quinta-feira, 5 de novembro de 2020

 


Calma, temos tempo”, parece dizer a gralha empoleirada no ramo do pinheiro debruado a verde pelas agulhas que o enfeitam e que, como sempre, se recusam a mudar de cor, apesar de estarmos já bem para lá do equinócio.

Não há amarelos, castanhos, laranjas, vermelhos, por aqui. Não há oportunidades de fotografia de calendário, como aquelas das florestas do Canadá, ou de outras latitudes e altitudes, onde predominam as grandes árvores de folha caduca, como para nos lembrar que aqui ainda é  o grande e baixo Sul. Agora ou no pino do verão, em maio ou no frio do inverno, é sempre verde a manta que esconde um solo pobre, arenoso, permeável à água e ao peso das botas, o que torna o andar duro, pesaroso, marcado pelo arfar da minha respiração acelerada, como acelerado é o passo que tento manter, ao longo do comprido corta-fogo que me leva ao bordo da arriba.

"Aqui" significa, no entanto, acima da minha cabeça, ao nível das copas redondas de onde a gralha me olha. Cá por baixo, por entre o mato rasteiro que, também verde, contribui para a sensação de longo contínuo que os olhos involuntariamente absorvem, há outras cores a despontar.

Delicadas, as elegantes flores do açafrão, fechadas por falta do estímulo da luz de um sol que durante todo o dia teimou em não romper por entre de nuvens  tombam sob o peso de gotas de água que se lhes colam. Água do nevoeiro, primeiro, e da chuva fina que ainda há pouco caía.


Frágeis, esbatem o lilás das pétalas contra o amarelo pardo da areia de onde irrompem mais altas que as finas folhas que as acompanham e escodem o segredo do delirante laranja dos não menos frágeis estiletes.

Tão diferentes estão agora de quando se abrem  ao calor do sol e se exibem orgulhosas, pontuando com a alegria da cor o chão triste em que pulsam.


Este é um tempo de fragilidade, parece. A orquídea selvagem que mais tarde floresce no nosso país também por aqui desponta por estes dias e, se os passos por perto dela nos levarem,  é bem possível que a ignoremos se não olharmos para o solo com olhos de quem procura, tão pequena e dócil é, facilmente camuflada por um tufo de erva mais alto, pela rama baixa de um qualquer arbusto ou pelo coberto de folhas e ramos secos que esconde grande parte do que não é caminho marcado ou pisado.

Spiranthes spyralis, chamam-lhe os manuais. Para os ingleses são as tranças da senhora do outono e é fácil de ver porquê: as pequenas flores brancas tecem uma magnífica espiral ao longo do fino caule, lembrando uma delicada e ornamentada trança.


Leio que no máximo dos seus aos 35 centímetros (as que vi sempre me pareceram mais pequenas), o “enroscado” caule poder apresentar mais de uma dezena  de flores, o que diz bem do respetivo tamanho.

Frágeis são também os cogumelos que começam igualmente a despontar, múltiplos em tamanhos e cores e formas. Com as chuvas que agora se anunciam, mais virão e esse será também um tempo de procura e descoberta que faço meu, pelo simples prazer de me irmanar com a terra, agora que ainda sou mais que a parte dela que um dia, forçosamente, serei. É sempre bom conhecermos bem as relações que nos serão próximas….

Cansada da espera a gralha voou do ramo e, alegre no grasnar, juntou-se a outras duas que fendem o ar denso e húmido com o bater compassado das asas em direção a outra árvore, talvez, levadas pela vontade gregária que as acumula em pequenos bandos.

Forço uma vez mais o passo, o sol vai cada vez mais baixo e não tarda estará a passar a linha do horizonte. Sei-o não porque o veja, que as nuvens não deixam, mas porque beneficio do conhecimento exato do tempo e da irrevogabilidade do movimentos celestes que outros me dão pela simples consulta de uma aplicação no meu telefone portátil.

Como tudo é simples hoje, como tudo nos está próximo se o quisermos saber e procurar. E esta deve também ser uma procura constante. Crítica, informada tanto quanto possível, para não resvalarmos na facilidade que nos empurra, quase sem darmos por isso, para a crença em oposição à ciência, para a suposição em oposição à constatação, para o  boato em oposição à verdade.

Como é calmo aqui. Agora que é a hora. Nada se move. Até o ar parece parado. Sei que o sol já se pôs. E espero. Pode ser que alguma coisa aconteça.

De repente uma gralha (será a mesma?) voa na minha direção. Passa por cima de mim;  volto a cabeça e sigo-a com o olhar.

E tudo muda. No espaço de segundos, o cinzento do céu tinge-se numa inesperada paleta de rastos amarelos, laranjas, lilases, azuis.

À pressa, procuro um sítio por entre a vegetação onde consiga colocar o tripé de frente para o mar, de frente para o infinito pano de fogo e luz para onde a gralha voou.

Uma foto. É tudo o que consigo. Tão rápido como começou o espetáculo terminou; o denso pano cinzento voltou a cair e, com ele, a consciência de que começa a fazer frio. É hora de voltar para casa.




Arrumo as minhas coisas, levanto a cabeça.

Num ramo de pinheiro debruado a verde pelas agulhas que o enfeitam e que, como sempre, recusam mudar de cor, apesar de estarmos já bem para lá do equinócio, uma gralha olha fixamente para mim….

 

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