Rota Vicentina
Aljezur - Arrifana, 25 de maio 2024
Parecerá estranho que tivesse percorrido esta etapa em sentido contrário ao que vinha seguindo nas outras. Isto é, a normal continuação do caminho deveria ter-me levado da Arrifana, onde tinha terminado na véspera, a Aljezur.
A verdade é que, por questões logísticas, tinha optado por ficar alojado nesta última vila, em ambas as etapas, e se no dia anterior a minha mulher tinha ido ter comigo à Arrifana, para seguirmos depois para o destino de acoitamento, neste último dia de caminhada da minha primeira parte do Trilho dos Pescadores, deixei-a no quentinho dos lençóis, enquanto que saía bem cedo, como gosto, depois de pequeno-almoçar, para um dia que se anunciava fresco, até com possibilidade de alguns pingos e para as ruas ainda desertas da parte velha de Aljezur.
"Toca a subir", foi o que me foi logo dado a perceber à medida que atravessava a vila sem vivalma à vista. Uma primeira e relativamente pequena subida até á igreja, na verdade, serviu apenas de aquecimento. Um quilómetro depois, estava de novo a subir, e agora por mais um quilómetro de inclinação bastante pronunciada, como facilmente se percebe no perfil do traçado, por entre descampados e pinhal, até entrar na estrada, onde percorri uma bom pedaço do percurso, aqui bastante falho de interesse. Por fim, o trilho leva-nos para a direita, de onde se pode observar a foz da ribeira de Aljezur e um complexo de 9 lagos que, leio depois, integram um alojamento turístico local, mas que mais me parecem o resultado de uma tentativa um projeto não concluído de instalação de uma unidade de piscicultura.
Passada uma zona de urbanização, repleta de alojamentos turísticos e vivendas de férias, o trilho vira finalmente para o mar, em direção à costa, que atingimos por altura da primeira praia do dia - Praia da Amoreira - que, àquela hora, mais uma vez, não tinha absolutamente ninguém no areal, nem no bar ao pé do estacionamento, ainda fechado, para desgosto meu (café... café....).
Deixei-me por ali ficar uns momentos, sorvendo a beleza da vista, complementada pelo vento que me refrescava e felizmente, daqui para a frente, me impeliria, uma vez que soprava de norte.
Retomado o caminho, seguia agora pela falésia. Um pouco à frente, um pescador ou mariscador estudava do alto da falésia o estado do mar ou as hipóteses de por ela descer, para lá em baixo apanhar os tão cobiçados percebes. É realmente preciso ter um estofo especial para fazer o mesmo que dois colegas seus faziam um pouco mais à frente: uma corda grossa, de nylon, enrolada à volta de uma pedra servia de corrimão para a descida, e horas, mais tarde, para a subida dos cerca de 30 metros de falésia praticamente direita que seria preciso vencer. Se ao esforço da subida juntarmos o desgaste físico causado pelo tempo passado no constante sobressalto que é a apanha do delicioso manjar, podemos ter uma ligeira ideia do quanto estes homens põem em jogo, de cada vez que vestem os fatos de neoprene para passar umas horas açoitados pelas vagas que rebentam nas rochas onde se agarram os cobiçados crustáceos.
Descia já para a Praia do Monte Clérigo, novamente vazia, mas desta vez já com um pequeno bar/restaurante a funcionar, onde me sentei a descansar um pouco na companhia de uma bica, de um delicioso pastel de nata e ainda da relaxante música de um handpan, que um dos presentes, com ar de sexagenário como eu, tocava na mesa em frente, onde se amontoavam, para além do estojo do instrumento, variados cadernos de apontamentos em que o inesperado músico estivera , antes de começar a tocar, a escrever.
Ficaria ali um bom pedaço, se não tivesse que ir andando, mas como tinha o vento por trás, o som da belíssima musica que, muito competentemente tocava, foi-me acompanhando pela subida até à escarpa que se fecha na extremidade sul da praia, onde retomei o caminho a direito sobre a falésia.
A areia solta fazia agora, de novo, a sua entrada em cena. Desconfortável, cansativa. reparei, no entanto, que, quase sempre, paralelos ao trilho marcado e muito batido, por isso com areia cada vez mais solta, corriam muitas vezes, embora mais na borda da falésia e, como tal, exigindo bastante mais cuidado na negociação, trilhos paralelos, muito menos pisados e, com tal, com solo com muito maior apoio para a passada. Sempre que pude, optei por estes, embora nunca ariscando passar por alguns trilhos que me pareciam demasiado perigosos, em caso de um simples tropeço ou queda.
O vento, o azul profundo do mar e do céu, os salpicos, os cheiros, mordiam-me forte na memória.
Via-me criança de novo, descalço, nas falésias em Santa Maria, com o meu pai, por vezes, para ir à pesca, ou à caça submarina, ou apenas para ir apanhar lapas...
Era aquele o vento que então sentia; era aquele o cheiro que guardava; era aquele o azul que me chamava; era aquela, a música do ar a vibrar sobre o meu corpo, as pedras, a baixa vegetação; era aquele o grito das aves...
Não consegui evitar um nó na garganta. Por vezes, à agua que me escorria pela cara abaixo, do suor que andar na areia solta me convocava, uma ou outra gota também salgada, mas não de suor, se lhes misturava...
Já perto dos vestígios arqueológicos do Ribat da Atalia, o trilho ganha novamente solidez o que permitiu uma deslocação em passada mais arejada, para ir conferir as ruínas que se mostravam à minha frente.
Li mais tarde que o Ribat da Atalia é um importante vestígio do que foi antes um complexo militar e religioso muçulmano, datado de 1130, sendo tão importante que está classificado como monumento nacional desde 2013...
E tão importante é que não me recordo de ter lá visto nada que me explicasse aquilo para que estava a olhar, enquanto que a vedação com que algumas das ruínas deveriam estar protegidas, se encontra totalmente derrubada, sem qualquer tipo de manutenção ou cuidado.
Monumento nacional.... ao menos desclassifiquem-no... não se notava tanto....
Por outro lado, as ruínas daquilo que terá sido um posto da Guarda Fiscal, também por ali se erguem sem qualquer tipo de aproveitamento ou enquadramento...
Na wikipedia fala-se de mais uma daquelas intermináveis histórias com expropriações, declarações de intenção, etc etc, remontando tudo à data de declaração do estatuto de monumento nacional... ora já lá vão mais de 10 anos....
O que não passava também era o vento. Antes pelo contrário. Estar de pé, parado, para tirar uma fotografia às ruinas, aqui na ponta da Atalia, não era coisa simples, verifiquei.
Segui, pois, caminho e, passados cerca de quilómetro e meio, o trilho deixa de novo a falésia para se dirigir para o interior, pelo meio de um pinhal que bordeja as urbanizações que por ali se encontram instaladas e que, mais à frente se irão ligar à Arrifana. Esta a parte mais chata do dia, toda em areia solta, que se não pode de forma alguma evitar. Por fim, sai-se do pinhal e voltamos à terra batida numa descida que nos leva até à Etar da Arrifana, de onde se volta de novo a subir até à estrada principal.
Aí chegado, dirigi-me, novamente, à Pousada da Juventude, onde me sentei a beber uma laranjada gelada, enquanto esperava pela boleia da minha mulher que comigo ali iria te em pouco tempo, já que os quase 19 quilómetros que tinha feito a pé, pela estrada, se traduziam, de carro, em meros 7, ou seja, 10 minutos de deslocação.
Estava concluída a primeira parte do Trilho dos Pescadores. Tinha atingido o objetivo que me propusera sem problemas de maior e, uma vez mais, o imenso prazer da caminhada solitária enchera-me os dias por completo.
Não, não era um voto de silêncio a que me obrigava por caminhar silêncio; era antes um voto de escuta, e tanto ouvi e vi nestes seis dias em grande parte passados em plena imersão numa paisagem não virgem mais ainda natural. Uma vez mais era de felicidade e contentamento a cara que mostraria numa fotografia, se alguém me a tivesse tirado.
Talvez não me esqueça de pedir a alguém para o fazer, quando concluir a segunda parte de Trilho dos Pescadores, porque estou ansioso para o fazer!
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A ribeira de Aljezur e os lagos lá ao fundo... Arroz? piscicultura?
Praia da Amoreira
Mariscadores no início da descida
O casario da praia do Monte Clérigo...
... e as que se lhe seguem, inacessíveis, creio, a partir de terra.
A beleza à espreita no meios dos juncos. Que flor será?
A caminho da Ponta da Atalaia.
As ruínas do Ribat
A vista para Sul...
... e para Norte
As ruinas do posto de vigia da GNR,
O mar em frente... daqui em diante, o caminho segue para o interior, numa paisagem que me não mereceu sequer o esforço de uma fotografia... qualquer dia retomarei o caminho. Há ainda muita costa por ver até Sines.
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