domingo, 20 de julho de 2025

 


Torto, retorcido, alheio aos grilhões da simetria, assim é o sobreiro de que eu tanto gosto no Parque da Paz.

São várias as árvores que por ali me chamam um olhar calmo, demorado; creio que sobreiros, todas, as que mais me fascinam.

Esta, em particular, cativa-me pela desconcertante beleza do caos em que se perpétua, a caminho do alto, da luz, do céu, que lhe é teto e sopro de vida.

Fá-lo de braços abertos.

Gigantes, longos, fortes, procuram outros, de sobreiros, como os seus, que os há, vários, a seu lado.

Comunhão de interesses, íntima afinidade, dir-se-ia, entre familiares, conhecidos, vizinhos... mas eu desconfio que assim não seja, ao olhar para o montado inteiro que lhe nasce do tronco quando este se lança num último e múltiplo desdobrar.

Nada então lhe penetra a copa, que não seja ar, que não seja luz, que não seja o raiar dourado de um sol que se põe em fim de dia!




terça-feira, 15 de julho de 2025

 Arte Nova



Nova, a arte cai de velha

no azulejo, que não está,

na patina, que lhe dá

nobre ar, fugaz centelha. 


Velho, olho a janela

que, do tempo, resiste à prova.


Tal como é, acho-a bela:

Ainda arte, ainda nova.


quinta-feira, 3 de julho de 2025

David Crosby -  If I Could Only Remember My Name


Source: David Crosby Discography - Progrography

Queria ser genial como tu….escrever canções maravilhosamente complicadas… ter o mesmo veludo na voz quando a derramavas em harmonias desconcertantemente belas… saber como afinar a minha guitarra para que pudesse copiar-te (nada daquilo eu conseguia tocar com a afinação e as posições que me auto-ensinara)….

Ah, mas mais que tudo queria ter um bigode como o teu… aquele da fotografia em que seguravas uma pistola embrulhada na bandeira americana…

Se eu pudesse ao menos lembrar-me do meu nome…. 

Que fantástico título para um disco… que fantástico disco… não sei quantas vezes o toquei no gira-discos que o meu pai nos comprara e que estava longe de te fazer justiça, mas que era tão bom quanto o melhor que alguma vez tinha tido.

Voltando ao bigode… o meu começara a crescer havia já algum tempo, mas não dava para nada daquilo, assim… volumoso, notório, desafiante… ligeiramente aristocrático… por si só uma afirmação de posicionamento…

Nada da excentricidade  manhosa do Dali, muito menos da vaidosa e eternamente cofiável fina risca pilosa do Tonico Bastos, que eu tanto gostava de ver na televisão….

Music is love

Começava logo por aqui. Era o que eu achava (e, em grande medida, continuo a achar).

Eram horas infinitas de música, com os amigos, no recreio do liceu, nos bancos do jardim, nos muros da rua.

Preferia de longe a música à matemática. Sabia de cor as letras, que não os teoremas. A música, fazê-la, tocá-la, cantá-la, dava-me o olhar e os ouvidos dos outros… deles e… delas.

No meu pequeno universo de rua, tinha a vantagem competitiva de conseguir tocar e cantar algumas canções

que soavam diferentes daquilo que a rádio mais tocava

o que fazia de mim um puto um furo ao lado do vulgo, quase uma semi-excentricidade, um propenso intelectual ou simplesmente um palerma armado aos cucos.

O que eu não tinha era um bigode assim, como o teu. Nem conseguia tocar a maior parte das canções que de ti bebia… aqueles acordes esquisitos, aquelas harmonias de catedral ou aquele vibrante balanço elétrico… tudo tão diferente, tudo sempre tão intensamente novo….

Cowboy Movie

Não era de estranhar. 

O bigode, a pistola, a bandeira, mesmo os cabelos longos, era-me fácil imaginá-los cravados no estereotipo… 

Só muito mais tarde percebi toda a letra, mas o balanço, oh o balanço, empurrado pelas cordas grossas do baixo, dos acordes das guitarras em síncope, entrecortados por curtos e dilacerantes solos... tudo aquilo a concorrer para um fulgurante crescendo de tensão… a voz que começa doce e acaba em gritos, a história que do inicial optimismo se encaminha para a explosão trágica no fim…tudo por causa da mais velha das armadilhas … a sedução…

Tamalpais High (At About 3)

O óbvio, uma vez mais: nunca aqui chegaria. 

Uma longo exercício de improviso após uma belíssima melodia harmonizada com cores que me lembravam tempos idos que eu ainda não conhecia. 

Que poderosa tem de ser a música para me fazer lembrar o que não conhecia… e, no entanto, era-o. 

Mais tarde ouviria Bach, Handel, Monteverdi, os madrigais de antes deles  e sei que tu os ouviste também, muito melhor que eu, que da música só papagueava o que os ouvidos e não os pentagramas me deixavam perceber.

O meu caminho foi, portanto, inverso. 

Ouvi-te a ti, e a outros, que me mostraram que nada daquilo tinha começado na mesma altura em que eu nascera…

Era massa que levedara… lenta mas copiosamente… do cântico denso dos monges à enxurrada sensorial das grandes peças sinfónicas corais do séc XIX. 

Percebi-o quando fui procurar atrás, movido por harmonias densas como as que tantas vezes saltam das estrias deste disco, ou pelos acordes  dos sagrados criadores, refundidos por outros que contigo ombrearam na prateleira do génio…

Laughing

Luminosa toda esta canção, como luminosa é a conclusão da mesma: o riso de uma criança equivale ao monólito de Kubrick.

Nunca saberemos… estaremos sempre equivocados nas nossas inquietações …. É a nossa natureza e a nossa infinita insignificância na enormidade do universo.

Caminhamos suspensos por um fio…, tecido no despreocupado e delicioso escorregar de uma pedal steel guitar…como numa imensa tirolesa… que um dia, infalivelmente,  esbarrará no muro, na enorme pedra, no sorriso da criança...

I was mistaken…. Only a child…. Laughing…. In the sun…..

What are their names

Perguntavas na altura… do país que era o teu e via os seus filhos consumirem-se no “apocalipse agora”… 

Também eu tinha sentido o mesmo por perto. Felizmente houve cravos na minha rua e eu não fui obrigado a tomar decisão maior que seguir ciências ou letras… e tão complicado era eu que andei pelas duas…

O que lhes querias dizer então, quererias hoje repetir; agora que a boçalidade milionária, de-mo-cra-ti-ca-men-te escolhida, se pretende farol.

A Paz não é nada demais para se pedir….

Traction in the rain

Talvez a mais pessoal de todas as canções pessoais (e são-no todas) deste disco, fruto de dor, perda, desalento,  rezam as crónicas.

Talvez por isso não me suscite mais que deixar embrenhar-me no complexo  tecido instrumental que a reveste para neles descobrir a beleza inesperada dos arpejos e glissandi de uma autoharp…

Song with no words

Tudo pode ser tudo. Basta que o queiramos. Para tudo há palavras escondidas. O truque é saber se vale mesmo a pena convocá-las.

A mim acontece-me frequentemente. E não menos amiúde opto por não as usar, poderosas que são e mau gestor que delas sou. Peso-as, hesito, guardo-as de novo. Não que nunca as deixe escapar…. mas nem sempre fico contente por o ter feito… não procuro a confrontação como exercício de afirmação ou polimento de ego.

A harmonia pela harmonia, ars gratia artis. Nem todos o conseguem, é preciso mestria, saber, experiência… e talvez um bigode assim como aquele que eu um dia quis ter, mas que nunca arvorei….

Orleans

Levei 50 anos a perceber esta canção. Só agora, graças ao advento da internet e da porta aberta ao mundo que ela nos dá, entendo a razão porque nomes de localidades em França são iteradas em contínuo, como se de um caminho no mapa se tratasse…

Na verdade trata-se de um arranjo (magistral) de uma canção infantil francesa do sec. XV que ainda é bastante popular  parece, ao estilo do Frére Jacques…

Só uma voz, a que se esconde atrás do bigode que eu tanto quis ter um dia,  em múltiplos desdobramentos…. O mesmo com a guitarra.

É, portanto, mais um caso de I was mistaken, only a child….

I'd Swear There Was Somebody Here

Etérea, estranha, misteriosa, inquietante é a paisagem. E no entanto, intensamente bela. Mas quando pensamos que se encaminha para a luz final com um pleno e largo acorde luminoso, maior, os últimos dez segundo deixam no ar de novo a dúvida… como se por momentos tivéssemos tido a certeza , mas logo constatássemos que, afinal

I was mistaken…. Only a child laughing… in the sun.


quarta-feira, 2 de julho de 2025

 

Castelo Novo

Não me é fácil ignorar o chamamento de um marco geodésico. Seja sabendo que existe estrada até lá chegar, e que assim o posso fazer no conforto do ar condicionado do carro, protegido do sol inclemente que, lá fora, atira o mercúrio dos termómetros para posições na escala riscada a vermelho sobre o vidro que desencorajam o mais intrépido caminhante; seja como prémio para pernas moídas e respiração ofegante, no final de mais uma subida exigente, em um qualquer passeio de descoberta, daqueles que, por vezes, me reclamam.

A ele chegado, resisto sempre ao óbvio, que seria olhar para baixo. Isso farei depois, e, seguramente, com o enorme contentamento que a descoberta do mundo desde um ponto elevado sempre nos transmite, criaturas habituadas a um horizonte rasteiro, tantas vezes obscurecido ou mesmo tapado, que nos habituamos a ser, desde os mais tenros dias da nossa fugaz, diga-se, existência.

É a forma que sempre me suscita o olhar. O inusitado cilindro branco com um pequeno tronco de cone em cima, ou a pirâmide, também ela branca. Ambos por vezes com uma camisola de risca preta, que tão bem lhes vai...

Nada naqueles sólidos geométricos parece natural, expectável.

É como se à chegada à superfície lunar, Neil Armstrong desse de caras com uma forma perfeita, erguida numa superfície que se sabe tudo menos isso. 

E, no entanto... nada nos marcos me fere a vista, as sensações. Pelo contrário, acho-os, na sua grande maioria, plasticamente interessantes, um bom motivo para uma fotografia mais cuidada composicionalmente. 

Habituei-me a desejá-los, a visitá-los, sempre que possível. Por eles próprios, mas porque também os sei promessa de vistas desimpedidas.

As tais vistas a que então me permito, depois de os ver por aquilo que são.


Perto da Praia da Bordeira