sexta-feira, 6 de junho de 2025

 GR11-E9 (Parte 11) - Sesimbra - Outão

04 de Junho de 2025


Nota: a aplicação bloqueou a gravação aos 17,2 Km; haverá que acrescentar cerca de 1 km ao total, o que dará 24 km.

 
As botas reclamam caminho... o mesmo as pernas. Se assim não for, umas tornam-se duras, desconfortáveis, e as outras  moles, preguiçosas... há portanto que a ambas dar o uso que exigem, antes que a umas se gastem as solas e que noutras definhem os músculos que as empurram e sustêm.

Sesimbra.

Há mais de dois anos que tinha lá terminado a caminhada desde o Cabo Espichel. Setúbal era o próximo objetivo para Sul. 

Não obstante, uma só tirada, se bem que não impossível, seria desnecessariamente dura, uma vez que a acrescer aos cerca de 35 quilómetros de percurso, haveria que somar as subidas e descidas íngremes no Parque Natural da Arrábida que, por certo, pesariam no esforço que teria que acomodar.

Decidi pois parti-la em duas: a primeira, seguindo uma trilha que consultei no Wikilok, submetida pela utilizadora dessa.dagostini, a quem desde já agradeço, a terminar na Praia da Figueirinha e a segunda seguindo itinerário próprio, uma vez que é relativamente linear e, se possível, sempre pela areia, até ou desde Setúbal.

Como habitualmente queria partir cedo, gostava de começar antes das sete da manhã... mais uma vez, impossível. O mais cedo que poderia chegar à velha vila piscatória onde pela primeira vez acampei sozinho com amigos, sem estar sob a alçada da supervisão parental, já lá vão mais de cinquenta anos, seria às 8h08, dizia-me o google maps (e isto no pressuposto que todas as ligações entre autocarros e comboio correriam pelo melhor).

Para tal, teria que estar na paragem de autocarro perto de casa às 8h38. Assim foi: mochila às costas e impado de vontade, lá comecei eu a viagem metido num autocarro que trocaria, em Corroios, pelo comboio, para voltar a trocar por outro autocarro, em Coina, que me levaria ao destino final.

8h08, dissera na véspera a aplicação. E não é que, sem tirar nem pôr, às oito horas e oito minutos, descia eu do autocarro em Sesimbra?

Café. Já tinha tomado um em casa, mas não poderia deixa passar a oportunidade de agora tomar outro, até porque toda a caminhada seria feita na serra, sem passar por qualquer aglomerado urbano, pelo que outro café no caminho, até chegar ao Portinho da Arrábida, pelo menos, estava fora de questão.

Bica tomada, andei uns metros para fora da rua principal e preparei-me, que é como quem diz, armei os bastões, assestei bem a mochila, que ainda assim lavava algum peso, com o almoço, uma camisola, um impermeável e dois litros de água, para além da bolsa de primeiros socorros e do meu inseparável bloco de viagem, respirei fundo e lancei-me no que sabia iria ser um início de percurso bastante duro e fatigante.

São quase trezentos metros de diferença de cota entre o topo da arriba e o parque de estacionamento das camionetas em Sesimbra. Há que vencê-los em duas tiradas sempre a subir, separadas pela estrada M-585, e mesmo o caminho dentro da vila, no asfalto da rua, tem a exigência de pendentes assinaláveis, que, de pronto, nos põem o ritmo da respiração e do músculo cardíaco a fazer com que um se sobreponha ao outro, ou como mais bem formulado na boa analogia popular "com o coração a sair pela boca..."

Tinha consultado as previsões. Embora no período de uma hora houvesse remota possibilidade de chuva, o mais certo era um dia ligeiramente nublado, com temperaturas que poderiam chegar aos 27 graus, outra das razões porque queria começar cedo...

A meio da subida olhei o horizonte... nuvens baixas e no topo das arribas nevoeiro... o ar estava denso com humidade mas a falta de sol pelo menos contribuía para uma temperatura ajustada ao tipo de atividade, ainda para mais beneficiando de alguma brisa que, de quando em vez, me refrescava o torso, já a caminho de encharcado pelo suor que a humidade impedia de secar.

No fim da primeira parte da subida atravessei um segmento plano paralelo à estrada eivado de orquídeas - Anacamptis pyramidalis - tantas como nunca tinha visto. Pena é que estivessem já secas, embora em uma ou outra ainda se conseguisse ver um pontinho do rosa que as veste, quando no seu melhor. Terei que por aqui passar um dia, durante o auge da floração.

Ainda estamos na Primavera e se bem que as orquídeas já estivessem secas, ao longo de todo o caminho muito tive para ver e apreciar no que a flores silvestres respeita, já que a serra da Arrábida é bastante rica em diversidade botânica. Em contrapartida, tirando uma ou outra lagartixa, ou um ou outro pássaro, não me cruzei com nenhum representante do reino animal mais inesperado, o que até nem é mau de todo, a julgar pelo terreno foçado que cruzei, com o que creio serem marcas da presença de javalis, animais com os quais não gostaria de me encontrar....

Retomado o caminho arriba acima, lá cheguei ao topo, tomado por um nevoeiro que cada vez se fechava mais e que rapidamente impediu qualquer visão para o lado do mar, tornado numa cortina fria, cinzenta.

Condições como estas podem muito facilmente levar a que um caminhante se perca, se confunda,  por falta de pontos de referência. Os meios que hoje possuímos, no entanto, afastam esse perigo, pois em contínuo temos acesso à nossa posição georeferenciada, sobre um mapa e, no meu caso, como habitualmente faço, sobrepondo o meu percurso a outros anteriormente gravados, pelo que sei sempre onde estou e para onde me dirijo.

Mesmo quando dei por mim a pensar se o mar seria daqui ou dali, já que nos trezentos e sessenta graus que me tinham por centro, só via verde e cinzento, nunca me apoquentei, porque a linha verde no mapa do meu telemóvel que sabia ter que sobrepor com a outra laranja representando a minha progressão, ali estava sempre, por baixo do pequeno ponto azul que me representava.  

Cá em cima, o tempo era de contínua morrinha, de quando em vez acentuada com um engrossar dos pingos, mas que rapidamente passava. A vegetação, claro, estava encharcada, tal como eu. Optei por não vestir o impermeável... só me iria aquecer e fazer aumentar a transpiração e a morrinha até me refrescava um pouco.

Chegado às  pedreiras, o caminho passou a ser feito em estrada larga de terra batida, mas com uma descida acentuada, até por fim nivelar, permitindo vários quilómetros de marcha a direito, interceptando e sobrepondo-se a uma pequena rota que por ali passa e que está devidamente assinalada com os habituais pilares de marcação.

O contraste sonoro desta parte do percurso com o resto do mesmo é ... gritante (não poderia haver melhor termo). Sem árvores ou outros obstáculos que o absorvam o imenso ruído das máquinas de exploração da pedra calcária e britas que por aqui se faz enche o ar da mesma forma que o faz o pó branco que por aqui tudo tapa. 

Um bom pedaço andado no trilho marcado, retomo de novo a arriba. Por aqui, grande parte do caminho em que agora avanço assenta sobre afloramentos de rocha lisa, molhada, a exigir um cuidado redobrado porque é muito fácil escorregar. Sei o mar perto, até pelo terminar da arriba que  tenho pela frente, mas  nada dele consigo uma vez mais ver. A trilha inflete de novo para dentro e para uma acentuada descida, que corresponde a mais um acidente da orografia.... a seguir a uma descida vem sempre uma subida... consulto o perfil altimétrico do trajeto.... não há que enganar, vem aí exercício redobrado e em pedra escorregadia... 

Lentamente, apoiado nos bastões, negoceio a subida, com as requeridas paragens pelo meio para retemperar a respiração. 

Numa dessas paragens aproveito para ver as mensagens no telefone.

"Morreu o Gageiro." Escrevem-me amigos e a minha filha.

Mais um... ainda no outro dia tinha sido o Sebastião Salgado... 

ainda bem, que o Mestre Gageiro
 nunca viu a fotografia que lhe tirei...
Nomes que têm eco na minha coleção de coisas que prezo; das coisas que me fizeram o que sou... é inevitável, um dia os caminhos separam-se, é assim com os que amamos e nos são mais próximos é assim com os que nos são significantes, ainda que distantes...

Como por exemplo o Eduardo Gajeiro, de quem ainda há tão pouco visitava a maravilhosa exposição antológica na cordoaria...

O Eduardo Gajeiro que um dia, em 1977, me disse "olha para aqui", enquanto carregava no botão do obturador e o flash libertava a luz que havia de fixar a minha cara na película da máquina que apontava na minha direção...

O Eduardo Gajeiro, a quem um dia, em 2013, pedi para tirar uma fotografia, estava ele sentado numa paragem de autocarro, câmaras ao pescoço, depois de fotografar mais uma manifestação. "Sim claro, pá" e eu, de tão nervoso que estava por apontar a máquina à cara que fotografou a história do Portugal que eu conheci, nem reparei que o ponto de foco estava no vidro da paragem e não na cara que eu tanto queria fotografar....


O topo da subida traz-me a certeza de que os obstáculos do dia estavam todos passados. A partir daqui, é sempre a descer, ou a direito, sendo o caminho feito quase todo em estrada. 

No cruzamento para o Portinho, abrigo-me por baixo do pinheiro que por lá existe no  triângulo separador. Chove forte agora, é altura de vestir o impermeável.

Tenho o cruzamento para o mirador do Alto do Jaspe pela frente. Decido não lá ir. Não faria sentido, não se vê nada para o lado do mar. Sigo antes para baixo, quero ir ver a lapa de Santa Margarida, onde nunca estive. 

Na estrada molhada e cinzenta, a risca branca que separa as faixas grita uma cor que não tem. A oportunidade para uma boa fotografia.... nem de propósito!"

A meio da descida ouço música e vozes.... canoas com um grupo de turistas aportam à lapa para um mergulho, enquanto eu penetro na gruta, que parece suster-se em pilares criados por grossas estalagmites. 

A pequena capela que ali existe, com um ar decrépito, sujo e vandalizado, como aliás todo o espaço se apresenta, a atestar a falta de qualidade dos visitantes, espera os crentes que a visitam, comos atestam os vários ex-votos que se acumulam no muro.

Não é esta a melhor altura para fotografar. A luz entra de frente por um dos arcos na rocha com enorme intensidade e eu apenas tenho a máquina pequenita, com um flash que nada dá para compensar., faço uma ou duas fotografias e regresso ao exterior. 

Contava prosseguir pela arriba, mas não encontro caminho, o que quer dizer que tenho de subir de novo os mais de 200 degraus que levam à estrada. Como opção, sigo por cima do muro que ladeia os degraus, apoiando-me com os bastões, o que torna o caminho mais fácil.

O Portinho por fim. Hora de almoço, restaurantes cheios... não paro. não vejo nenhuma sombra que me acoite com dignidade. 

Ali à frente é a praia do Creiro. Estive aqui um dia numa jornada de voluntariado a limpar a encosta do sufoco vegetal provocado pelo avanço dos bons-dias (Ipomoea indica). Lembro-me que ao pé do acesso para umas ruínas romanas havia uns bancos,,, ainda lá estão... à sombra!

Desmonto a mochila e, das bolsas laterais retiro as sandes e os iogurtes que me saciam, enquanto descanso as pernas e os pés, a acusarem já o esforço.

Retemperado, retomo o caminho.

Os viadutos que aqui existem e que estavam pintados com bonitos murais, foram totalmente vandalizados. Mas porquê? Porque pode alguém acrescentar por gosto rabiscos sem qualquer nexo ou qualidade estética sobre o trabalho de outros? Que pérfida recompensa pretendem com tal estúpiudo gesto obter?

Figueirinha.... a partir daqui já tenho autocarro para Setúbal... mas só às cinco e dez... são pouco mais de duas...

Decido avançar até ao Outão. Lá tenho autocarro às quatro e vinte. Se somar o tempo do caminho, não terei que esperar muito mais do que uma hora....

Outão

Que será feito da colega que um dia, andava eu no liceu, vim aqui visitar, internada que estava no hospital depois de uma operação às pernas que a poliomelite lhe tinha comprometido.... espero que ainda hoje mantenha o sorriso tímido que lhe caía tão bem.

Não poderia ser mais anti-climático o final do meu dia de caminhada: com sede e já sem água, cansado e sem melhor assento que um fino muro, de encontro a uma paragem de autocarro coberta do pó gentilmente fornecido pelas instalações da Secil, mesmo aqui por baixo. Este seria o meu lugar no mundo por mais de uma hora até à chegada libertadora do autocarro que, por fim, me levaria para Setúbal e para o regresso a casa, de novo pendurado na agradável mobilidade que me oferece o "Navegante".

Um dia destes tenho que aqui voltar, para completar a ligação entre Outão e Setúbal.... disso falaremos depois!


In memoriam Eduardo Gageiro




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Terminal Rodoviário de Sesimbra




Primeira parte da subida 

Cynara humilis, variantes branca e roxa


Anacamptis pyramidalis 

 Fel da Terra (Centaurium erythraea ) variantes branca e rosa


Delphinium gracile


No topo da subida



                             Allium sphaerocephalon              Quando não há nada para dizer, é melhor fazê-lo....     





Quando não se espera, pode sempre aparecer uma boa fotografia...

Nepeta tuberosa






A pista do caminho marcado com que me cruzei






Quase no topo da segunda e exigente subida



O cruzamento para o Portinho... e o meu abrigo da chuva...


Lavatera olbia                                                         Cheirolophus sempervirens  (?)



As bonitas flores da Piteira do diabo (Opuntia sp.)


O caminho para a Lapa de Sta. Margarida 


A capela da lapa







Museu Oceanográfico do Portinho da Arrábida estava fechado....


Sempre que aqui passo, fotografo esta rocha,
 com o seu pequeno tufo verde em cima....



O túnel, infelizmente vandalizado no mural...


a minha imagem favorita do túnel

O segundo túnel, também vandalizado e o belíssimo golfinho que nos olha do seu teto...

Praia da Figueirnha


Troia, lá ao fundo... qualquer dia, tenho que
 atravessar o rio para seguir até Sines...


Farol do Outão... fim de viagem!




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