desta vez não tive grande dificuldade em comprar uns postais  e a primeira paragem do dia fi-la numa esplanada onde para além da indispensável chávena de café aproveitei para os escrever, endereçar e selar (homem prevenido com selos, vale por dois....)...

retomado o caminho, lá fui andando ladeira abaixo, qual D. Fuas, montado nos meus fieis bastões, passando por ofegantes turistas que me respondiam como podiam ao cordial sorriso que lhes atirava...

Gosto de cumprimentar pessoas quando por elas passo na rua. Não o faço, obviamente, em geral, quando estou numa rua em que as pessoas não têm outra razão para ali estar que ser obrigatório ponto de passagem para este ou aquele fim. Agora, quando me cruzo com alguém que me pareça estar, como eu, a fruir a própria rua, o momento, o simples passeio, a caminhada matinal, muitas vezes acrescento ao sorriso um "Bom dia", sincero e amistoso.

E gosto de ver as reações...

Alguns, mais preocupados com qualquer outra coisa, ou alienados do passeio que comigo compartem por uma história qualquer, musical ou não, que os agora tão pequenos auriculares lhes debitam nos ouvidos, ignoram pura e simplesmente; outros arregalam os olhos surpreendidos, surpresos e sem tempo útil de reação; outros ainda respondem por mera educação ou cordialidade; mas há sempre aqueles, e vê-se logo na forma como o fazem, muitas vezes até sem nada dizerem, que retribuem com igual ou ainda maior dose de cordialidade, e como me sabe bem esta pequena marca de civilidade, de fraternidade de espécie...

Como esta senhora, francesa, pressuponho, que, parada, para descansar um pouco da subida,
e escondida num par de óculos verdadeiramente escuros, me responde sorrindo "oh là là!" ...

A meio do percurso constato que a Nazaré foi também já atingida pela epidemia dos baloiços patetas, tão do agrado dos devotos da modernidade comunicacional, e continuo sem parar , embora me tenha sentido tentado a fotografar um casal que rebuscava poses artísticas para deslumbrar os seus fieis seguidores...

Já cá em baixo passo pelo correio para expedir os postais que lá em cima escrevera e  sigo viagem sem me deter mais por ali que o suficiente para, já na marginal à praia, passar pelos secadouros de peixe, que brilham na prata dos carapaus que o sol lentamente desidrata e escurece.

Sinal dos tempos, numa banca de peixe seco, vejo para além dos carapaus um sem-número de outros peixes que não consigo identificar, tirando o polvo, por razões óbvias ou quanto mais não seja, por não ser um peixe. Mas o que mais me chama a atenção é a carne laranja que ali brilha também... salmão.... "Deve ser por causa das alterações climáticas...", cogito, "não tarda nada teremos pinguins na Nazaré também..."

No fundo da praia, entro pela marina fora para evitar andar na estrada, coisa que me desconforta sempre um pouco. Enorme e com uma secção onde se amarram uma apreciável quantidade de potentes motos de água, algumas das quais deverão ser as que prestam apoio aos "Deslizadores das ondas grandes"... Para além da perícia na condução, os pilotos destas máquinas devem ter o mesmo "desarranjo" mental que leva os outros a descerem ondas de quase trinta metros de altura, montados em placas de um qualquer polímero ou fibra...

Pergunto a uma pessoa com quem me cruzo se a marina tem saída do outro lado, já que todo o perímetro me parece vedado e não quero ter que voltar para trás....confirma-me que  sim, e algum tempo depois estou de volta à estrada, até que finalmente cruzo a ponte sobre o rio Alcoa que ali tem foz e entro por uma estrada de terra batida que me vai, por fim, levar para os trilhos que correrão paralelos à costa, sempre a muito pouca distância do mar e me conduzirão no fim da jornada à bonita concha de São Martinho do Porto.

Uma tabuleta indica "Igreja de S. Gião". Saio da estrada para ir ver do que se trata. Um estranho edifício, com ar de ter sido alvo de recente intervenção" implantado no meio de uma área agrícola. Uma das fachadas parece uma normal edificação, com duas portas e duas janelas no topo... quase o alçado de um qualquer armazém, mas, de lado, uns bonitos arcos e capiteis de pedra trabalhada. Pena estar fechada, gostaria de ver lá dentro, onde mais arcos se deixam vislumbrar...

Leio depois que as origens remontam ao sec. VII e que constitui possivelmente um dos raros exemplos de templo asturiano conhecidos no nosso país. 

Ao lado, uma secção de aqueduto parece vir do nada e a nada conduzir...

Aproveito a sombra que enche a parede insuspeita do edifício e o facto de um degrau sobrelevado se encontrar à altura certa para sobre ele depositar a minha pessoa, para descansar um pouco e comer uma sandes e um iogurte que tinha, como sempre, trazido comigo.

Enquanto mastigava refletia sobre o facto de um dos prazeres de caminhar ser, sem dúvida, a descoberta. Nunca por aqui teria passado,  se não fosse pela razão porque agora o fazia e isso enchia-me de contentamento e motivação para continuar.

Ao longo da longa praia do Salgado, a pista corre com algumas secções em areia solta, a minha mais odiada Némesis, mas não há outro caminho e, na verdade, a extensão deste tipo de piso não é muito grande, estando para mais intervalada por trechos de terra firme, o que torna a progressão bastante mais fácil.

Por aqui não passava há dezenas de anos. Lembro-me de um fim de semana em que algures nestas dunas acampei com uns amigos....ainda andava na faculdade....ainda a minha barba tinha cor, mas ninguém o sabia, porque a fazia todos os dias....

Volto a subir. Há que ganhar cota para ultrapassar a extensão de arriba que divide a praia do Salgado da Praia da Gralha.

Aqui e ali avisos em cartazes chamam a atenção para a perigosidade do solo, extrema e profundamente fissurado. Sinto desconforto ao olhar para as fissuras que separam enormes blocos de arriba do chão que piso, passo esta secção em modo de passo apressado, até reganhar o solo mais reconfortante da estrada de terra batida que me irá conduzir à estrutura dedicada à descolagem de parapente, instalada no topo da arriba da praia da Gralha.

A atividade é imensa, com muitos parapentistas tirando partido das correntes ascendentes que por ali se formam, manobrando as vistosas asas insufladas com mestria e óbvio prazer.

Faço algumas fotografias e aproveito também para descansar um pouco, que São Martinho já não está longe.

Sigo pela estrada que me irá levar ao promontório do Miradouro do Facho.  A baía de São Martinho desenha-se no horizonte, para leste, e é para lá que me dirijo.

Antes de entrar na vila propriamente dita, quero ainda ir visitar o pequeno farol que marca a entrada na baía, no fecho norte da majestosa concha.

No regresso do farol, palmilho as poucas centenas de metros que me separam da marginal da vila e do banco de jardim, à sobra das árvores, em que me sento para descansar e comer a outra sandes que comigo trouxera. Tinha completado mais uma etapa com sucesso e agora restava-me o tempo de espera até ao autocarro pelas 19h00 que levaria de novo ao terminal de Sete Rios e ao comboio para a margem sul.

Procurei, como sempre o posto de turismo. Não havia carimbo, disse-me a simpática senhora, mas tinha melhor, disse-me, um pequeno e colorido autocolante, etc etc.

Depois de fixar o autocolante e de por baixo assinar com a data, disse-me "Olhe, talvez as colegas da junta possam pôr o carimbo"...

"Boa ideia" respondi. "É perto a Junta?"

 "É lá em cima, já lhe mostro... ah. Mas até vou telefonar primeiro para lhes perguntar.... oh... mas já são três e cinquenta e nove... fecham às quatro.... sabe, jornada contínua... já não vai dar"

Agradeci na mesma. À sua maneira tinha sido diligente e cordata, mas não haver carimbo no posto de turismo é também um pormenor que me irrita.... por certo não teria sido o primeiro a pedi-lo, tanto assim é que a senhora tinha a folhinha dos autocolantes sempre pronta.... 

"Sabe como é, este posto é da Junta, e eles lá em cima é que sabem..." 

Como tinha tempo a mais para queimar, fui procurar um postal para me enviar e lá fui ainda assim, mesmo sabendo que estava fechado, ao edifício da Junta, já que era nela que funcionavam os correios e que existia, suspeito, o único marco para depositar o mesmo, em toda a vila.

Cumpridos na íntegra todos os formalismos de viajante, dirigi-me para a paragem do expresso ao lado de um grande supermercado, em cujo café aguardei a cerca de hora e meia que me faltava até iniciar o regresso a casa, de onde agora, escrevo estas linhas, já mais de vinte e quatro horas passadas, mas ainda com umas irritantes dores nos tendões de Aquiles que me obrigaram já a marcar uma consulta de ortopedia....

Do resultado falarei um dia, a propósito da próxima etapa, que ainda não sei onde será.




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O veado parece perscrutar o horizonte 

talvez a procura de ondas na famosa praia do Norte,..


A caminhada do dia ir-me-á levar à reentrância no horizonte,
em frente ao bico esquerdo da rocha

O forte quinhentista de S. Miguel Arcanjo e o farol da Nazaré...

...habitat de curiosas gaivotas..







...que, pelo que se vê, se portam melhor que muitos dos humanos que por aqui passam...
Vai uma fotografiazita para o insta, vai?


A praia da Nazaré, vista do Sítio...

e vice-versa.


Os famosos carapaus a secar no solário

e a gama completa da oferta





A entrada para o porto de abrigo e marina



Há muito tempo que não via um pinheiro a ser sangrado...

Ruinas modernas, contrastam com ruínas muito mais antigas da


Igreja de S. Gião

preciosa, a talha da pedra....sec VII, dizem....

Não lhe corre água em cima, apenas o vento, mas só pela forma merece ali estar

A estrada que corre paralela à praia do Salgado

e uma colónia de Erva das pampas (Cortaderia selloana).


Uma pedra cheia de fósseis, que alguém virou no caminho.




No fim da praia do salgado, o horizonte anuncia já a Berlenga, as Estelas e os Farilhões 

Icnofósseis numa pedra do caminho

A praia do Salgado com a Nazaré ao fundo

As primeiras flores de urze que vi este ano




a passagem entre a praia do salgado e a praia da Gralha. Um pouco mais à frente,
toda a arriba ameaça ruir, com profundas fissuras e grandes blocos já totalmente separados....

Praia da Gralha


Salto? Não salto?

"What goes down...

must come up...."




A concha de São Martinho do Porto, desde o miradouro do Facho


a entrada da baía, guardada de um lado pelo farol e, do outro, pela capela de Santa Ana


De farol a farol... fim da viagem!

quarta-feira, 17 de setembro de 2025



Colaboradores de todos os Países, Uni-vos!




Precisa-se colaborador,

que há muito para fazer.

Pode ser branco ou de qualquer cor

e até lhe damos de comer.

Só não poderá trabalhar,

que é coisa ultrapassada,

ou haveria que justificar 

não ter salário, mas mesada…

E ademais, colaborar…,

ele haverá verbo mais justo

para quem venha aqui suar

a preço de saldo e baixo-custo?


Saudemos pois o nobre anúncio

e a humanidade do eufemismo,

insuperável  abrenúncio

pr’ó cheiro vago a comunismo

que emana de "Trabalhador",

palavrão torpe e desfasado

da realidade e do valor

que "Colaborar" tem demonstrado.


terça-feira, 9 de setembro de 2025

 GR11-E9 (Parte 12) - Outão - Setúbal

05 de Setembro de 2025



Havia este pedacito por fazer... tinha ficado "pendurado" desde a minha ida de Sesimbra ao Outão, à precisamente dois meses atrás. Era pouco, mas, na altura, as pernas já acusavam cansaço e o que faltava acrescido ao que já tinha então caminhado, iria atirar a etapa para perto dos 30 km. Não valia a pena sobrecarregar as solas, tanto mais que Setúbal era facilmente acessível por comboio a partir de casa, pelo que poderia concluir a ligação quando me apetecesse...e foi hoje então!

Uma etapa fácil, sem subidas, mas com um senão: queria fazer a parte que ia da Comenda ao parque urbano de Albarquel pela areia, porque me parecia muito mais interessante que a estrada, ladeada que esta está de árvores que impedem uma vista franca para o lado do mar.

Este desejo pressupunha a necessidade de o compatibilizar com uma maré baixa o suficiente para não molhar os pés, em particular num curto troço na praia de Albarquel em que umas agulhas de rocha caem mesmo a pique até mar sem que haja muito espaço para passar, a não ser na baixa-mar.

Consultadas as tabelas de marés, que não há melhor oráculo para estas coisas, teria uma valente baixa-mar às 8h09... 

O Google maps avisava-me que só poderia chegar ao Outão por volta das 9h30 (há muito poucas ligações a partir de Setúbal), pelo que deveria estar a cruzar o tramo crítico por vota das 10h00...

Não era ideal, mas deveria estar no limite da janela para passar com os pés secos. Perfeito.

6h25, dizia o telemóvel quando fechei a porta de casa para me dirigir à paragem de autocarro, mochila leve mas precavida (sapatos de neoprene e toalhita para limpar a areia dos pés, não fosse serem precisos, muda de t-shirt, sandes, água.. enfim, nada mais que o essencial).

Ainda não eram oito e estava já em Setúbal, saído do comboio que apanhei em Corroios. Esperava-me agora meia hora de espera (a duplicação dá mais força à ideia, acho.... ) que mais difícil se tornou por, a meu lado, na paragem, estar um grupo de senhoras que ia para a praia da Figueirinha passar a manhã.

Por si só, tal facto nem facto seria; o caso é que uma das senhoras, de 75 anos feitos, não deixou de proclamar, conseguiu preencher todos os segundos da espera com um ininterrupto solilóquio (as outras senhoras, que eu desse por isso, apenas participavam na ação com vagos assentos de cabeça e um ou outro, "pois" ou "ah...!").  E a qualidade da intérprete era tal, que levou a execução para dentro do autocarro e nele continuou, até que, por fim, com a abertura das portas no Outão, a deixei finalmente de ouvir...

A mesma paragem, a mesma poeirada branca a cobrir tudo... sim, foi aqui, ao pé da Secil, que tinha ficado da outra vez... toca a andar que ainda por cima é a descer...

A manhã anunciava-se fresca nas previsões e eu sentia-o agora na pele dos braços e das pernas, sem resguardo de tecido. Iria ser assim durante mais uma hora, até ao sol sair por detrás das nuvens que o cobriam por agora.

Rapidamente cheguei à curva de onde se avistava a foz da ribeira da Comenda e a praia de Albarquel... sim. parecia possível passar ao longo da costa, mesmo na zona que mais me preocupava.

Assim foi. Ladeando o gradeamento do altivo palacete onde, reza a história,  Jackie Kennedy fez o luto depois do assassínio de John F., fui andando Foz do Sado abaixo, com a facilidade de pisar areia húmida e dura. Aqui e ali pescadores tentavam a sua sorte e, dentro de água, um ou outro vulto perscrutava as rochas na busca de polvos. 

Aproximei-me o mais que pude de uma senhora que também o fazia na praia da Albarquel, de negro vestida num fato integral de neoprene que só lhe deixava ver o cabelo avermelhado:  

"Então, teve sorte hoje?" 

"Olhe, não me posso queixar;  não me safei nada mal: já tenho para aí uns seis ou sete quilos de polvo", respondeu-me com um franco sorriso e a satisfação espelhada no rosto.

Um pouco mais à frente, pela primeira vez, tive que deixar a areia e subir uma ou duas rochas cobertas de limos e imensamente escorregadias, para evitar pôr os pés na água. A escolha de tempo tinha sido perfeita e no limite. Mais meia-hora e teria tido mesmo que me descalçar, para poder passar por ali, já por dentro de água.

O sol baixo, de frente para a praia, dourava o horizonte a contraluz. Troia, lá ao fundo, o ferry para os endinheirados, e o canal do rio, a espaços sulcado por embarcações de grandes dimensões, saídas do porto de Setúbal.

Nas praias, só gente da minha idade... e pouca. Passeiam, eles com eles, falam de pesca e futebol; elas, igualmente com elas, contam as façanhas dos netos, o último mexerico da rua. As aulas já começaram, o verão dá os últimos estertores, a temperatura da água não é propriamente convidativa... por ali ficam, debaixo de um ou outro chapéu de sol, até que seja hora de voltar a casa. 

Passo o forte de Albarquel e a areia, ao chegar à zona do parque urbano, torna-se mole, solta, daquela sobre a qual detesto andar. Rapidamente subo para o paredão do parque, e procuro um banco de jardim para me descalçar e retirar alguma areia que só neste último pedaço acumulei dentro dos sapatos.

Dali à baixa de Setúbal é pouca já a distância. Aproveito para fotografar este ou aquele detalhe que me suscitam a atenção.

Uma senhora olha fixamente para a relva... pergunto-me se terá perdido alguma coisa e dirijo-me a ela para tentar ajudar.... então reparo na pequena tartaruga amarela que passeia no escalracho municipal...

"vim passeá-la, que coitada também precisa de apanhar ar" diz-me em português tão bom como o meu, mas com um ligeiro sotaque, que adivinho de leste.

"Então e onde a encontrou?" pergunto, já que não me parece nada ser espécie que pelos nossos lados se veja.

"Ora, comprei-a".

Peço para a fotografar juntamente com a pequena tartaruga... não aceita, não gosta de ser fotografada... não insisto, despedimo-nos com a cordialidade de um sorriso.

Oficialmente, o caminho, para mim, terminava no cais de embarque do ferry para Troia, pois será daí que um dia seguirei para sul, para fazer o que depois falta até Sines, já que da cidade alentejana para baixo, já tudo percorri.

Lá chegado, aproveitei um posto de turismo que ali encontrei para recolher um carimbo para o meu caderno de viagem. 

Deveria estar pelos 7,5 ou 8 quilómetros percorridos. Pouco, na realidade, e fácil, como tinha antevisto. Optei por não desligar a aplicação de gravação da caminhada e fui em busca de postais para enviar, como habitualmente.

Depois de muito procurar e de muito recusar, lá comprei uns postais, se é que a pedaços de papel grosso fotocopiado isso se pode chamar.....

Já o disse várias vezes, mas hoje em dia, comprar um simples postal é coisa que nem me surpreenderia alguma vez ver como argumento central para a centésima décima parte da "missão impossível", tão só o Sr. Cruise aguente...

Os primeiros que encontrei ostentavam no escaparate uma etiqueta onde se lia 1,5€. Papel menos mau, mas fotografia e impressão verdadeiramente beras. Nem pensar.... lá os deixei arrimadinhos ao escaparate da "loja de souvenires" (assim a dita se apresentava) que os propunha.

Ah ah! Uma loja chinesa. Vou experimentar aqui.

Alguns postais normais, já encaracolados pelo tempo. escolhi dois. "Quanto é?"; "um euro e oitenta"; "O quê? Noventa cêntimos cada postal destes... onde já se viu? Não dou mais que 50 cêntimos"; "Não. Noventa cêntimos cada"; "Então fique ai com eles a encaracolar na caixa, obrigado"

Mais à frente por fim encontrei uma nova loja chinesa que propunha uns postais manhosos, impressos claramente em fotocopiadora, em papel mais grossito. Não iria procurar mais. Já estava farto da história. Além do mais, tudo na loja estava com desconto de 50%, avisou-me a menina da caixa, por isso dois eram só 75 cêntimos. "Arrematado" declarei-lhe, e saí para a rua, pronto para ir procurar uma esplanada onde pudesse sentar-me um pouco para escrever os malfadados postais.

De caminho passei ainda pelo famoso mercado do Livramento... e livramento eu precisava depois de ver alguns dos preços que ostentavam as bancas de fruta e peixe... como é possível? Seguramente a proximidade chique de Troia a Melides está a ter reflexos na fruta, pensei eu para com os meus botões, em modo de economista de algibeira....

A volta chegava ao fim. numa esplanada na Av. Luisa Todi escrevi os postais e depois segui direito para o correio (outro dos lugares de grande aventura hoje em dia...: pode-se comprar um alarme para casa, livros para ler nas horas vagas, houve tempo em que até lotarias vendiam, mas comprar selos, isso é que é um verdadeiro problema... "mas não têm aqui filatelia?"; "Temos, mas a colega que trata disso não está...; olhe se quiser deixar pago, pomos um selo depois e expedimos, não lhe posso é passar agora recibo"... 

Admito que fiquei contente com a atitude da senhora que me quis verdadeiramente ajudar e lá deixei os postais e o dinheiro, grato pelo favor que ela me iria fazer, mas é uma vez mais uma imagem de um serviço público que me deixa verdadeiramente descontente e triste, porque não era preciso que assim fosse, para mais depois de ter passado quase uma hora dentro da estação de correios, cheia de gente e apenas com duas pessoas a atender....

De caminho até à estação do comboio, onde iniciei a viagem de regresso a casa, ainda passei por algumas vivendas com elementos de arte nova, coisa que sempre me agrada descobrir...

O caminho para sul, farei só no fim de tudo. O troço entre Troia e Sines, parece-me o mais desinteressante pedaço da nossa costa ocidental.... areal, areal, areal e pouco mais.

Procurarei, por isso fazer o que me falta para Norte, entre Ovar e o Cabo Carvoeiro... 

A ver vamos como será... e aqui também o contarei!



 O inenarrável "postal" que eu comprei em Setúbal...., por certo fotocópia de um postal normal, desses que se encontravam em toda a parte e que agora...
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Setúbal. Sou recebido à porta da estação por um curioso menino que brinca com um comboio miniatura..., 


Outão - a paragem de autocarro onde terminei a ligação vindo de Sesimbra e iniciei o caminho para Setúbal...


... de onde partirei um dia para Troia, para ligar a Sines.


Atractylis gummifera, são fascinantes as plantas que florescem quando as folhas já estão secas


Uma velha construção muito "estado novo"...


... até nos azulejos...


O palacete da Quinta da Comenda.... 


...e a ponte sobre a ribeira da Comenda, no parque de merendas que, em boa hora, foi devidamente infraestruturado para fruição da população em geral




Um  pobre animal couraçado que  jaz dormente na areia da Praia da Comenda.




Mau dia para se ser polvo....



Uma grande garra ergue-se vertical, da areia... perfeito para, nas noites de lua nova, algum tritão sair da água e ali coçar as costas...




A saída da barra... lembra-me o poema do Lord Tennyson, "Crossing the bar"...



Bonitos, os murais dos barracões da Academia de vela 


Que estórias por contar? uma fábrica conserveira?




Não resisto à beleza triste da decadência... deve ser por isso que evito olhar no espelho....




Ó Zeca, és um malandro...
.


A pequena tartaruga que tem a sorte de ter quem com ela se preocupe...



Gosto quando andar na rua nos parece visita de museu, seja pelo traço modernista do edifício da antiga lota  ...


... seja pelos murais que, aqui e ali, enchem a cidade de cor.


O cais dos ferries para Troia. Daqui sairei um dia para palmilhar o que falta até Sines.


Podia ser Lisboa, mas é Setúbal.


Mais arte "estado novo": Painel cerâmico no edifício do Inatel


Mercado do Livramento


As bonitas estátuas - a terra, o mar e a poesia - que, mesmo de dia, enchem de  luz a fonte luminosa 


Convento de Jesus


Um dos vistosos "Pasmadinhos" do parque do Bonfim




Arte Nova no Bairro Salgado 

Próxima etapa a partir de aqui?: Ligação Troia - Sines.