quarta-feira, 3 de julho de 2024

Rota Vicentina


Carrapateira - Arrifana, 24 de maio 2024



Uma noite para esquecer, escrevi eu no meu caderno de viagem, ao relembrar a dormida na Carrapateira. 

Não que o hostel não fosse excelente, que o era. O meu corpo é que, se nunca foi, agora menos o é e, não sei se por reação a alguma coisa que tivesse comido, por consequência do esforço acumulado, ou simplesmente por as coisas serem com são, o que é um facto é que passei grande parte da noite com uma dificuldade enorme em conseguir transferir para fora de mim líquido que o meu corpo me pedia claramente para eliminar. 

Como não queria incomodar os outros cinco convivas que comigo dormiam na camarata, tentei limitar ao máximo as saídas de cama, mas a verdade é que foram múltiplas e  demoradas. Por fim, já muito noite dentro, consegui eu também dormir um período mais extenso, tanto assim que, quando acordei de manhã apenas outra pessoa se encontrava ainda na camarata.

Sem quaisquer queixas e parecendo recuperado do desagradável incidente, tomei o pequeno almoço e aparelhei de novo rumo à costa, não sem antes ter uma vez mais passado pelo bar do clube recreativo, para me presentear com uma muito desejada bica.

Deixada a vila, a trilha leva-nos por um caminho de areia  até às imediações da praia da Bordeira, onde, caso o caudal da ribeira da Carrapateira o permitisse, se poderia seguir a seu lado pelo areal, tirando partido de um passadiço que a ela conduz.

Como não sabia se a ribeira levava muita água, arrisquei seguir pelo passadiço, apenas para, chegado ao seu fim, ter que voltar para trás, e seguir o caminho alternativo que bordejava a ribeira ao longo da encosta sul da falésia que enquadra a praia.

Notei também, no regresso do passadiço, que não tinha posto o telemóvel a gravar o percurso do dia, pelo que, ao total de 18,38 Km lá gravado, haverá que acrescentar cerca de 1,2 km adicionais, o que perfaz um total de cerca de 19,6 km, para toda a etapa.

Chegado por fim ao areal, procurei tirar partido da maré baixa e aproximar-me da linha de água, até sentir a areia dura sob as solas das botas, para o atravessar, já que a boca da praia tem um bom quilómetro de extensão. 

Sentia-me de novo "o rei daquilo tudo". Ninguém à minha frente em toda a praia, muito embora um casal de caminhantes se aproximasse lá ao longe, vindos também da vila. E como estava limpa e bonita a manhã, dourada por um brilhante sol que, no entanto, não era suficiente para não ter uma vez mais que tirar da mochila o polar, chegado ao cimo da escarpa, no extremo norte da praia, tanto era o vento que se fazia sentir, ainda por cima cuspido do norte.

De repente um encontro insólito, porque inesperado. Um enorme rebanho de cabras e um pastor, a quem dirijo um correspondido "Bom-dia!",  cruzam-se comigo, cada um seguindo o seu caminho em sentidos opostos. De onde viriam eles?

O caminho começava agora a tornar-se mais árduo, embora não houvesse desníveis a vencer: areia solta, cada vez mais e mais solta, a tornar cada passada mais penosa que a anterior. Mas era preciso seguir, e, na falta de outra solução, lá fui andando, ainda que sob forte protesto, traduzido em uma ou outra exclamação menos cordata, sempre que atravessava um trecho ainda mais envolvente para as minhas excelentes botas que, ainda assim, cumpriram integralmente a missão de me protegerem os pés de areia entranhada nas meias, caminho certo para as temidas bolhas.

Um grupo de cinco ou seis  caminhantes, com ar decididamente nórdico, cruzou-se comigo no sentido contrário. Vinham frescos e na conversa, embora um ou dois estivessem um pouco mais ruborescidos....
"Is it like this till the end?" perguntei-lhes.  Tranquilizaram-me, mais um pedacito e passava....

Só que o pedacito ainda levou algum tempo a vir, de permeio com uma trégua de 200 metros, até e desde um marco geodésico onde parei um pedaço a descansar do esforço que vinha fazendo... "Hey Honey, Take a Walk on the Wild Side", alguém grafitara a imortal linha de Lou Reed na parede do marco, entre as indicações de caminho.... decididamente apropriado!

O trilho abandonava agora uma vez mais a costa para seguir finalmente fora da areia solta em estrada de terra batida primeiro e de alcatrão depois. Um oásis, na saída de  Monte Novo: uma unidade turística com alojamento. restaurante e, acima de tudo, bar, com água fresca e café. Perfeito. Por ali fiquei uns bons 20 minutos  a bebericar uma garrafa de litro e meio de água fresca temperada com uma rodelas de limão e uma reconfortante.... chávena de café, pois claro.

Um pouco mais à frente, o trilho volta a infletir para a costa, para "nova viagem; nova corrida", que é como quem diz, nova descida; nova subida, e ambas das boas, na Praia do Canal. O caminho  faz-se em estrada de terra batida, que se volta a apanhar de novo do outro lado da praia, de onde se pode apreciar uma vista magnífica da costa, se ainda  se tiver fôlego para o fazer....

O interesse da etapa acaba por aqui, já que doravante  é estrada de terra batida florestal, entre eucaliptos, até por fim se apanhar a estrada nacional que nos vai conduzir à Arrifana, onde terminei a etapa sentadinho na companhia de uma gelada cerveja sem álcool na pousada da juventude local, enquanto esperava pela minha mulher que, saída de Lisboa, dentro em pouco comigo ali se encontraria. Seguiríamos depois para Aljezur, onde ficaríamos alojados e de onde eu, no dia seguinte, partiria para a última etapa desta parte, agora no sentido descendente, entre Aljezur e a Arrifana, onde agora me encontrava.




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A sorte de quem pode tal vista ter...


só mesmo um "dono disto tudo", como eu me sentia....

Do alto da primeira subida do dia podia-se ter uma melhor compreensão de quão extensa era a praia...

 ... e da distância a que a mesma ficava da povoação e do seu casario branco, lá ao fundo.

Um rebanho de cabras marítimas...?

... e prova de que o fogo também por aqui passou?

Obrigado irmão cachorro, por me indicares a direção..

Gaivota?

"That's what I'm doing, sugar.."



a última, mas exigente descida/subida do dia...


... e a desimpedida vista que a mesma possibilitava, uma vez conquistada a encosta. Lá ao fundo, o areal onde começara o dia deixa-se perfeitamente ver.



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