quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Notas de viagem roubadas a um diário que não escrevi,
em partes, 
tantas quantas me promete a memória

Journey notes stolen from a log that I haven't kept,
in parts,
As many as my memory can promise

XXIII

Segunda-feira, 12 de agosto

Regresso... palavra que em si própria encerra uma inata ideia de contradição; oximoro de sentidos;  conflito de vontades.

A essência da viagem é estar preso, por antagónico que tal possa parecer. Como se um enorme fio elástico nos prendesse ao ponto de partida. Por isso se vai e se se volta; se regressa.

Ainda assim, regressa-se mas não se volta ao mesmo, que o tempo o não deixa, por isso o próprio regresso é  partida e descoberta; é viagem. Iniciemo-la pois:

Chegamo-nos à costa, o pouco de costa francesa que nos resta até cruzarmos outra vez a fronteira. Está uma manhã clara, luminosa. É segunda-feira e sente-se no tráfego, que enche a estrada. Fila também para o supermercado. Resignamo-nos: também queremos lá ir, comprar o isto ou aquilo que lá não há, as sandes para o dia, o gasóleo mais barato.

O balcão da charcutaria é um ninho de atarefadas térmitas: do lado de dentro, as frenéticas obreiras pesam e acondicionam as requisitadas porções de comida prêt-à-porter que, do lado de fora, as guerreiras, marcialmente ordenadas pelas senhas numeradas do habitual caracol, exigem com belicosa postura. Entre a choucroute e o sempiterno poulet rôti um sem número de saladas, assados e guisados, faz caminho para as caixas transparentes de plástico que logo vão ser almoço de mais um dia de praia… comme c’est chouette les vacances….

To return… a verb that contains an inherent contradiction; an oxymoron of senses; a conflict of will.

The essence of the journey is to be imprisoned, as antagonistic as it might sound. As if a long elastic thread would tie us to the departure point. That’s why we leave only to come back again; that’s why we return.

Still , we return but not to where we left from, since time will not allow it. Thus, the return leg is itself a departure, a discovery; a journey. Let’s begin it, then:

We drive close to the coast so as to follow it, the scarce bit of French coast that we’re left with until we cross the border again. It’s a radiant, luminous morning. It’s also Monday and we feel it on the traffic that fills the road. There’s also a queue to the supermarket. We resign ourselves to our fate: we also want to go there, to buy the “this or that”  that isn’t available at home, the sandwiches for the day, the cheaper diesel.

The charcuterie counter is nest of busy termites: inside, the frenetic workers weigh and pack the required portions of prêt-à-porter food that the warriors, on the outside, martially organized by the numbered tickets obtained from the usual red ticket dispenser, demand with  bellicose stances. In between the choucroute and the sempiternal poulet rôti, an unaccountable number of salads, roasts and stews ends up being spooned into transparent plastic boxes, that will later be the lunch of another beach day… comme c’est chouette les vacances….


XXIV

Refeitos também nós de vitualhas e de algumas coisas “que não há lá”, retomamos  a estrada. Perto de Hendaye um sinal chama a atenção para o Château Observatoire Abaddia. Porque não?

Restocked of victuals and some things that fall into the  “we don’t have this back home,  do we?” category, we take to the road again. Close to Hendaye a sign calls on the traveler’s attention to the Château Observatoire Abaddia. Why not?


Baía de Hendaye

Viramos na curva do caminho que lhe dá acesso e somos surpreendidos pela imagem de uma magnífica mansão neo-gótica, ocupando isoladamente uma larga propriedade que  se estende por um vasto prado verde até ao mar.

We turn right, on the bend that gives access to the site it and are suddenly surprised by the image of a magnificent neo-gothic mansion, standing isolated amidst a large estate that spreads over an extended green meadow that runs to the  sea.


Château Observatoire Abaddia





É cedo. Ainda não abriu para visita e de qualquer modo o nosso programa para o dia não o permitiria. Ficamos por uma volta por fora que ainda assim dá para nos apercebermos da grandeza da construção, das inusitadas aplicações de animais exóticos sobre as paredes e escadas – aqui uma serpente, ali um jacaré e mais além um búzio –, da deslumbrante vista que se obtém sobre toda a baía de Hendaye, das traseiras do edifício. Se isto é assim por fora, penso, por certo que, por dentro, valerá a pena ver. Mas o relógio não para e a estrada é longa.

It is early still. The mansion isn’t open for visitors yet and our program for the day would not allow it, anyway. We stick to a walkaround on the outside that lets us to grasp the grandeur of the building; the unexpected  applications of exotic animals on the walls and stairs – a serpent here, a crocodile there, and a large conch, further afield –;  the breathtaking view that can be had over Hendaye’s bay, from the back of the building. If it does look like this on the outside, I’m sure that the inside will certainly be worth taking a peep. But the clock won’t stop and the road is long…




A linha férrea, a estação: tinha 20 anos, uma mochila, e uma vontade imensa de conhecer e sair (hoje só tenho mais idade…). O Sud Express chegava ali, ao outro lado, a Irún, e depois mudava-se aqui em Hendaye, de comboio e bitola.

Hoje a bitola, a minha, que não a do comboio, é outra, mas olho e lembro, com alguma nostalgia que,  não adianta negar, acompanha os pelos brancos da barba e a falta deles na cabeça, as horas aqui passadas entre o cansaço de uma viagem longa em comboios apinhados e o frisson da descoberta, da primeira vez…

E de repente Espanha, outra vez, Irún, sem policias, sem passaportes, sem alfândegas, sem parar. Seguimos para Sul, deixando de vez o País Basco e entrando em terras de Navarra, mais uma das comunidades autónomas, dos fragmentos do imenso e complexo puzzle que é a Espanha.

The railroad, the station: I was 20: a backpack and an endless appetite for knowing and leaving (I guess these days I’m only older..). The Sud Express would get us there, to the other side, to Írun, and then we’d change here at Hendaye, of train, of gauge.

Nowadays, the gauge - mine, not the train’s,- is different, but I look and remember, with a bit of the nostalgia that goes hand in hand with the white hairs of the beard and with their absence on the head, the hours that I spent here, in between the weariness of a long trip in overcrowded trains and the excitement of the discovery, of the first time…

And all of a sudden, Spain again. Írun, without policemen, passports, customs, stopping. We keep going south, leaving the Basque Country and entering Navarra, another of the autonomous communities, of the fragments that make up that huge and complex puzzle that goes by the name of  Spain.



XXV

Pamplona

Não aprecio touradas, mas Pamplona tem o atrativo de anualmente ter direito a 3 ou 4 minutos de televisão por todo o mundo, quando os muitos milhares de doidos varridos, bêbados de Hemingway; do bom vinho que por aqui se produz, da paixão pela tourada, ou de combinações aleatórias dos três, em pretensa irmandade com os touros na corrida para a arena do sacrífico ( beneficiando embora da reconfortante certeza de saberem que não irão ser lidados, que ninguém lhes espetará farpas aguçadas no cachaço; que ninguém lhes fenderá a pele, a carne, o músculo da vida), se lançam nas estonteantes corridas do encierro.

Por isso quero ver onde tudo se passa, agora que pelas ruas apertadas onde se aglomera e se comprime a massa branca e vermelha dos amantes dos touros, apenas passa o calor húmido e inclemente de um sol que aqui e ali se esconde entre nuvens  que prenunciam  mudança de tempo.

I don’t like bullfights, but Pamplona has the attractive of its yearly 3 or 4 minutes of worldwide tv broadcast, when the many thousands of fools, drunken on Hemingway, the excellent wine that is made here, passion for  bullfights or a random combination of the three (and benefiting from the comforting knowledge that they will not be facing any matador, that no one will stick sharp and pointed banderillas on their necks; that no one will tear apart their skin, flesh, the muscle of life), dart ahead of the bulls on their way to the sacrificial arena on the  breathtaking "encierro" runs. 

That’s why I want to see where everything takes place, now that on the narrow streets where the white and red mass of the bull lovers congregates, only the humid and merciless heat of the sun greets us, hiding here and there amidst clouds that foretell a change of weather.



Pamplona ergue-se sobre uma colina muralhada e nós subimo-la com o carro. Ruas estreitas apertadas e nada de lugares para estacionar. Finalmente encontramos um parque num largo onde leio depois se constroem os curros temporários para onde são levados os touros  e de onde partem os famosos encierros.

Leio numa placa que apenas é permitido o estacionamento a moradores da cidade. Não querendo arriscar uma multa, metemo-nos no carro e seguimos em demanda. Em todo o lado, para além de não haver  um lugar que seja, a mesma nota: estacionamento autorizado apenas a moradores; descemos até ao rio, maldizendo a sorte de termos depois de subir pela encosta acima a pé, sob o sol que escalda. Um parque amplo, gratuito e ao fundo, entalhado na muralha, a solução: um funicular, também  gratuito, amplo, que dá até para transportar bicicletas. Apressamo-nos a subir.  Mais uma vez, tudo está fechado, mesmo os pequenos comércios que dividem as ruas com casas de habitação pelos bairros velhos e pobres por onde passamos.


Pamplona is built atop a fortified hill and we go up  to the top of it in our car. Narrow streets,  no parking places. We finally find a place to park in a square where I later read is the place where the temporary pen for the bulls is build and wherefrom the famous "encierros"start.

I read on a board that only people dwelling in the city can park here. Not wanting to risk a fine, we get back in the car and go look further afield. Everywhere the same notice, even though we cannot find a  single free parking space: city dwellers only; we go down to the river, cursing the fate of having to go up again on foot, under a scorching sun. A large parking lot, free of charge and right in front of it the solution sits embedded on the wall: a funicular, also free of charge, where even bicycles can be carried. We spare no time to go up. Everything is closed again, even the small shops that share the streets with the dwellings in the old and poor quarters that we go through.






Catedral de Pamplona

Seguimos agarrados ao nosso fiel e já bem batido guia DK de Espanha que nos indica o caminho para o posto de turismo. Azar, já não é aqui, diz-me um transeunte;  é lá em baixo, na praça, acrescenta, só tens de seguir em frente  virar a direito lá ao fundo. Gracias; assim fazemos. Mais volta menos volta descobrimo-lo, ao pé da universidade, sob a forma de um posto temporário instalado numa roulote. Um cartaz na parede informa que dali é possível enviar gratuitamente um postal atestando estarmos no Caminho… sempre ele. Cada um de nós escreve um, para as nossas filhas… sentimo-las longe.

We follow the directions to the tourism office, on our old and well worn out DK guide of Spain. “Bad luck, it is no longer here”, I’m told by a passerby; “it is down there in the square”, he adds, “you only have to go straight on and then turn right”. “Gracias”; we do as told and find it close to the university, under the shape of a temporary office run on a caravan. A poster on the wall informs us that here it is possible to send  a postcard attesting that we are following the Way.. always the Way. Each of us writes one, for our daughters.., we feel them far…



Retomamos o caminho do encierro até à praça de touros, por entre lojas de souvenirs e bares que agora assumem o defeso, mas que há um mês estariam à cunha, a rebentar pelas costuras com locais mas também com os habituais ingleses; americanos; australianos, candidatos a uma perna partida ou a uma heroica cornada.

We recover the path of the "encierro" up to the bullring, between souvenir shops and bars that are now empty but that would have been overflowing with people one month ago, bursting with locals but also with the usual brits, amercians and australians, all candidates to a broken leg or an heroic goring.



Plaza de Toros


Saídos da Plaza de toros,  desaguamos na Plaza del Castillo, cada vez mais acossados pelo calor e pela humidade.  Uma esplanada é refúgio, como o são as cañas que pedimos. Ao nosso lado dois casais: ingleses um, outro americano. Um  dos homens, o americano, é médico, uma das mulheres, a inglesa, é candidata a peregrina por uns dias (que não tem tempo para ir até Santiago, diz, mas que ainda assim se meteu ao caminho, para experimentar). Tem um pé tramado pelas bolhas. O médico tem pomada e compressas; limpa-lhe a ferida; trata-a com pomada; recomenda-lhe que a mantenha limpa e dá-lhe a pequena bisnaga com o unguento que cura. Bebem mais uma cerveja; despedem-se; não se conheciam antes, parece. Seguem caminho, pouco depois nós também, para o funicular, para o carro que aguarda escaldante no parque, para o sul…

From the Plaza de Toros we follow on to Plaza del Castillo, ever more harassed by the heat and the humidity. A bar terrace is a refuge, as are the "cañas" that we promptly order.  At the table next to ours 2 couples sit and talk: English , the one, American, the other. One of the man, the American, is a doctor, one of the women, the Englishwoman, is a foster peregrine (she has not the time to go all the way down to Santiago, she says, but she has nevertheless taken to the Way, just to try it). One of her feet is in bad shape, full of blisters. The doctor has some ointment and bandages; he cleans the wound, and applies some liniment; he recommends that she keeps it clean and gives her the small tube with the ointment that cures.  They drink another beer and say goodbye to each other; they didn’t knew each other  before, it seems. They go their way and, a short moment after so do we, towards the funicular,  the car that waits burning in the park,  the south…

Plaza del castillo



XXVI

Deixamos  Navarra e entramos em La Rioja, outra comunidade autonómica, terra de vinhedos  e montanha. Pernoitaremos em Arnedo e começo a temer que antes de lá chegarmos teremos de aguentar com uma valente tempestade de verão, assim o diz o cada vez mais carregado cinzento das nuvens (que lá ao fundo, percebe-se, se desfazem já em água) e o calor húmido e abafado que se nos cola à roupa, ao corpo.

Goodbye Navarra, hello la Rioja, another of Spain’s autonomous communities, land of grapes and mountains. We will pass the night at Arnedo and I begin to fear that we will not be there in time to escape a tremendous summer tempest, judging by the ever more darker grey of the clouds (already dissolving into curtains of water in the distance) and the humid and oppressive  heat that sticks to our clothes, to the body.




Entramos em Arnedo e a primeira coisa em que reparamos é que flanqueando a estrada há colinas de terra argilosa, vermelha, cravejadas de grutas, obra do homem,  numa das quais se ergue a ruína do que parece ser um castelo. A reter para ver mais logo, penso.

A segunda coisa em que reparamos é que começou a chover, forte, chuva de verão de grossos pingos, como há pouco ameaçava. Vamos diretos para o hotel que por sorte tem estacionamento mesmo à porta.
Pergunto ao simpático rapaz que nos atende na receção se se podem visitar las cuevas. Diz-me que não, que não há estrada até lá.

Vamos ao quarto deixar as malas e refrescarmo-nos. O dia está a correr largo para o fim;  com as nuvens a luz é cada vez mais fraca, quero ver se ainda consigo chegar ao castelo para fotografar; descemos para o carro e apesar da chuva metemo-nos pelas íngremes e incrivelmente estreitas ruelas que exigem 1ª , procurando o caminho para o morro que cá de baixo avistávamos tão bem. Após curvas e contra-mãos a estrada termina numa igreja, tão castanha quanto a terra que a circunda. Não tenho hipótese de fotografar, a chuva e o vento são cada vez  mais fortes. Desisto. Regressamos ao centro da vila, procuramos um sítio para jantar. A rua pedonal, onde as esplanadas foram já recolhidas, sob a tempestade parece pouco convidativa.  Assentamos num pequeno restaurante. Todos se conhecem, aqui, e todos se saúdam. Mesmo estrangeiros como nós são cumprimentados por quem entra ou sai. Urbanidade sincera. São pequenas coisas assim que unem os homens, que fazem de nós Humanidade.

Parou de chover; passeamos um pouco para estirar as pernas.  Não se vê ninguém na rua, nem há muito para ver, principalmente agora que é noite cerrada. Um  fim de boca, um sabor a fim de férias, começa a instalar-se em nós. Amanhã voltamos para o retângulo da ponta ocidental da península; não para casa, que ainda teremos de passar por Trás-os-Montes, mas será mesmo o último dia da viagem que nos propusemos como exercício de férias.

We enter Arnedo and the first thing we notice are the hills of red, clayey soil, all covered in manmade caves,  that border the road. Atop one of them the ruin of what resembles a castle. I make a  note of it, for later inspection.

The second thing we notice is that it started to rain, hard, thick summer rain, as foretold a  while ago. We go straight into the hotel that luckily has a free parking lot right in front of it.
I ask the nice bloke that checks us in if the "cuevas" can be visited. No, he answers, there’s no road up to them.

We go to the room to drop the bags and refresh ourselves. The day is running fast to its epilogue; due to the clouds the light is getting dimmer, and I want to see if I can get to the castle to take a couple of shots; we hurry to the car and in spite of the rain we defy the steep and incredibly narrow streets, most of the times in 1st gear, looking for the road to the hill that was so clearly  visible from below. After a myriad of bends the road abuts in front  of a church, as brown  as the earth is sits upon. Photographing is out of question, the rain and wind are ever stronger. I give up. We return to the centre of town, looking for a place to dine. The pedestrian street, where the terraces have already been dismantled, looks terribly uninviting under the storm. We end up in a small restaurant. Everybody knows each other here, and everybody greets each other. Even strangers like us, are greeted by those coming in or out. Sincere urbanity. It is small things like these that unite man, that make us Humanity.

The rain has stopped; we stroll about a bit to stretch our legs. There’s no one in the streets, nor is there that much to see, now that the night has fallen. An aftertaste, the end of the holidays.. we begin to feel it.  Tomorrow we go back to the square on the western side of the peninsula from where we came from; we won’t go home directly, since we still have to go through Trás-os-Montes, but it will really be the last day of the journey that we decided would be our holidays.



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