terça-feira, 27 de outubro de 2020

 

Claro que é a cor. Claro que são os céus revoltos e cheios de nuvens em infinitas matizes de cinzento e branco e preto (eu sei que não estou a ser muito preciso mas há brancos e pretos que, para mim, são tudo menos cinzentos). Claro que é o brilho da água nas folhas. Claro que é a água. Claro que é tudo isto, o outono.



Tomo a estrada na Serra e parto à descoberta, confortável no aconchego de roupas que me escondem a pele da brisa que, com a subida do caminho, sobe também ela a vento, límpido, claro, benfazejo.

Aqui e ali, já as bétulas e os carvalhos começaram a alaranjar, alastrando em contraponto com o verde dos castanheiros que oferecem ao chão ouriços repletos de doçura bem resguardada (como sói acontecer com os mais preciosos tesouros) pelas aguçadas pontas da miríade de espinhos que os adornam.

Paro para fotografar.  Sem outra pressa que a de apanhar a luz que se esconde na nuvem,  a intermitente calma que impede as folhas de tremer, o fluir da água que corre ainda pouca mas mesmo assim já alimentada pelas primeiras chuvas que as semanas anteriores trouxeram.


Fotografar é, tal como a viagem uma constante procura. Talvez seja isso que mais me atrai em ambas, já que a descoberta não deixa de lhe ser um adequado corolário. Mesmo em sítios que repetidamente visitamos, a viagem é sempre nova, como o é a descoberta. E aqui, na Serra, é uma quase primeira vez, porque os dedos das duas mãos não chegam para lembrar a última vez que corri estas estradas e senti o sopro forte do vento, tal como por estes dias às portas do castelo de Linhares da Beira ou a beleza calma dos bosques nas Penhas da Saúde ou a magnifica desolação das pedras nuas a caminho da Torre.


Claro que é tudo isto o outono, num tempo estranho, desconfortável, atravessado por um medo que se não vê de outra forma que quando se olha para o única coisa que nos deveria dar alento: as pessoas.

Tementes de um inimigo que se não vê, escondemo-nos uns dos outros, viramo-nos as costas, afastamo-nos, isolam-nos. E ainda assim, como escrevi há dias a alguém, tudo isto não é forçosamente pior, não fora a causa que o determina. De facto, expurgada de muito do mundano e do supérfluo que, sem queremos, se lhe cola, a existência pode ser mais atenta, mais arguta, mais...essencial.


Como essenciais são as imagens que a paisagem me oferece e eu tento guardar em combinações infinitas de 0s e 1s, dizem-me. A primeira vez que vim à Serra, tinha há pouco minha primeira máquina de 35mm minimamente boa (Yashika electro 35), e começava a descobrir a virtude gradual do preto e branco em filmes que, como tantos aprendizes de feiticeiro, revelava depois em casa, entre a escuridão da despensa e o lavatório da casa de banho.



Hoje tudo é tão mais fácil. Mal se carrega no botão do disparador, a imagem aparece no écran nas costas da máquina, como por magia, com toda a informação que nela está contida. Tão fácil que nos esquecemos, tantas vezes, do que mais importa: olhar para ver e não apenas para olhar.

 




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